Vi pessoas serem mortas e gente a desistir de viver, atirando-se de penhascos, nas montanhas. Eu não. Eu, miúdo, ia sempre à frente, sempre a andar para chegar a um destino. O meu destino.” Quem o diz é Farid Walizadeh, afegão de 22 anos, que assim descreve o que mais o marcou num trajeto de vida desumano, que o obrigou, separado da família e com apenas 8 anos, a atravessar a pé as montanhas do seu país, do Paquistão, e desde o Irão, para chegar à Turquia, de onde, após anos de espera, partiu para o refúgio em Portugal. País que o recebeu bem, que aprendeu a amar e onde, faz questão de o dizer, quer “construir um futuro”. E esse futuro pode passar, já no ano que vem, pelos Jogos Olímpicos de Tóquio, integrado na equipa internacional de refugiados organizada pelo Comité Olímpico Internacional. Para isso acontecer, com o apoio do Comité português, Farid treina boxe diariamente, com a mesma determinação que o fez atravessar todas as montanhas gélidas da vida na perseguição de um sonho ambicioso, como é próprio do seu carácter: “Quero receber uma medalha. É por isso que luto todos os dias.”
O que aqui se conta é a fantástica história de um miúdo que foi obrigado a fazer-se homem bem cedo na vida e que, com ou sem medalhas, é um vencedor. Uma história relatada pelo próprio, assente nas memórias que vai conseguindo domar. Sim, porque aquelas que – como o próprio admite – o atormentam, lhe provocam pesadelos e o mantêm “preso dentro da própria cabeça”, essas, não as conta a ninguém. “Não tenho com quem partilhar ou desabafar muitas das coisas que vivi. Ninguém em quem possa confiar totalmente e que, sobretudo, não me julgue.”
“Farto de levar porrada”
Farid nasceu em 1997, em Puli Khumri, cidade do Nordeste do Afeganistão. Perdeu a família com apenas 1 ano de idade. O pai morreu e a mãe, perseguida por ser ismaelita, foi obrigada a fugir para as montanhas. Estando grávida, teve de deixar Farid para trás, com uma família amiga. Ali viveu até à morte da mãe adotiva. O padrasto pô-lo, então, fora de casa, pagando para que o levassem para longe do país, integrado num grupo que escapava da guerra e da pobreza. Quase sempre a pé, porque o preço pago pela “viagem” não dava direito a lugar na garupa do burro. Não passava de uma criança de 8 anos, forçada a lutar, sozinha, pela sobrevivência.
“Passei por coisas que nem a maioria dos adultos alguma vez passou, quanto mais uma criança”, reconhece, sem, no entanto, mostrar qualquer sinal de piedade por si próprio. Antes, sim, de uma confiança e, até, de um desassombro espantosos: “Éramos um grupo grande quando saímos do Afeganistão. Andámos juntos até metade do trajeto no Paquistão, até que caí de um autocarro e fiquei sozinho até ao final do Irão. Mas também não queria companhia. Não confiava em ninguém e estava farto de levar porrada de toda a gente.”
Dos meses que passou sozinho, conta pouco. A alguns membros da equipa do Comité Olímpico de Portugal que o acompanham atualmente, diz apenas: “no dia em que puder regressar, gostaria de ir pedir desculpa e de agradecer às pessoas a quem fui roubando fruta para sobreviver.” Na conversa com a VISÃO, foi mais curto e grosso: “Comi tudo o que era ser vivo e mexia.” O resto das memórias lá continuarão presas na sua cabeça, a atormentarem-lhe o sono.
O calvário terminou, quase um ano depois, em Istambul. Apesar de ter chegado à Europa, os primeiros tempos na Turquia também não foram fáceis. “Estive preso até aos 10 anos. Depois, colocaram-me num centro educativo, que era outra prisão. Fugi várias vezes, mas apanhavam-me sempre.” É verdade que passou a ter acesso a cama, mesa, educação e roupa lavada, mas os anos passados naquele orfanato não foram menos duros do que aqueles em que andou na travessia das montanhas.
“Os rapazes eram maiores do que eu. Eram turcos e eu, o único afegão. Queriam dar-me ordens, mas nunca deixei que mandassem em mim. Então, batiam-me. Deram-me uma sova que me partiram todo, mas levantei-me e fui-me a eles. Voltaram a massacrar-me e voltei a responder. E assim sucessivamente, até que desistiram. Perceberam que eu me levanto sempre.” Essa capacidade de luta e a necessidade de se defender abriram-lhe as portas do desporto. No taekowondo, descobriu a modalidade certa para canalizar a sua raiva e aperfeiçoar as técnicas de autodefesa.
Com a mesma determinação com que chegou a solo turco, Farid tornou-se um campeão, somando vitórias. Até que derrotou a pessoa errada: “Ganhei ao filho de um mandachuva qualquer lá do ginásio. Atropelaram-me e bateram-me. Estive uma semana em coma e fiquei com lesões no braço e numa perna. Os médicos diziam que eu nunca mais poderia treinar.” Estavam enganados. Uma vez mais, o duro rapaz afegão levantou-se e foi à luta.
O país de Cristiano Ronaldo
Ao fim de cinco anos, em 2012, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados apresentou-lhe, finalmente, duas propostas alternativas de países que estavam dispostos a recebê-lo, concedendo-lhe o título de residência com o estatuto de refugiado. Entre os Estados Unidos da América e Portugal, o rapaz, então com 15 anos, não teve dúvidas: “Não tinha boa impressão da América por causa da guerra. De Portugal não sabia nada, a não ser que era a terra de Cristiano Ronaldo.” E, apesar de “nunca ter visto um jogo de futebol inteiro”, esse foi o argumento suficiente para que escolhesse o nosso país.
Chegou no final desse ano e foi viver para o Centro de Acolhimento de Crianças Refugiadas, no Parque da Bela Vista, em Lisboa. A adaptação não foi, uma vez mais, fácil. Ao perfil reservado de um jovem com evidentes problemas de afetividade juntava-se a barreira da língua. Mas Farid aprendeu rapidamente a falar português com o trabalho na escola “e a ler todos os dias livros de crianças e notícias”.
Como acontece com todos os jovens nestas condições, os responsáveis do centro de acolhimento procuraram também perceber o que poderia ajudar na sua integração. O desporto é, neste capítulo, uma das formas de melhor conseguir resultados. E sempre que é identificada uma apetência especial por alguma modalidade, o Conselho Português para os Refugiados, com o apoio do Comité Olímpico de Portugal, esforça-se por tentar proporcionar a cada jovem a oportunidade de praticar um desporto. Com Farid, as lesões trazidas da Turquia desaconselhavam a prática de artes marciais, mas Orlando Jesus, treinador de boxe do Clube Desportivo de Arroios, abriu-lhe uma porta.
“Ao fim de quatro ou cinco meses a treinar, fui campeão. Batia toda a gente.” Efetivamente, ao título nacional de cadetes na categoria de -57 quilos, em 2013, seguiram-se três anos de muitas outras vitórias e títulos, a maioria por KO.
Ir ao tapete e voltar a vencer
Em 2017, porém, o sonho do boxe sofreu um revés. Um ano antes, ao completar 19 anos, teve de deixar a casa de acolhimento e passou a viver num quarto, com um pequeno apoio da Santa Casa da Misericórdia. “Estudava durante o dia e trabalhava à noite, num hotel, o que não me deixava treinar e competir.” Mas, se aqui o jovem foi ao tapete, o combate mais saboroso da sua vida acabaria, no entanto, por terminar como uma vitória. Ao fim de quatro anos de batalha, o jovem Walizadeh conseguiu reunir-se com a mãe e dois dos seus meios-irmãos. “Mudou tudo e é uma grande surpresa”, explica: “Ainda estamos a conhecer-nos. Eles a saberem a minha história e eu a descobrir a deles.”
A família viveu uns meses toda junta na Margem Sul, mas o início deste ano trouxe uma nova e espetacular reviravolta na vida do refugiado afegão. Com o empenho do Comité Olímpico de Portugal, o promissor pugilista foi integrado no programa de atribuição de bolsas no âmbito de um projeto do Comité Olímpico Internacional, que, em última análise, pode levá-lo a integrar uma equipa internacional de refugiados que vai competir nos próximos jogos, em 2020, em Tóquio, no Japão. O pugilista vive, atualmente, na residência para atletas no Centro de Alto Rendimento, no Jamor. Integrado no Paulo Seco Team Lisboa, treina árdua e afincadamente todos os dias e voltou a competir. Com excelentes resultados, diga-se, em Portugal e lá fora.
Paulo Seco, 48 anos, antigo praticante e treinador há 20, é o homem que promete tudo fazer para ajudar Farid a cumprir o sonho de chegar aos Jogos Olímpicos. Residente toda a vida no Casal Ventoso e com academia aberta no bairro social que serviu para albergar os desalojados daquele que foi durante anos o hipermercado da droga de Lisboa, o treinador que ensinou o ator Nuno Lopes a ser o pugilista do filme São Jorge, de Marco Martins, está habituado a lidar com gente com vidas difíceis. Mas reconhece que “o passado de Farid o torna mais forte e mais competitivo”. Conta que o jovem “é uma esponja, não desiste e está sempre disposto a aprender”, mas reconhece que a tarefa de o levar a Tóquio 2020 é tudo menos fácil: “Estamos a tentar fazer em menos de dois anos o que normalmente leva quatro anos a conseguir.” Acredita, porém, que é possível, até maio do ano que vem, “convencer o Comité Olímpico Internacional do valor do atleta”.
Até lá, Farid Walizadeh vai continuar a levantar-se a cada queda que a vida o fizer dar. A lutar pelo seu sonho e a construir o futuro. E promete construir muito mais, a partir da sua mais recente vitória: “Consegui entrar em Arquitetura, que era outro sonho meu. Porquê? Por ter visto tanta destruição, agora quero criar coisas novas.” E quer fazê-lo no país onde se sente “em casa, mais do que em qualquer outro lugar”. Em Portugal, que já conheceu de lés a lés (sempre a pé, claro) e que diz ser tão bonito, que “é um prazer conhecer”. O prazer, Farid, é todo nosso.