Apanhámo-lo à saída das gravações de mais um episódio de Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, onde vive. Na véspera, gravara a última rábula de Greg News e, no dia seguinte, partiria rumo ao México. Lá, esteve a rodar alguns sketches de Back Door (40 milhões de seguidores no YouTube) e a coordenar a filial mexicana do êxito que transformou Gregório Duvivier, 33 anos, numa figura internacionalmente conhecida. Antes de chegar a Lisboa, a 27 de novembro, para estrear a peça Sísifo, passou por Nova Iorque, para receber um Emmy pelo trabalho no seu noticiário fictício, edição especial de Natal para a Netflix. Como falou com a VISÃO antes disso, ainda só falava de esperança. “Tomara, pode ser que haja essa chance. No ano passado, já fomos nomeados com a série televisiva que se baseava na peça de improviso Portátil.”
Este foi apenas um dos assuntos debatidos ao telefone, com o Atlântico pelo meio. O resto da conversa está nestas páginas, carregado do melodioso sotaque brasileiro. Mas, avisamos de antemão, não haverá muitos parênteses retos com risos, porque quase não os demos. O discurso do humorista é sério, em alguns momentos coberto de tristeza – o sentimento que sobrevoa a existência deste ator e autor carioca. É que o Brasil não está para brincadeiras.
Sísifo não é o seu primeiro monólogo. Pelo menos, em Uma Noite na Lua também aparecia sozinho em palco. Há alguma semelhança entre estes dois espetáculos?
Encontram-se algumas, coincidentemente, pois não pensámos nisso ao escrever. Ambas têm um tipo de humor de que gosto muito, que se mistura com drama, com poesia, e às vezes até com tragédia – um humor que admite outros géneros dentro dele. A peça Uma Noite na Lua fala muito da solidão, do abandono, e a piada advém daí. No caso de Sísifo, o riso também surge da constatação do absurdo da vida, do facto de irmos todos morrer.
Então usa o riso para tratar assuntos sérios?
É essa a sua função primordial, a de combater a morte. É claro que ela vence sempre, mas o humorista, até ao final, não se deixa abater.
Como se enchem salas, associando a mitologia grega aos absurdos do seu país?
Esta peça teve um magnetismo muito maior do que esperávamos. Penso que falamos de um sentimento que é muito caro a esta geração: somos os primeiros a não conseguir ver um futuro distante, pois vamos viver menos do que o planeta, por causa das mudanças climáticas.
Devolvo-lhe a pergunta que faz no texto de divulgação da peça: “Será o Brasil uma nação aprisionada dentro de um gif animado?” E que gif será esse?
Na peça, é o desmoronamento. Depois da queda, coice, como se diz no Brasil. Através de um mito trágico, conectamos com o sentimento político atual. As pessoas querem ver o país traduzido no teatro, procurando chaves interpretativas. É que, entre todos os inimigos deste Governo, a cultura talvez seja o alvo preferido.
A cultura é cada vez mais um parente depenado?
Totalmente. Foi posto nessa secretaria um tipo [Roberto Alvim] que fala em arte degenerada, que se acha um enviado de Deus e tem um discurso quase contracultural. Foi ele que ficou famoso por xingar a atriz Fernanda Montenegro, por desancá-la no seu 90º aniversário. E depois disso recebeu de prémio a secretaria da Cultura.
Mas há mais setores afetados.
Quase todos. Por exemplo, quem vive de ativismo, quem é professor ou médico. Mas é nos artistas que o Governo mais gosta de bater.
Nesta peça também critica a constante conexão em que vivemos, mas o Gregório está muito presente em todas as redes sociais. Como lida com essa aparente contradição?
As redes sociais podem ser usadas ou elas podem usar-nos, e esse é um paradoxo constante. No meu caso, uso-as, divulgo o meu trabalho, digo aquilo que penso, mas tento não entrar no voyeurismo da vida alheia. Faço um esforço para que o meu tempo não seja drenado para esse mundo virtual. E hoje já existem meios para controlar isso, através dos quais evito estar mais de três horas no celular – sei que ainda é muito, mas houve um dia em que fiquei em trânsito no aeroporto e passei oito horas agarrado! Claro que tudo conta, até este tempo em que estamos aqui a falar.
Usa as redes sociais para promover o seu trabalho, mas também para chamar a atenção para os problemas mais graves do seu país. Considera-se um ativista 2.0?
[Risos.] Realmente, é um meio direto, onde as pessoas estão e passam a maior parte do seu tempo. Citando Milton Nascimento: “Todo o artista tem de ir aonde o povo está.” A arena do artista define-se pelo público: já foi a rádio, a televisão e agora é a internet.
Quais são as suas principais causas?
Não tenho uma agenda preestabelecida, falo do que me toca, do que me revolta. No Brasil não falta assunto, todos os dias há algo novo e, às vezes, a dificuldade é mesmo essa. Só para dar o exemplo da semana que passou: tivemos a Bolívia, que é aqui ao lado, com um golpe à moda antiga, obrigando um Presidente a renunciar. Ao mesmo tempo, tem um derramamento gigante de óleo nas praias do Nordeste e ainda a prova de que o Presidente está diretamente envolvido no assassinato da vereadora Marielle Franco.
Calculava que esse fosse um tema que o tocasse. Era sua amiga?
Sim, era, mas também uma representante da nossa geração, um orgulho em ter sido eleita com tantos votos. Tenho muitos amigos que trabalhavam no gabinete dela, que estão até hoje dilacerados. Trata-se de um dos acontecimentos mais trágicos do Brasil e da minha vida pessoal. E, agora, a investigação da sua morte chega ao condomínio do Presidente e descobre-se que o assassino é seu vizinho de porta e que o motorista do assassino falou o nome de Bolsonaro quando o foi buscar nesse dia. Meu Deus do céu, a gente elegeu um bando de milicianos, que é um termo que nem sei se existe em Portugal. O Presidente do Brasil, mais do que um militar, é um miliciano, que mantém o poder através de alianças com policiais corruptos e matadores de aluguer. Todo o léxico é de violência e morte.
Como se consegue sobressair atualmente no Brasil, sendo tão veementemente de esquerda?
Trata-se de um país muito grande e ainda se mantém a pluralidade de pensamento. Claro que existe o bolsonarismo, que é gigante, mas também há uma resistência muito poderosa e muito vocal de esquerda e bem maior do que eu. E o Brasil é muito maior do que Bolsonaro. Temos de nos lembrar todos os dias que, nas últimas eleições, o primeiro colocado nas pesquisas foi Lula, e ainda é. Se o Presidente não tivesse sido encarcerado durante dois anos, pelo juiz Sérgio Moro, que futuramente veio a integrar o governo do segundo colocado na pesquisa, o Presidente hoje seria outro.
Mas devo lembrá-lo de que já disse que considera o PT um partido de direita.
Falei isso antes de o Bolsonaro chegar ao poder.
Já mudou de opinião?
Hoje ficou bem diferente… Mas mantenho as minhas críticas ao PT, pois ele pactuou demais com a classe dominante.
Só para perceber melhor onde se posiciona: se votasse em Portugal, onde poria a cruzinha?
Acredito que no Bloco de Esquerda. Gosto muito da [Mariana] Mortágua, da Catarina [Martins] e do José Soeiro, no Porto. Tem muita gente boa aí. E também gosto do PS, inclusive sou amigo da Isabel Moreira.
Imagino que tenha ficado feliz com a libertação de Lula da Silva.
Claro. As discordâncias que tenho com ele não justificam uma prisão arbitrária, baseada num processo no mínimo farsesco, uma aberração conduzida por um juiz político, que hoje é o braço forte de Bolsonaro. No momento em que ele aceitou ser seu ministro, no mínimo, deveria ter sido revisto o processo.
Saiu para a Lapa para festejar, com os cariocas?
Saí sim! Foi realmente uma catarse popular, muito bonita de assistir.
Costuma andar, sem medo, pelo Rio de Janeiro ou toma cuidados especiais?
Não tenho medo, porque ele paralisa. É o nosso pior inimigo. Não tenho medo de andar nas ruas, de falar o que penso nem de fazer piadas. No dia em que o medo vencer, terei de me mudar daqui.
Sente-se afetado pela censura neste momento atual?
Não, porque a censura brasileira não é como a de antigamente, em que o censor ficava dentro da redação controlando o que podia ou não podia ser escrito. Hoje, ela se dá com a proibição de projetos LGBT, por exemplo. É mais subtil e mais burocrática.
E não chega a si?
Tenho a sorte de ser privilegiado, fazer humor sem precisar de incentivos estatais e conseguir viver do público. Esta censura afeta quem mais precisa, justamente os artistas periféricos, que o Governo deveria estar acolhendo. É terrível.
Disse que um humorista tem de ser de esquerda. Porquê?
Disse, é? [Risos.] O humorista pode estar onde quiser, mas o lugar mais interessante é sempre o de quem está levando e não o de quem está batendo, não se alinhando com o poder, mas com o outro lado, mais desfavorecido.
Na semana passada, chegaram aqui notícias da sua comparação do recém-eleito deputado do Chega com Bolsonaro….
[Silêncio.] Como é que é?
Terá dito à jornalista da Lusa que o entrevistou que o deputado do Chega, André Ventura, seria uma espécie de Bolsonaro…
[Silêncio.] Eu falei isso?! Nem conhecia direito ele…
Ia perguntar-lhe isso mesmo: se acompanhava assim tão de perto a nossa realidade política?
Ela descreveu esse deputado e perguntou se ele se parecia com Bolsonaro. E eu respondi: “Olha, pelo que você falou, parece um fenómeno parecido.”
Se equacionasse deixar o Brasil, por causa do medo, para onde iria?
Portugal!
Essa resposta não vale…
[Risos.] Estou brincando, mas realmente é um país que me acolhe muito bem e onde consigo trabalhar, e isso para mim é muito importante. Tenho de ver é se já não estarão fartos dos brasileiros [risos].
Quantas vezes já veio a Portugal?
Muitas, muitas. Em trabalho e em passeio.
O que pensa do País?
Amo muito mesmo o português, a pessoa. Dou-me muito bem com os portugueses porque gostam de papo, têm uma cultura de hospitalidade calorosa e afetiva. Sinto-me sempre como se estivesse visitando uma família distante, embora não tenha família aí. E mostram bastante interesse pelo Brasil. Tenho pena de que aqui não saibam o quão progressista é Portugal.
Ainda se pensa que estamos no século XIX?
Deve ser por causa dos portugueses que estão vindo para cá, mas ainda se pensa em Portugal como um país muito católico, conservador e austero. No entanto, o que eu conheço e amo é muito efervescente e progressista. O aborto, por exemplo, já nem é mais uma discussão. E nem se põe em causa o facto de serem um Estado laico – vocês não têm pastores deputados! É tão comovente quando falam dos valores de Abril… No Brasil, a democratização aconteceu sem…
… Sem cravos.
Isso! Não houve um ato fundador tão forte e comovente quanto o 25 de Abril de 1974. Aqui tratou-se apenas de uma passagem de bastão, na qual houve amnistia para torturadores, por exemplo.
A vossa democracia não parece vossa, enquanto a nossa parece nossa.
Essa definição é perfeita.
Já entrou em dois filmes portugueses (Refrigerantes e Canções de Amor e Labirinto da Saudade). Como foi contracenar com atores portugueses: Percebeu-os bem ou passou o tempo todo a dizer “oi?!”?
[Risos.] Eu entendo-os muito bem, sou praticamente bilingue, evito dizer “oi?!”.
Então foi fácil contracenar com eles?
Sim, sou o maior fã do vosso cinema e do vosso teatro. Adoro o ator Ivo Canelas, por exemplo. Consumo muito as peças do Tiago Rodrigues e ele influenciou muito a Sísifo – eu e o Vinicius Calderoni, com quem a escrevi, falamos muito nele.
Como se passa do lado de lá do Atlântico para cá, conquistando uma legião de fãs, sem nunca ter entrado numa novela?
Os tempos estão mudando. Mas, por acaso, até fiz uns programas na Globo, só que ninguém assistia.
Já ninguém vê televisão…
Nem aberta nem fechada, pelo menos na minha geração.
Por isso é que vocês entraram pela Porta dos Fundos da internet, já em 2012.
Exatamente. É na internet que a nossa geração se vê espelhada.
O Gregório é mais do que o ator e argumentista da Porta dos Fundos. Aliás, o comediante Luís Fernando Veríssimo disse que quem “paga um Duvivier, leva seis”. Que seis são esses?
Ele fala isso, mas é o cara mais completo que conheço…
O Gregório também escreve poesia, desenha, é ator, criador… Por falar nisso, assenta-lhe bem a alcunha de “Bocage dos Trópicos”?
É um orgulho, porque eu amo Bocage. Mas a poesia é o que me toma mais tempo – demoro anos a escrevê-la.
Qual nasceu primeiro, o poeta/escritor ou o humorista?
Escrevo desde que me lembro, mesmo sem saber escrever. É quase uma pulsão. Os meus primeiros textos, cheios de rabiscos, parecem eletrocardiogramas. Adoro assumir compromissos de escrita porque me dão prazer lúdico: desde as minhas crónicas no Folha de São Paulo até aos roteiros do Porta.
Então o escritor apareceu primeiro.
Mas quando descobri o humor, nunca mais o larguei. Foi algo muito transformador.
Por isso diz que se trata de uma boa forma de ajudar a suportar a realidade?
E também uma forma de conexão entre as pessoas, pois através dele cria-se um laço afetivo. Era muito tímido em pequeno, com dificuldades de interação com os seres humanos, e então o meu avô achou que deveria ir para o teatro, como terapia. Quando finalmente subi ao palco, fiz as pessoas rir, sem querer. Disse o meu nome, o que só por si é estranho para uma criança de 9 anos, era baixinho e tinha uma voz aguda. Mas nesse momento, as pessoas riram da minha cara – e eu adorei!
Nunca quis ser mais nada na vida?
Não, desde que descobri que o humor é uma espécie de cola social e que mantém a sociedade conectada.
Já disse que no Brasil não há um humorista como o nosso Ricardo Araújo Pereira, que leve o humor a sério. Não se revê, a si próprio, nessa definição?
Não, quem me dera!
Não leva o humor a sério?
Nunca com a mesma seriedade do Ricardo. Muitas vezes, levo-me tão a sério que deixo de ser engraçado. Há alturas em que a revolta e a raiva falam mais alto e não consigo ter graça. Mas o Ricardo não consegue não ser engraçado, está no ethos dele.
Portanto, para si, a realidade brasileira, que vista de fora parece ter imenso sumo, nem sempre é uma boa fonte de inspiração humorística?
É preciso uma certa distância para ver essa graça…
Mesmo assim, faz muitas piadas com ela.
Nem sempre consigo, porque às vezes esbarro em assuntos que me são muito caros. Quando a realidade encosta na morte de pessoas que me são próximas, por exemplo.
Imagino que não consiga fazer piadas com a morte da Marielle.
Não consigo. Por acaso, é o tema do último Greg News, mas o humor recai sobre os erros da investigação.
Também desenha. É um hobby?
Oi?!
Ah, acabou de dizer “oi?!”! [Risos.]
Ai, falei “oi?!”, desculpa, perdão.