Pedro Pimenta delineou um plano: percorrer toda a costa portuguesa a pé, de Monção a Vila Real de Santo António. São 940 quilómetros, que dividiu em 16 etapas, para cumprir até fevereiro de 2020, um fim de semana por mês (em junho, mês de feriados, haverá três). O ponto onde terminou a etapa anterior é sempre o ponto de partida da seguinte para todos os que o querem acompanhar.
Funcionário público, Pedro Pimenta, de 52 anos, é já um veterano das caminhadas – durante mais de uma década, liderou a secção de Pedestrianismo do Clube de Lazer, Aventura e Competição (CLAC) do Entroncamento, onde reside. Num registo informal, de impressões e pensamentos soltos, partilha agora, no site da VISÃO, uma espécie de diário desta aventura pela costa, ao mesmo tempo que nos brinda com belas fotografias e vídeos dos locais por onde passa (também os pode ver no site do projeto Costa a Pé).
Este é o relato da terceira etapa, entre Porto e Aveiro, realizada no fim de semana de 23 e 24 de março.
Sexta-feira, 22: um Porto iluminado
Desta vez, desloco-me no Intercidades, do Entroncamento até ao Porto, onde terminara a etapa anterior e, amanhã, começa a terceira. O António já lá está – foi mais cedo, para se encontrar com uns amigos. O quarto está reservado, um albergue com quartos de beliches mistos. Espetacular, mesmo junto aos Aliados. Decoração muito jovial, tipo familiar. Encontro-me com o António na estação de S. Bento, um mês de pois de termos passado por ali, no fim da segunda etapa. Uma vez no albergue, acertamos contas e arrumamos as mochilas no quarto. Há o nosso beliche e um outro, de duas holandesas. Quando nos veem, quebram logo o gelo: se falamos inglês, perguntam. “Um pouco”, respondemos.
Decidimos marcar o jantar no albergue. Bacalhau espiritual. Como ainda é cedo, vamos dar um giro, ver umas montras, tirar umas fotos ali por perto. Ao jantar, ambiente familiar. Somos os mais velhos. As conversas fluem e as risadas acompanham histórias hilariantes. Cada um fala das suas aventuras pelos quatro cantos do mundo. A cozinheira senta-se à nossa “beira” e conversamos sobre caminhadas, para não variar. A sopa está divinal, o bacalhau excelente, a cerveja é à discrição.
Para desmoer, uma volta pela Ribeira do Porto. Brutal: muito bom gosto, desde as decorações das lojas e restaurantes às empenas dos edifícios iluminados. Andando junto ao Rio Douro, tiramos bonitas fotos, com a ponte D. Luís, a Lua e a Serra do Pilar como pano de fundo.
De volta ao quarto, e com as duas moças já instaladas, tentamos fazer pouco barulho, a muito custo. Ambos passamos a noite um pouco agitados, enfim.
Despesas: Transporte – €20,30; Jantar – €10; Dormida – €38 (2 pessoas)
Sábado, 23: Porto – Furadouro (Ovar), 40 kms
Acordo pouco depois das 5 da manhã. Tinha dito ao António que era melhor deixarmos as coisas junto à receção, para não acordar as meninas. Assim fizemos. Chego à receção e está um jovem a fazer as limpezas. Põe-me logo à vontade, apesar da hora. Sento-me num sofá virado para a janela e fico espantado. Um trânsito incrível àquela hora, carros e também pessoas a pé. O António desce para arrumar a mochila nas calmas, estamos quase de saída. Às sete, espera-nos na Estação de São Bento uma outra participante na caminhada de hoje, a Lucinda Bento.
Tomamos um pequeno-almoço ligeiro e iniciamos a etapa em direção à Ponte D. Luís. O movimento de há duas horas tinha parado. Está uma calmaria que nem a água do rio mexe. O Porto é lindo, concentrado, com uma luz própria. O Porto tem cheiro e cor. Já do lado da margem de Gaia, abundam antigas fábricas de artes ancestrais ligadas ao rio. A Lucinda é ligeira e tem bom ritmo, o António faz-lhe companhia. Eu fico para trás, a tirar fotos, a fazer vídeos e a assimilar toda a beleza. Bonita a vista do Porto do lado de Gaia. A temperatura está excelente para março, tudo azul – o rio e o céu.
Mais uma surpresa: a companhia de um casal amigo que já não via há 10 anos. O Vítor Lima e a Paula Correia, que nos esperam por baixo da Ponte de Arrábida, em São Pedro da Afurada. Grande alegria em vê-los. Vamos caminhando e conversando sobre outras paragens. O corpo vai aguentado, passo a passo pelos passadiços ou pela areia. Depois de passarmos pela capela do Senhor da Pedra, paramos para beber uns finos na Praia da Granja. Está um tempo magnífico para beber cerveja de manhã, e já temos mais de 15 kms nas pernas. Um casal de americanos fica com alguma inveja do que andamos a fazer. Adoraram a ideia de fazer a costa Portuguesa a pé e dizem que gostavam de participar. Desejam-nos boa caminhada.
Mais um pouco e chegamos a Espinho. Bonita cidade junto ao mar, uma marginal fantástica. Com muita pena minha, é aqui que o Vítor Lima e a Paula Correia nos deixam, ao fim de 23 quilómetros, como previsto. Soube a pouco, mas foi um prazer para mim, que não os via há tantos anos. O almoço serve para meter qualquer coisa no estômago e seguimos, agora só eu, o António e a Lucinda. A temperatura já passa dos 20 graus… A aragem do mar sabe bem, refresca-nos.
Rumo a sul, à tarde bate sempre um silêncio, característico de quem faz muitos quilómetros. Desligar um pouco e simplesmente movermo-nos. Passamos por uma ponte muito singular na Barrinha de Esmoriz, onde só circulam pessoas, integrada na rede dos passadiços. Depois da Praia de Cortegaça, e junto ao Parque de campismo, a paisagem e o terreno muda. Entramos num pinhal, com caminho em areia. Apesar de paralelamente, a pouca distância, passar uma estrada, vamos à descoberta. Pequenas subidas e descidas a puxar mais pelo corpo, mas muito agradável o novo cheiro. Andamos por cima das verduras, para os pés se enterrarem o mínimo possível. O António e a Lucinda à frente, eu mais devagar. Mas vou bem, sabendo que estamos quase a acabar a etapa.
Fico satisfeito por termos chegado os três a Furadouro, onde nos separamos da Lucinda, pouco faladora mas uma excelente companheira. As caminhadas servem para ela “limpar o organismo”, e eu não posso estar mais de acordo.
Os 40 kms da etapa são batidos mesmo à porta da casa onde vamos pernoitar. Abre a porta uma mulher toda simpática, radiante de nos ver, que nos coloca à vontade. Ficamos no 1.º andar, num quarto com camas separadas, wc, televisão e uma cozinha espetacular para quem viaja. Primeiro que tudo, um banho, porque estamos castanhos. E depois deitamo-nos um pouco até à hora de jantar.
A dona do estabelecimento dá-nos dicas sobre locais para comer, depois de informada que é nosso hábito carregarmos um pouco mais no de sábado. Encontramos um restaurante ótimo: uma dose de lulas para dois e meia de carne, regadas com uma garrafa de 7,5dl de vinho verde para cada um. A seguir a este momento de prazer, cama. Durante a noite, ao tentar alcançar uma garrafa de água no chão, caio da cama abaixo. Não foi nada do verde, António! O colchão tinha pouco apoio lateral…
Despesas: Jantar – €23; Dormida – €35 (2 pessoas)
VEJA A GALERIA DE IMAGENS E O VÍDEO DESTE DIA:
Domingo, 24: Furadouro (Ovar) – Aveiro, 42 kms
Possivelmente, é a última etapa a sair às 7 horas, que o Sol já vai alto a essa hora. Escrevo coisas boas no livro de presenças, para que nunca se perca este espírito português que é a alegria de receber alguém. Agradeço a hospitalidade. Ficam na memória do António alguns pormenores dignos de registo no Furadouro. Tiramos fotografias à medida que seguimos em direção ao mar.
Enquanto tomo café perto da marginal, ouvem-se as ondas. Uma súbita vontade de ficar! Mas temos de ir. Vamos direitos a um pinhal, com caminho arenoso e algumas sombras. Temperatura elevada para esta hora da manhã nesta época do ano. Calor. Sinto-me bem e o António também. Mas é no segundo dia que sofremos o impacto do primeiro, por isso há que gerir o esforço.
Progredimos em direção à Nacional 327, que nos leva S. Jacinto. Admiramos a paisagem e o efeito da Ria de Aveiro, espetacular. Sempre pela berma da estrada, a ria à nossa esquerda propicia imagens de um lindo espalho de água.
São muitos quilómetros em asfalto, mas sempre a admirar pequenos pormenores: a cegonha no ninho com a cabeça de fora, a espreitar do alto da chaminé; uma escola abandonada, de outros tempos; uma casa inspirada nos “Senhor dos Anéis”, integrada na paisagem (porque é que não a fotografei?); muitas flores; uma panóplia de cenários que não se veem à beira mar.
De volta à ecovia, comento com o António que é mais perigoso circular por aqui do na berma da estrada. São centenas de ciclistas a passar nos dois sentidos. Torna-se perigoso se queremos virar… sem olhar para todos os lados. Aos 15 quilómetros de caminhada, perto da Torreira, dá-me a sede e ao António a fome. Paramos e abastecemos com uns finos e uns petiscos antes de nos fazermos de novo à estrada.
Tinha combinado encontrar-me com um grande amigo, grande em todos os sentidos, alto e com uma amizade de 49 anos. Amigo de infância, dos sonhos, dos filmes e partilhas loucas. O amigo Rui Leal Vaz, do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, vem até nós e faz uma grande festa. Acompanhava a nossa progressão pela net e admirou-se com o nosso ritmo – que estávamos a andar muito, diz-nos. Por vontade dele, seguiria connosco, mas outros valores se levantavam. Convida-nos para um almoço ligeiro, no parque de campismo próximo, a 2,5 quilómetros, já em São Jacinto. Ele foi andando de carro, e nós nunca mais lá chegamos… Já sentados no restaurante, colocamos conversas em dia, entre umas frescas e umas belas de sandes de carne. Alinhavamos a próxima etapa, maior do que o habitual para aproveitar o feriado do 25 de abril, com a presença ou o apoio dele, porque quatro dias seguidos a andar vai ser duro.
O tempo passa a voar e quase me esquecia, não fosse o António a chamar a atenção para a hora do barco. Mochilas às costas e lá vamos rapidamente para o cais de embarque, ali perto. Obrigado Rui, até para o mês que vem.
É sempre agradável andar de barco. Sentir o fresco na cara e a boa sensação de nos deslocarmos sem caminhar. Em 15 minutos estamos na outra margem da ria de Aveiro, na Gafanha da Nazaré. Faltam 12 km para a estação de comboios de Aveiro, o troço menos interessante do percurso, sem contar com Aveiro, claro.
As casas na Gafanha e nos arredores, muito peculiares, são de grande variedade arquitetónica. Os ponteiros do relógio caminham para as seis da tarde. As pessoas cumprimentam-nos, admiradas com a nossa convicção de chegarmos a horas ao comboio, às 20h. Muito alcatrão, muitas retas e carros, a maior quantidade de asfalto de todas as etapas até agora. Só quem está habituado a fazer grandes distâncias a pé conhece as defesas do nosso corpo que nos permitem simplesmente desligar, parcialmente, as zonas mais doridas e seguir em frente. Por outras palavras, na verdade apenas uma, “aguenta”.
Finalmente, Aveiro. Um espetáculo! Tudo é bonito e colorido. As fachadas das casas, os vasos com flores, a ria, os barcos com os efeitos tradicionais, até os habitantes têm cor. A “Veneza de Portugal”… Entre fotos irresistíveis, deslumbramos-nos a apreciar aquele quadro, embelezado com o pôr do sol.
Falta menos de uma hora para o comboio. Com algum suor, percorremos 42 kms em pouco mais de 10 horas. Descansamos num bar, costas mais leves e a cabeça cheia de imagens e pormenores ricos, que nunca esqueceremos. António, grande companheiro de viagem, já temos mais uma. Obrigado e um abraço. E não te esqueças: em abril, são 4 dias seguidos (25, 26, 27 e 28), entre Aveiro e a Nazaré, num total de 168 kms.
Um agradecimento a todos os que participaram ou apoiaram esta etapa.
Despesas: Alimentação – 10€; Transportes – 2.05€ barco e €15,20 comboio de regresso a casa (Aveiro-Entroncamento)
VEJA A GALERIA DE IMAGENS E O VÍDEO DESTE DIA:
As 16 etapas do projeto Costa a Pé
1) 26 e 27 de janeiro: Monção – Caminha – Viana do Castelo, 47 + 27 kms
2) 23 e 24 de fevereiro: Viana do Castelo – Póvoa de Varzim – Porto, 53 + 42 kms
3) 23 e 24 de março: Porto – Ovar – Aveiro, 44 + 38 kms
4) 25, 26, 27 e 28 de abril: Aveiro – Tocha – Figueira da Foz – Pedrógão – Nazaré, 47 + 38 + 38 + 45 kms
5) 25 e 26 de maio: Nazaré – Peniche – Ribamar, 51 + 36 kms
6) 8, 9 e 10 de junho: Ribamar – Ericeira – Almoçageme – Cascais, 36 + 27 + 27 kms
7) 13 de junho: Cascais – Lisboa, 33 kms
8) 22 e 23 de junho: Trafaria – Meco – Sesimbra, 30 + 25 kms
9) 20 e 21 de julho: Sesimbra – Setúbal – Comporta, 30 + 28 kms
10) 24 e 25 de agosto: Comporta – Santo André – Porto Covo, 36 + 34 kms
11) 21 e 22 de setembro: Porto Covo – Almograve – Odeceixe, 35 + 37 kms
12) 26 e 27 de outubro: Odeceixe – Chabouco – Vila do Bispo, 35 + 31 kms
13) 23 e 24 de novembro: Vila do Bispo – Sagres – Lagos, 33 + 37 kms
14) 28 e 29 de dezembro: Lagos – Portimão – Armação de Pêra, 28 + 27 kms
15) 25 e 26 de janeiro de 2020: Armação de Pêra – Quarteira – Olhão 31 + 35 kms
16) 23 e 24 de fevereiro de 2020: Olhão – Cabanas – Vila Real de Santo António 35 + 25 kms