Muitos não acreditavam mas janeiro trouxe a confirmação: “Fechado” é o que se pode ler na porta do restaurante sueco Fäviken, do chefe Magnus Nilsson. O choque no mundo da gastronomia é tão grande como se, na áera do desporto, Cristiano Ronaldo anunciasse agora que nunca mais ia tocar numa bola.
Além de ter duas estrelas Michelin, foi considerado um dos 10 melhores restaurantes do mundo na lista da revista Restaurant e mantinha-se sistematicamente no top de preferências dos mais exigentes críticos e gastrónomos.
Com apenas 35 anos, e considerado um dos mais brilhantes chefes da sua geração, Magnus Nilsson foi um dos escolhidos para brilhar na primeira temporada da série Chef’s Table, da Netflix, bem como no programa de Anthony Bourdain, Mind of a Chef. Escreveu também a “Bíblia” da cozinha nórdica (The Nordic Cookbook ) e passou 10 anos a cultivar e caçar (ou pescar) os alimentos que servia no seu pequeno restaurante, onde sentava 16 clientes para degustarem os 30 pratos que concebia, criando sempre uma experiência memorável.
O negócio corria bem – com as reservas esgotadas com um ano de antecedência. Mas ele decidiu largar tudo, acusando a pressão que é colocada sobre os chefes que têm estrelas Michelin.
“Cheguei ao ponto de acordar de manhã e não me apetecer ir trabalhar”, explicou numa entrevista ao Los Angeles Times (a única em que falou do assunto). “Não é uma decisão sensata, e sei-o bem, mas mantive este restaurante durante 11 anos porque queria fazê-lo. Este trabalho é sustentado por paixão, e eu perdia-a.”
Magnus Nilsson não vai, portanto, fazer uma pausa para repensar o conceito do seu trabalho, apostar noutros caminhos ou num restaurante diferente. Neste momento está a plantar maçãs numa quinta que comprou no sul da Suécia, e pretende apenas dedicar mais tempo à sua mulher e quatro filhos.
O futuro é ainda uma incógnita. Ele diz que quer aprender mais sobre pomares e, se o dinheiro faltar, admite “procurar trabalho noutra coisa qualquer”.
A pressão das estrelas
É por casos como este que se fala na “maldição Michelin”. Muitos chefes queixam-se da “escravidão” que é trabalhar para corresponder às exigências dos inspetores do Guia Vermelho, em vez de se guiarem apenas pela sua paixão. Com a pressão mediática vem a necessidade permanente de provar a excelência do serviço: aumentam-se os custos e diminui a liberdade criativa; aumenta a ansiedade, há inúmeros casos de depressão e até alguns suicídios.
Depois de um chefe conquistar uma estrela, espera-se que passe a ter duas, ou três. E depois de ter uma (ou duas, ou três), não é admissível perder “pontos” no ano seguinte. Quem quer, afinal, ser o cozinheiro que perdeu uma estrela?
Talvez por isso, cada vez mais chefes nem sequer querem figurar no Guia, à partida. Em novembro de 2019, quando se anunciaram as distinções de 2020, o sul-coreano Eo Yun-gwon processou mesmo a Michelin por ter ousado distingui-lo com uma estrela, quando “tinha dito especificamente que não queria”.
Já o francês Marc Veyrat queria levar o Guia Michelin a tribunal por ter retirado uma das três estrelas ao seu restaurante La Maison de Bois, exigindo que fossem dadas explicações para essa “despromoção”.
Um inspetor da Michelin teria dito anteriormente que a decisão se baseava no facto deste chefe, um dos mais reputados mestres da cozinha francesa, usar cheddar (um queijo inglês) no seu soufflé . Marc Veyrat contestou essa informação veeementemente, garantindo que é sempre feito com dois queijos franceses: Reblochon e Beaufort.
O caso, que já é conhecido no meio da gastronomia como “cheddargate”, foi considerado esta semana improcedente pelos tribunais franceses, e Marc Veyrat, ofendido, anunciou que não queria as duas estrelas que lhe atribuíam e que iria sair do Guia.
Os responsáveis da Michelin voltaram a lembrar que as regras definidas há mais de 100 anos não permitem renunciar a uma estrela ou impedir a inclusão de um restaurante. Os critérios de atribuição das estrelas são decididos apenas pelas avaliações independentes (e feitas de forma incógnita), pelos inspetores do guia.
Perder uma estrela… e fazer uma festa
O brasileiro Henrique Leis foi o primeiro chefe em Portugal a querer “devolver” uma estrela. Em julho do ano passado anunciou que tinha escrito aos responsáveis do Guia Michelin a renunciar à distinção que o seu restaurante em Almancil detinha há 19 anos. Nessa carta escreveu que foi com “grande honra e prestígio que durante 19 anos eu e a minha equipa fizemos parte deste guia, no entanto, gostaríamos a prestar o mesmo serviço mas sem a pressão da manutenção da estrela”.
Nessa altura, o Guia Michelin acusou a recepção da carta mas voltou a frisar que não é possível devolver uma estrela. “Os nossos inspectores trabalham para o público, não para os chefes.” Henrique Leis teria de esperar por novembro de 2019 para saber se o seu restaurante permanecia, ou não, no Guia da Península Ibérica de 2020.
Antes desse anúncio, disse em entrevista à Lusa: “A Michelin pode ser dona da estrela, mas não é dona do meu restaurante. Eles deram-me a estrela como se fosse um empréstimo, enquanto eu merecesse. (…) Mas eu disse que quero sair, eu saio. O meu compromisso com eles acabou.”
No guia de 2020, Henrique Leis já não figura na lista dos “estrelados”. O anúncio, feito em Sevilha, deu origem no resturante de Almancil a uma festa tão grande como se tivessem ganho – e não perdido – uma estrela. “É um grande alívio”, diz o chefe, que entrou entretanto de “férias prolongadas”.