“Nós estamos aqui, nós estamos aqui”, repete Domingos Billy, 70 anos, um dos líderes da aldeia de Xunga, perdida nas margens do rio Búzi, na província de Sofala.
Só de barco se chega a esta povoação onde vivem cerca de 400 pessoas. “Toda a gente passa no rio em direção a Búzi. Não param porque ninguém se lembra que vivem aqui pessoas, mas nós estamos aqui”, insiste.
A aldeia não está totalmente isolada. Acabou de partir um barco de passageiros, com capacidade para meia centena de pessoas, que faz a viagem entre a Beira e Búzi, passando por Xunga. O preço do bilhete de ida e volta está ao alcance de muito poucos: 500 meticais (€6,95).
Francisco Luís Matique, 23 anos, destoa dos restantes habitantes da aldeia. Está impecavelmente vestido com calças de ganga, uma camisa branca e ténis. Trabalha numa fábrica de chinelos na Beira e só quase duas semanas depois do temporal conseguiu apanhar o barco para visitar a família. “Só hoje soube que estão todos bem”, diz, aliviado. “Toda a gente falava sobre esta zona ter sido muito atingida, mas só agora tive finanças para viajar”, justifica.
Quando vê os militares portugueses que vieram trazer-lhes cloro e ajudar a filtrar a água fica surpreendido com o aparato e pergunta se são norte-americanos, sem prestar atenção aos diálogos em português.
A fábrica onde Francisco Luís Matique trabalhava ficou destruída e só voltará a laborar daqui a três meses. Até recuperar o emprego, admite não saber como vai sobreviver, mas quer levar a mãe consigo para a cidade. “Agora, a machamba [terreno agrícola] já não tem nada. Por isso, a minha mãe já não tem nada que fazer aqui.”
Mas não será fácil tirá-la deste lugar esquecido. A maior parte das pessoas não quer abandonar os locais onde sempre viveu. Mara Isaías, 26 anos, é uma delas. “É muito difícil viver na Beira. Quero continuar aqui.” Afinal, a perspetiva de vida na cidade, sem nada, não é melhor. A casa onde vivia com o marido e os três filhos está arrasada, mas acredita que é possível começar de novo. Ao todo, foram destruídas cerca de 238 mil casas em Moçambique.
Na aldeia de Xunga, as habitações não passam de construções rudimentares feitas com o que natureza dá. Muitos telhados de colmo foram deitados por terra. Há ramos e raízes de árvores espalhados por todo o lado que se parecem com garras. Lenha que a população agradece perante o preço elevado do carvão – eletricidade já não tinham.
Afonso Joaquim Girimoio, 49 anos, dá voltas e voltas a uma canoa de madeira semidestruída na esperança de encontrar uma solução. “Agora há por aí muito peixe, mas não tenho como ir buscá-lo…”, lamenta-se.
A base da alimentação nos últimos dias têm sido os coqueiros. Há muitos pedaços de casca de coco pelo chão. “Sem arroz não tem vida”, alerta o pescador e agricultor, que também viu a sua machamba inundada. Em Moçambique, cerca de 700 mil hectares de terrenos agrícolas foram afetados. “Foi-se o sustento. Estamos mesmo à rasca.” Afonso Joaquim Girimoio traça um cenário dramático: “Falta comida e teto.”
Os irmãos Luís Joaquissola, 24 anos, e Simão Mamateus, 14 anos, estão concentrados na reconstrução da sua casa. Uma única divisão só com meia dúzia de metros quadrados. A ventania levou-lhes tudo e estão a começar do zero. Vivem os dois sozinhos, perderam os pais há doze anos, num naufrágio entre a aldeia e a Beira. Procuram sustento no mar e na terra. À sua volta, pastam cabras e passeiam-se galinhas e patos. A alguns metros de distância, meia dúzia de vacas ruminam. São as reservas alimentares que restam na aldeia.
A água que consomem vem de um lago imundo, inundado de destroços pelas cheias. Helena Francisco, uma mãe de 30 anos com seis filhos, confirma que toda a gente usa aquela água para beber, cozinhar, lavar… Mas não é a falta de água potável que mais a preocupa: “As crianças choram o tempo todo com fome”, descreve. “Pensam que aqui não há pessoas, mas não é verdade”, afirma, também ela indignada.
Os fuzileiros e o exército português trouxeram cloro para ajudar a purificar a água e uma pequena máquina manual de filtragem. O líder local confirma que há muitas pessoas na aldeia com diarreia, o que atribui à alimentação deficiente e à água lamacenta.
Domingos Billy não vive em Xunga, mas é aqui que tem a sua machamba de arroz – “estava tão boa”, garante – agora, já não se aproveita nada. A água chegou à altura dos seus ombros. Até 2012, trabalhava como jornalista no Diário de Moçambique, na Beira. Depois da reforma, passou a ter mais tempo para a agricultura.
Inesperadamente, ouve-se música no outro extremo da aldeia. Sai de uma coluna de som roufenha, alimentada pela energia solar. Jorge Mbé, 23 anos, costumava usar a música para atrair clientes à sua banca onde vendia um pouco de tudo, refrescos, açúcar, farinha, detergente para a roupa, baterias… Agora, usa-a como banda sonora enquanto reconstrói a sua casa e o seu negócio. Faltam-lhe produtos para vender, conta ir buscá-los em breve à cidade.
Ali ao lado, um oficial de saúde faz-se anunciar. Chegou hoje à aldeia e trouxe medicamentos e desinfetante da água de Búzi. A “clínica” onde está instalado é um simples pedaço de chão com um telhado de colmo mas, garante, faz o melhor que pode.
Salita Domingos, 25 anos, deu à luz no dia anterior ao ciclone. Tem muita dificuldade em falar português, mas aponta para o bebé e chama-lhe “filho da tempestade”. Uma tempestade inesquecível.