Ser adulto e exercer competências profissionais e parentais em tempo de pandemia não é menos difícil do que para as crianças e jovens. Na verdade, até pode ser mais, dado o aumento do grau de exigência que começa a pesar nas famílias com o prolongamento da quarentena. Por exemplo, quando os filhos se confrontam com os gráficos que passam nas notícias e percebem que o grupo onde há mais infetados é o dos pais, como se sentem quando eles saem de casa, para trabalhar, ir às compras ou, simplesmente, desanuviar e acalmar? Ninguém é de ferro afinal, nem os adultos que cuidam deles e lhes servem de modelo são perfeitos, fazem o que podem. Os miúdos também fazem o que podem, nem que seja a desenhar cartazes e a partilhar mensagens que lhes dêem alento, a eles e aos crescidos. “Se eles estiverem, nós também.” Como ajudá-los, aos pais, a ajudarem-nos a eles, os filhos?
Ter uma imagem de futuro
Comecemos pelos filhos adultos, cujos pais cresceram com o tempero da relação face a face e, por mais caseiros que sejam, podem sentir-se atrofiados ao verem-se impedidos de sair à rua. O professor universitário José Morgado trabalha no departamento de Psicologia da Educação do ISPA – Instituto Universitário, em Lisboa. Agora, em teletrabalho. A expressão “tempero da relação” é dele. Sabe que não vai estar no monte alentejano nesta Páscoa e fala diariamente com o caseiro.
Prestes a chegar aos 80 anos, o homem que toda a vida saiu de casa continua a perguntar-lhe quando é que lá vai. Compreende-se. No seu caso, que tem diabetes, e da mulher, com problemas cardíacos, ambos na faixa etária dos sessenta, o desafio não se coloca a este nível mas na relação como o filho adulto. “Ó pai, o que é que precisas que te traga?” A generosidade do gesto não impede o sentimento ambivalente que vem também: “Por um lado temos este conforto, por outro estamos a dar trabalho”. Abdicar do exercício da autonomia neste ponto e canalizá-la para outros. Com netos de quatro e seis anos, há novas tarefas que se fazem à distância, agora que não os vão buscar à escola ou levar à natação: “A minha mulher, que era professora do primeiro ciclo, ajuda o mais velho no intervalo das atividades escolares através do telemóvel do pai” O desafio é abraçar o novo: “Estamos todos a aprender a ter este convívio digital, via Facetime ou Whatsapp, a sentirmo-nos úteis de outras forma”. Há ainda o lado bom das reuniões virtuais na universidade: “No Zoom, um colega dizia, ‘finalmente posso fumar no trabalho’.” Voltando aos netos, “eles não se queixam porque têm uma imagem de futuro e perguntam ‘quando o bicho for embora, voltamos a fazer o que fazíamos, não é?’ Essa serenidade torna possível aguentar dias compridos sem sair à rua”.
Quando os mentores são os miúdos
Antes da pandemia, as preocupações com o planeta dominavam a atualidade. Os mais novos cresceram a prestar atenção aos perigos do mundo, a comunicar diretamente com os seus ídolos pelas redes sociais e a achar normal ver ativistas com idades próximas ou iguais às deles a discursarem nas instituições mundiais (caso da paquistanesa Malala e ou da sueca Greta). Foram eles os agentes de mudança ao insistirem com os crescidos para quebrarem a força do hábito e reciclarem o lixo. Um estudo divulgado no ano passado e que envolveu uma amostra de 1200 jovens com idades entre os 17 e os 20 anos mostrou que 60% tinham sentimentos de insegurança. “Esta geração definiu-se com base no 11 de Setembro e não imagina o mundo sem a guerra ao terrorismo nem a crise económica que após 2008 afetou os pais”, afirma a psicóloga Cristina Valente, autora do livro Geração Z (ed. Diário de Bordo) e co fundadora do Centro de Pesquisa de Talento Geracional. “Apesar de terem ferramentas de mobilização social, não deixam de ser emocionalmente frágeis”, prossegue, baseando-se ainda nas informações que lhe chegam através das sessões de coaching. “A mensagem que passam aos pais pode vir embrulhada em maus comportamentos e silêncio”, elucida. Mãe de dois adolescentes, Cristina refere que, durante o confinamento decorrente da pandemia, “os pais podem desajudar ao querer replicar o modelo corporativo do trabalho e da escola no ambiente doméstico”. Há que contar com “uma curva de aprendizagem, ou seja, não funciona de um dia para o outro”. As coisas complicam-se os pais, ouvem mas não escutam o que os filhos lhes querem dizer em código cifrado. Algo como “diz-me o que faço agora e cumpre as regras de segurança.”
Flexibilizar e inovar, com amor
Por mais que custe aceitar que os mais novos têm a literacia digital do seu lado, juntar-se a eles pode tornar o confinamento menos penoso e reduzir, em muito, o risco de contágio. A este respeito, a psicóloga clínica Rita Castanheira Alves confirma que é mais fácil aos adolescentes munirem-se de dados que ajudem a manter pais, mães e outros adultos em casa. Coisas que podem fazer: “Garantir pequenas compras perto de casa, obter informação prática de como montar um plano eficaz de compras, ajudar os pais a comprar on-line e a servirem-se da tecnologia para as funções profissionais.” A “psicóloga dos miúdos” e especialista em intervenção precoce esclarece que estas dicas funcionam melhor “em adolescentes que já possuem características de iniciativa, autonomia, boa resolução de problemas e resiliência”.
Entretanto, a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) lançou um Kit de Sobrevivência para Pais e outros dois, avançados, que incluem exemplos de horários para crianças pequenas (até aos cinco anos) e horários para as mais crescidas (entre os seis e os 14 anos) com sugestões diárias e semanais: cada família pode ajustar estes kits à sua medida. Atividades que envolvam a troca de papéis nos tempos livres da família são bem vindos, dos jogos em que a criança faz de professora e explica aos adultos como fazer para mandar o vírus embora aos quizzes em que os adolescentes colocam questões aos adultos. “Mesmo que não consigam cumprir as sugestões dos horários, o que importa perceber a importância das rotinas e facilitar a sua conciliação”, assegura Sofia Ramalho, vice presidente da OPP.
Quanto a permanecer em casa, os miúdos não deixam passar quando os crescidos prevaricam: “A maior parte dos pais já terá passado por situações em que os filhos lhes chamam a atenção ou se recusam a ir ao jardim do condomínio porque não pode haver exceções para sair de casa”, acrescenta Sofia Ramalho. “Se querem manter a coerência, terão de adotar comportamentos consonantes com isso, sem vacilar e por tempo indeterminado”, adverte. Difícil? “As crianças são resilientes e têm mais capacidade de adaptar-se do que nós, adultos, pensamos e, até, que nós próprios.” Uma vez aqui chegados, não vale desistir.