Sentado num sofá da entrada do hotel Vila Galé Estoril, a rabiscar umas notas no curto tempo de pausa, com uma inquietude adolescente, o famoso “tio Júlio”, psiquiatra, sexólogo, ex-professor universitário, homem do Norte e feroz adepto do Benfica, recebeu-nos com um sorriso aberto. Saiu do refúgio de Cantelães, em Vieira do Minho, para moderar uma mesa no Congresso Nacional de Oncologia, a decorrer ali ao lado, mas o pretexto para o nosso encontro é mergulhar em À Escuta dos Amantes (Contraponto), livro com memórias e reflexões de 70 anos de vida e de 40 de prática clínica. O médico e contador de histórias começou por falar de sexo e acabou a falar de amor, em palestras, programas de rádio, podcasts e rubricas para canais de televisão, sendo seguido fielmente por ex-alunos, pacientes, espectadores e ouvintes. “Ouvidor” nato, é também filho grato, pai orgulhoso e avô entusiasta, que vai levar os netos à Provença, na Páscoa, “atrás de Van Gogh e dos seus girassóis”. Ama ainda as suas duas cadelas, presentes nas fotos de família.
O seu livro é um ritual de despedida ou uma expressão de namoro com a vida?
Gosto muito da segunda formulação, significa que não fechei a loja, mas é sobretudo um “obrigado” às pessoas que confiaram em mim, além de uma forma de garantir que não ficam coisas por dizer. Agora que o fiz, tenho de abrandar. A minha preguiça em deixar o Porto é lendária e cada vez mais me apetece refugiar-me na tribo e ponto final. Este ano tem sido infernal, sem contar que abusei à mesa, não fiz exercício e até engordei.
Quem é a sua tribo?
Não está ligada às questões de sangue, pois estas não garantem nada em termos de afeto. Tenho um círculo de familiares e amigos do peito, uns da infância e outros da idade adulta, que podem entrar pela casa de Cantelães sem cerimónias. É um sítio especial onde repousam os meus pais, é para lá que irei também.
Como explica ter entrado na casa dos portugueses a falar de sexo e ter acabado a falar de amor?
Felizmente falo pouquíssimo de sexo, foi um alívio. Era deprimente só ter convites para falar de sexologia. Quando fiz o Sexualidades [na RTP], havia pessoas que telefonavam para a minha secretária e lhe perguntavam se o “sotor” também fazia psiquiatria geral ou só tratava coisas de sexo. Depois o programa passou para horas pornográficas, uma censura encapotada e tal, mas o tiro de partida estava dado.
Porém, não deixou de ser uma escolha sua.
Estava na Suíça, num estágio de psicoterapia. Aí tomei contacto com as áreas da toxicodependência e da sexologia. Já em Portugal, comecei a trabalhar numa unidade de toxicodependentes, no Porto. Com os livros de sexologia que tinha trazido, comecei a falar com os meus alunos e um deles, o Aurélio Gomes, que estava em Lisboa, desafiou-me a fazer um programa na Rádio Nova: O Sexo dos Anjos, que deu um livro. A Maria João Duarte fê-lo chegar ao Carlos Cruz, que me convidou para o Carlos Cruz Quarta-Feira (RTP) e assim nasceu o Sexualidades.
E depois vieram as questões de amor, foi isso?
No consultório, recebo cada vez mais pedidos de ajuda na área dos relacionamentos. “Acha que vamos conseguir estar juntos?”, oiço muitas vezes isto. Nos últimos sete anos, agradou-me ir descolando da sexologia. Neste congresso, por exemplo, venho falar de antropologia médica, na interface entre profissionais de saúde e doentes oncológicos.
Mas foi um marco importante para mudar mentalidades.
Há 30 anos, para ter uma ideia, falei com um casal gay e seropositivo. Tinham as caras tapadas e as vozes deformadas. No final, despedi-me deles dizendo que eram uma família. Foi tristemente hilariante receber ameaças de morte por ter dito aquilo. Quando o programa passou para a madrugada, a RTP recebeu abaixo–assinados de associações de alunos, de pais e de conselhos diretivos a dizerem que aquilo era impensável, que queriam gravar a horas certas para usarem as cassetes na escola. Nas entrevistas de rua, as pessoas não se recusavam a responder, estavam prontas para o programa, mas quem não estava cortou-me o pescoço!
Trinta anos depois, viu-se expulso do Facebook por um dia…
Publiquei uma imagem da primeira página do El País sobre jovens africanas cujas mamas – a palavra seios não se usa em linguagem científica – são passadas a ferro para as tornarem menos atrativas ao olhar masculino. Foi um dia, com a ameaça de que na próxima vez seria um mês. Tenho amigos que fizeram o mesmo e não lhes aconteceu nada, o que mostra que o algoritmo é cego: seja uma denúncia ou uma obra de arte, vai tudo à frente.
Como lida com o mundo que temos na fase em que diz estar, do “outonescer”?
Há aspetos que me deixam melancólico: a ascensão das extremas-direitas, a eleição de um idiota útil para a presidência dos Estados Unidos da América. Não digo com isto que no meu tempo é que era bom. Agora, nesse verbo espantoso da Sophia, quando “outonescemos”, a nossa floresta privada vai ficando com clareiras, começa a faltar muita gente e sentem-se as faltas, mas tenho prazer na vida. Se Deus ao acaso dissesse “o relógio parou, queres ficar com a idade que tens ou voltar aos 50?”, eu não hesitaria em escolher a que tenho. Neste trajeto, houve uma pacificação.
Há pouco, disse que estava a ser um ano infernal…
Certo, mas escolhi assim. Além
da minha rotina – o consultório
e O Amor É (na Antena 1), que já tem 16 anos – meti-me em demasiadas coisas. O professor Sobrinho Simões, meu irmão de afetos, teve um AVC há dois anos. Apanhei o susto da minha vida. Pensei: eu e este tipo somos amigos há meio século, andámos pelo País e não ficou nada. Fizemos o Old Friends (Antena 1) e vieram os convites para ir aqui e para acolá. Depois, o Rui Couceiro (editor-executivo do grupo Bertrand) convenceu-me a fazer o livro. E ainda um velho conhecido a dar-me conta de que a Multicare me dava espaço para falar de saúde onde eu quisesse. Foi na Casa da Arquitetura, que o meu filho fez. Meti um naco demasiado grande à boca em 2019.
Fico sem perceber se é preguiçoso ou um workaholic…
Se me deixarem com um livro fico ali horas, daí ser preguiçoso, mas tenho a moral, inculcada pela mãe, trabalhadora incansável, de que era preciso reagir a isso. Fui para Medicina para não desiludir o meu pai e por influência indireta da marota da minha mãe. “Que pena. Quando o pai se reformar, o laboratório (anatomia patológica) fecha!” Filho único, não fui para letras, fiz o curso com boas notas, mas sem paixão. Ia ser mobilizado para a guerra em África e apostei na Psiquiatria, especialidade em que se podia falar com as pessoas!
Passou a ser um bom ouvido?
Temos a obrigação de suportar o silêncio, às vezes é difícil. Em Psiquiatria, para ouvir e depois, com sorte, escutar, é preciso estar em silêncio. Podemos passar meia hora sem interromper alguém.
O que faz se lhe pedem amizade fora do consultório?
Podem seguir-me no Facebook, mas é difícil explicar porque não posso dar consultas no café. “Sou seu médico, não sou seu amigo.” Já me aconteceu conhecer, anos depois, pessoas que acompanhei em termos sociais. Hoje, até faço parte de uma tertúlia em que está o meu psicanalista [Jaime Milheiro], mas passaram 30 anos. Estive quatro no divã e ele sabia mais de mim do que os meus próximos, era impensável estar na cervejaria!
Como é a sua relação com o Facebook?
Sou um animal de hábitos. De manhã, pego em coisas que acho interessantes e partilho. À noite, ponho uma música. Se não o faço, as pessoas estranham e perguntam se está tudo bem.
Também por ser uma fonte de inspiração para as suas vidas?
A idealização existe. Há jovens que vêm ter comigo, porque os pais ouviam o programa O Sexo dos Anjos quando namoravam. Outros podem esperar três meses por uma consulta, mesmo que estejam nos Açores. A Ordem dos Médicos só exige que a primeira consulta seja presencial. Perde-se muita coisa do não verbal, embora haja ganhos com a tecnologia. Costumo dizer: quem não tem cão, caça com gato, e nós caçamos com o Skype!
Foi “de homem”, para si, assumir o papel de doente que sofreu de depressão?
Não o fiz a pensar que ia reduzir o estigma. Disse-o naturalmente no programa do Aurélio. Não me adaptei à Suíça, fui para o divã. O meu pai, que tinha a sorte de não saber o que era ansiedade e depressão, disse-me: “O meu filho fala de coisas que eu nunca senti.” Respondi: “Nem sabe a sorte que tem.” Comecei a ter mais gente no consultório. Pode ter havido quem tenha optado pelo contrário, não sei, mas a clínica privada não sofreu com isso.
Ou seja, a atitude estoica não compensa, o “não tens nada de que te queixar”.
Se me perguntar: os homens choram? Choram sim, no quarto, na casa de banho, e não é pouco! Na ânsia de parecerem machos, acabam por ter comportamentos perigosos e não vão ao médico quando precisam.
Afirma que a vida a solo não é um passeio no parque e a vida a dois também não. Vive bem sozinho?
As relações não são passeios no parque. Hoje, desiste-se muito cedo delas por se pensar que, havendo conflito, não se está com a pessoa certa. Não há relações sem crises nem conflito, às vezes até as reforçam. Viver sozinho não é viver só. É comum viver cada um em sua casa, assumindo precisar do seu espaço, físico e mental. Vivo perto dos filhos, tenho amigos ao alcance da mão ou do telefone, mas torna-se também um vício. Se estiver a carburar, posso não almoçar até às cinco da tarde. Às vezes ligo ao filho mais novo, que também vive sozinho. Vamos a um restaurante, desligam-se os telemóveis e conversa-se.
Desligam-se também dos casos clínicos?
Ah, isso é mais difícil, sendo ele psicólogo e a trabalhar numa área muito dura, os cuidados paliativos. De vez em quando acabamos a falar de temas da profissão. E faço-o com muito prazer.
As partes do livro sobre um romance no Sul de França têm paralelos com a sua biografia?
Uma das dedicatórias do livro é à Occitânia, que visitei por causa do amor cortês. Descobri a heresia cátara, apaixonei-me pelos castelos, autênticos ninhos de águia, que exemplificam o que dizem os sociólogos: os turistas são os novos peregrinos. A trama tem pontos de contacto com Muros: há relações que não singraram, mas os afetos ficaram lá.
Os amantes, o amor e a amizade, que tudo une. É mais difícil cultivar amizades hoje?
Nós estragamos a palavra amante: amante é aquele que ama. A amizade é mais severa no julgamento do que o amor; há coisas que não perdoamos a um amigo. Hoje, confunde-se muito amigos e conhecidos, vivemos numa sociedade superficial. Nunca houve tantas queixas de solidão no meio da multidão.
O que faz quando os ouvidos ficam cansados?
Com frequência, preciso de silêncio absoluto ou de música, uma moldura para o silêncio.
Teremos sempre a música, os poemas, o amor?
Vem-me à memória a imagem da minha mãe: nunca estava sozinha, com a sua música e a sua literatura. Eu chegava das aulas e ela acolhia–me, a mim e ao meu pai, com muita satisfação.
Quer acrescentar alguma nota à nossa conversa?
Se em 2020 eu continuar a viver assim, quero que pegue no telefone, me ligue e me diga assim: “Lembra-se da entrevista? De dizer que ia abrandar? Não estou a ver nada!” Faça-me isso que já é um bom favor!