Desde as zero horas do dia 18 de março que os únicos jornalistas que conseguem entrar em Ovar são aqueles que também não conseguem de lá sair. Ou seja, os que vivem no município. O governo decretou há dez dias estado de calamidade naquele concelho devido à confirmação de transmissão comunitária do novo coronavírus e impôs um cordão sanitário com um conjunto de restrições, nomeadamente de circulação: só podem entrar e sair profissionais de saúde, forças de segurança, serviços de socorro, serviços de abastecimento de supermercados, farmácias, gasolineiras e outros bens essenciais, e todos estes apenas por fundamentadas razões de urgência.
Apesar de a declaração do estado de emergência em Portugal (que foi decretada a seguir) deixar claro que as medidas não afetam “em caso algum, as liberdades de expressão e de informação”, no caso da declaração do estado de calamidade pública em Ovar os jornalistas não entram no leque reduzido de exceções criadas.
Um jornalista pode continuar a transmitir notícias sobre o município, o que não pode é furar a cerca sanitária que separa o concelho do resto do país. Isto é, não pode entrar. Tal como os jornalistas ali residentes não podem sair. Isto porque naquela data o que estava em causa em Ovar era mais grave do que no resto do país: havia confirmação de transmissão comunitária do vírus e não apenas de pessoa para pessoa.
Até à data, jornais, rádios e televisões têm contornado essa restrição recorrendo aos órgãos de informação locais, utilizando drones para recolha de imagens ou contactando residentes no município por telefone ou videochamada.
Em resposta a perguntas da VISÃO, o gabinete do primeiro-ministro esclareceu que essas restrições são “temporárias, parciais e excecionais” e que se justificam “por razões de saúde pública” por Ovar se encontrar “numa situação epidemiológica da COVID-19 compatível com transmissão comunitária ativa, o que significa que o risco de transmissão se encontra generalizado, sendo suscetível de originar novas cadeias de transmissão em zonas vizinhas”. Essas medidas restritivas, acrescenta o gabinete de António Costa, foram impostas “para salvaguarda da população de Ovar e para evitar uma transmissão para lá dos limites do concelho”. E ainda, “naturalmente, de todos os que, contactando com a referida população, pudessem ficar infectados, aí se incluindo também os senhores jornalistas”.
Ainda assim, o governo garante que a situação não significa “uma restrição absoluta à liberdade de informação, tanto mais que os diversos órgãos de comunicação social têm produzido e divulgado informação sobre a situação dramática vivida em Ovar, inclusivamente por audiovisual, em articulação com os meios de comunicação social locais, podendo ainda recorrer a todos os meios, nomeadamente à distância, que permitam acompanhar a situação específica de Ovar”.
Porque o que está em causa, diz o governo, é “o direito à proteção da saúde”. E poderá isto colidir com outros direitos constitucionalmente consagrados: o direito à informação e a liberdade de imprensa?
Para o constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos, sendo um estado de calamidade um estado de excepção – que só em circunstâncias muito específicas pode ser implementado -, muitos direitos ficam naturalmente reduzidos. Ainda assim, não considera as medidas inadequadas. “Não me choca que sejam impostas restrições para proteger os jornalistas de se contaminarem ou contaminarem outros”, diz o constitucionalista, frisando que nos dias de hoje existem “outros meios para facilitar a liberdade de informação” e, por isso, as limitações à circulação de jornalistas devem ser ultrapassadas usando meios de contacto à distância. Porque afinal o que está em causa são questões de “saúde pública”.
O Sindicato de Jornalistas (SJ) não recebeu qualquer queixa de qualquer órgão de informação relacionada com as limitações à circulação em Ovar. E Sofia Branco, presidente do sindicato, esclarece que “ao contrário do que muitas vezes se pensa, a liberdade de imprensa não é um direito absoluto”: “Felizmente em Portugal é muito próximo do absoluto. Mas há algumas excepções a essa liberdade. Uma é a segurança nacional. Outra é a saúde pública.”
A líder do sindicato frisa que o caso de Ovar é “um caso excepcional” e os jornalistas devem adaptar-se também a essas circunstâncias, desde que tenham alternativas à recolha de imagens e possam continuar a fazer perguntas. “Tem de haver sobriedade. Porque afinal o jornalismo também não deve servir para causar o pânico ou alarme social.”
Situação distinta e a merecer críticas do Sindicato são as restrições que alguns municípios têm colocado aos jornalistas, de forma unilateral, nomeadamente em conferências de imprensa, e a restrição que estava a ser imposta em Ovar à distribuição de jornais e revistas, porque os camiões de distribuição estavam a ser “ impedidos de entrar na sequência da quarentena imposta ao concelho”.
Num texto divulgado esta semana no seu site, o Sindicato frisou que a informação é um bem público, pelo que “deve ser assegurada de modo a chegar a todos”: “O SJ considera que é fundamental assegurar à população em causa toda a informação, pelo que apela ao Governo que deixe claro às autoridades que a distribuição de publicações periódicas não deve ser impedida, mas sim permitida, como um serviço público básico.”