No final de 2014, os salvamentos no Mediterrâneo ainda não faziam manchetes de jornais nem diretos para a televisão – apenas sobressaiu uma ou outra referência no aniversário do primeiro grande naufrágio, em Lampedusa, que em outubro de 2013 largara na praia daquela ilha italiana centenas de corpos sem vida, depois de ter partido da Líbia com perto de 500 pessoas a bordo. Feitas as contas, apenas 150 foram salvas, o que atirou o número de mortos para perto dos 300. Os locais estavam horrorizados – “estamos cansados de contar cadáveres” , o país decretou luto nacional, e até o Papa Francisco se deslocou à ilha poucos meses depois, apregoando “vergonha”. Esse 3 de outubro foi até declarado Dia Nacional em Memória das Vítimas da Imigração em Itália.
Um ano depois, ainda não imaginávamos que que o Mediterrâneo se tornaria um verdadeiro cemitério de migrantes, e já a Europa se preparava para apertar a segurança das suas fronteiras – substituindo a operação Mare Nostrum, que tinha um caráter humanitário, pela Triton, orientada pela Frontex, agência europeia de gestão das fronteiras externas.
Nada que tivesse, ainda assim, impedido o cumprimento da Convenção do Mar, que obriga o navio mais próximo de um naufrágio – ou de uma embarcação à deriva – à busca e salvamento de vidas que possam estar em risco. Nesse novembro de 2014, por exemplo, já o patrulha oceânico português Viana do Castelo andava por aqueles mares havia uns dois meses. Das mil pessoas em média resgatadas todos os dias; só a Marinha portuguesa salvou mais de 400 – e em pouco dias, como os dois em que a VISÃO esteve a bordo, foi possível ver como o mar à nossa porta era feito de vítimas e de heróis.
Seis meses depois, havia já outras rotas a aliciar migrantes para a Europa, ganhando adeptos crescentes entre as populações que fugiam das guerras que assolam o Médio Oriente e o norte de África. Foi quando o projeto The Migrant Files revelou os milhões e milhões de euros que aquela viragem na política de imigração custava à Europa, entre a construção de centros de detenção fora da Europa (€46 M), deportações (€300M) e fortificações entretanto erguidas, em Espanha, na Grécia e na Bulgária (€77M).
Chamámos-lhes os números da vergonha, mas nada disso impediu que, três meses depois, o corpo de um rapazinho aparecesse morto numa praia da Turquia. Chamava-se Alan Kurdi (lembram-se?) e a indignação nesses dias ultrapassou a escala continental.
A história do menino conta-se de uma penada: nascido numa cidade curda no norte da Síria, a família mudara de sítio frequentemente, para escapar às investidas do Estado Islâmico. Após a tentativa frustrada de emigrar com a família para a ilha grega de Kos, o pai arriscou a entrada na Europa num barco pneumático. A viagem terminou com o naufrágio da embarcação. A morte do filho simbolizaria todas vítimas em fuga de uma guerra cujas razões não conheciam.
Depois disso, é verdade que baixaram os números de migrantes que, a partir de África e do Médio Oriente, se fizeram ao mar para, do outro lado, alcançar terra firme. Ou melhor, morreram menos pessoas, que é do que geralmente se fala – mas aumentou exponencialmente o número de outras que foram enfiadas em centros de detenção na Europa, depois de resgatadas no mar.
Os anos de 2015 e 2016 seriam os picos mediáticos desta crise e, a partir de 2017, as histórias de resgate passaram a incluir operações de navios de ONG’s e afins. Até que, no início do verão de 2018, Itália passou a negar autorizações de desembarque aos migrantes salvos pelas organizações humanitárias.
Seguir-se-iam Malta, que chegou até a negar reabastecimento a um desses navios – e por fim, até Espanha deixou de ver essas operações com bons olhos. Em Itália, a polémica subiu de tom de tal forma que, no final desse verão, o português Miguel Duarte, voluntário a bordo de uma organização alemã que salvou milhares pelo Mediterrâneo, acabou mesmo por se tornar arguido num processo que o acusava de ajuda à imigração ilegal. “Salvar vidas não pode ser ilegal”, repetiu ele em junho passado, à VISÃO, apesar de o navio em que foram feitos os resgates permanecer arrestado.
Os números agora conhecidos, divulgados pelo Público, parecem lavar-nos a face. Ao todo, entre 2014 e 2019, as forças europeias ao serviço da Frontex, a tal agência que faz vigilância às fronteiras, salvaram 470 mil pessoas. Dessas, 14 151 foram a cargo dos portugueses – Marinha, Polícia Marítima e GNR. Mas segundo essa mesma contabilidade, o número de mortos não ficou assim tão distante: 11 mil. Qualquer coisa como 2 mil e tal por ano.
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