A ironia corrosiva pode ser pedagógica. Mostra-o Manuel Monteiro, revisor e autor do livro Por Amor à Língua (ed. Objectiva), quando, a pedido da VISÃO, aborda a praga de redundâncias que assola a fala e a escrita entre nós. O português, diz, “já não se propõe; ele autopropõe-se”. Tende ainda a não se vitimizar: “Agora dá-lhe para se autovitimizar.” Manuel Monteiro avança outros bons exemplos da praga – como o confronto entre “automutilou-se” e “mutilou-se”, palavra esta que “não perde átomo de significado”. Também é vulgar ler-se e ouvir-se por aí que “muitos estão a fazer ‘a sua autobiografia’”…
Com uma pandemia em curso, difícil é escolher as expressões infetadas pelo vírus redundante. A deputada Edite Estrela, autora de livros e de programas de TV sobre bem falar e escrever português, opta, por exemplo, pelo dito “há dias (meses, anos, séculos) atrás”. Este vício de linguagem, diz, “não só leva atrás o excessivo advérbio”, mas também “muito boa gente, desde estrelas mediáticas a autoridades em diferentes áreas e saberes”. Atualmente presidente da comissão parlamentar de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, a especialista relata ainda uma cena que presenciou numa loja de roupa. Uma cliente “hesitava entre duas blusas, muito diferentes, mas igualmente bonitas”. Atenta à situação, “a vendedora sugeriu-lhe que levasse ‘ambas as duas’”. Perante o erro grosseiro e recorrente (o “termo ‘ambos’, de origem latina, significa ‘dois ao mesmo tempo’”), a cliente “respondeu com elegância: ‘Boa ideia, fico com ambas’”, conta Edite Estrela. A vendedora, porém, não percebeu a “subtileza” – elogiou a decisão e repetiu a redundância…
“PARA ALÉM”? E O POBRE “AQUÉM”?
Já agora, Edite Estrela anota outra redundância frequente: a do “protagonista principal”, mais uma vítima da ignorância do sentido etimológico das palavras. “De origem grega (de protos, ‘primeiro’, e de agonistes, ‘ator, lutador’, o protagonista designava ‘o que combate na primeira fila’, ‘o que ocupa o primeiro lugar’, ‘a personagem principal’”, explica a deputada.
E Manuel Monteiro volta à liça com a verve afiada. A vítima é agora a redundância “para além”. Diz que “temos ‘além-fronteiras’, ‘além-mar’, ‘além-túmulo’.” Não há, pois, “necessidade de amparos”. Ou, em caso contrário, “falta criar simétrico amparo para ‘aquém’”…
A especialista Emília Amor ensina que o uso da língua “obedece a princípios essenciais” e que “um deles é o da economia dos meios postos ao serviço dos objetivos ou efeitos visados”. É a infração a esse princípio, por repetição inútil de palavras ou ideias, que origina a redundância. Coautora, com Aldina Vaza, do Dicionário da Língua Portuguesa – Léxico, Gramática e Prontuário, com chancela da Texto Editora, a linguista dá dois exemplos da pandemia. O primeiro é a expressão “elo de ligação”. Por definição, diz, “elo” é “um elemento de ligação”. Mas aqui parece haver pouco a fazer. “A expressão está tão enraizada no repertório do falante comum que, hoje, já há dicionários que a registam como combinatória fixa”, verifica Emília Amor.
O segundo exemplo é a frase “prefiro antes café”. Nesta estrutura frásica, o “verbo já comporta, na sua génese latina, o prefixo ‘pre-’, que exprime ‘anterioridade’, ‘opção antecipada’”. Logo, explica a linguista, “‘antes’ constitui uma evidente redundância”. Emília Amor ressalva, no entanto, que “nem sempre a redundância é indesejável”. Muitas vezes, diz, “precisamos dela como reforço da informação ou forma de desfazer ambiguidades, para conferir mais força ou expressividade ao discurso ou até para lhe imprimir um registo de humor ou de ironia”.
A propósito, Edite Estrela lembra o primeiro verso do mais conhecido poema de Mensagem, de Fernando Pessoa, Mar Português – “Ó mar salgado, quanto do teu sal”… E pergunta: “Quem não gosta de ‘viver a vida’, ainda que em viciosa redundância?”
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