Tinha os olhos fechados quando ouviu as bandas sonoras da autoestrada a dar o alerta para o perigo. A sonolência, pesada e incontrolável, voltava a atacar. “Não costumava viajar sozinho de carro, mas daquela vez eram apenas 40 quilómetros e pensei que não haveria problema”, recorda Paulo Marques (nome fictício). Não chegou a sofrer um acidente, mas nunca mais esqueceu o susto. Para o jovem de 28 anos, os problemas associados com a excessiva sonolência, especialmente em cenários monótonos, começavam a afetar-lhe a vida profissional. “Chegava a morder as mãos em reuniões mais longas para não adormecer e, durante anos, não fiz uma viagem Porto-Lisboa e nem me passava pela cabeça conduzir sozinho em grandes percursos”, conta. Após exames médicos, veio o diagnóstico: narcolepsia, uma alteração neurológica (pouco comum) que afasta o controlo do sono e da vigília. Hoje, graças à medicação, tem uma vida perfeitamente normal, mas só as pessoas mais próximas conhecem a sua doença. No trabalho, onde as exigências são cada vez maiores, tem medo de abordar o assunto.
O depoimento de Paulo (que prefere não ver o seu nome verdadeiro publicado na VISÃO) está em linha com um estudo de 2015 realizado em 19 países europeus, segundo o qual 17% dos condutores (dos 12 434 questionários respondidos) reconhecia já ter adormecido ao volante nos dois anos anteriores, tendo 7% destes sofrido acidentes. “Fala-se no álcool, na velocidade, mas liga-se muito pouco à sonolência ao volante, quando está provado que cerca de 20% dos acidentes estão relacionados com a sonolência”, sublinha Marta Gonçalves, 61 anos, coordenadora do Centro de Medicina do Sono do Hospital CUF Porto e responsável por aquele e outros estudos sobre o tema. Ao contrário de Paulo, a maioria dos inquiridos não tinha qualquer patologia associada, sendo apontada como causa principal dos desastres a má qualidade do sono na noite anterior (42,5%).
Quando o trabalho aperta, é normal cortar-se no tempo de descanso. No entanto, relata a sonologista, “reduzir uma hora de sono é tão significativo que, na mudança para o horário de verão, costuma haver mais acidentes no dia seguinte”. “E isso acontece porque as pessoas andam todas no limite”, continua. Se pensarmos que, em média, necessitamos de dormir sete a oito horas por noite, mas que cerca de 30% da população portuguesa reconhecia, num estudo realizado em 2010, dormir seis horas ou menos, facilmente se conclui que existe uma privação do sono generalizada. Em tempos, Marta Gonçalves recebeu no consultório uma professora universitária, após um grave acidente de viação provocado por adormecimento ao volante. Foi-lhe pedido um estudo do sono, mas não encontrou qualquer patologia. “Era uma perfecionista, muito dedicada aos alunos e não se deitava sem lhes ter respondido aos emails, encurtando progressivamente o tempo de sono”, recorda.
Passamos grande parte da nossa vida a dormir, mas ainda desvalorizamos essas horas de regeneração física e mental. Na estrada, a negligência pode ser fatal. “Quando as pessoas adormecem ao volante, normalmente vão embater à velocidade que circulam, não travam nem têm qualquer defesa, por isso são acidentes de alta mortalidade”, descreve a especialista. Podem não fechar completamente os olhos, mas o seu discernimento e os seus reflexos são seriamente afetados. No entanto, segundo outro estudo, feito em 2015 a uma amostra de 900 portugueses, 54,1% dos condutores não abandonam o volante quando sentem sono. Há quem abra as janelas do carro, coloque a música mais alta ou regule o ar condicionado para temperaturas mais frias. “A única medida eficaz contra o sono é… dormir”, garante Marta Gonçalves.
O alerta vale para a população em geral, embora cerca de 50% dos acidentes por sonolência envolvam jovens com 25 anos de idade ou menos. “Dão menos importância ao descanso e é muito fácil entrarem pela noite dentro… depois aparecem os picos de acidentes entre as dois e as seis horas da manhã”, sublinha Marta.
Quando o mal é sono
Lídia Navarro, professora reformada, 69 anos, sempre gostou de conduzir. E sabia que as paragens nas estações de serviço a meio das viagens eram obrigatórias. “Nunca passei das marcas, quando sentia sonolência, parava, e chegava a dormir uma hora dentro do carro”, conta. Após anos a acordar cansada, procurou ajuda médica e foi-lhe detetada apneia do sono (doença em que há uma obstrução da passagem do ar pelas vias respiratórias, traduzida numa menor qualidade do sono). À noite, passou a usar um aparelho ventilador que aumenta a pressão nas vias aéreas superiores e as melhorias foram imediatas, desaparecendo a necessidade de dormitar durante o dia. Esta e outras patologias do sono são, dizem os especialistas, facilmente tratáveis. “Mas há uma carência de diagnóstico, até porque o desconhecimento dos próprios médicos é generalizado, pois o tema é pouco abordado nas faculdades”, sustenta Marta Gonçalves. Muitas vezes, as queixas persistem e os pacientes percorrem diferentes especialidades, sem encontrarem uma solução.
Um estudo suíço, publicado em 2015 pela revista científica The Lancet, concluía existir uma prevalência de apneias do sono, moderadas a graves, em 23,4% da população feminina e 49,7% da masculina. “Em Portugal não será muito diferente”, acredita Marta Gonçalves. No que diz respeito aos condutores profissionais, com hábitos de vida sedentários, esta percentagem será maior, prevendo a lei portuguesa que a carta de condução possa ser emitida ou revalidada, desde que o condutor com apneia “comprove, por parecer médico da especialidade competente, ter um controlo adequado da sua afeção, seguir o tratamento adequado e estar melhor da sua sonolência”. Estes casos estão devidamente controlados. Cabe aos outros dormirem sobre o assunto.
Sonolência ao volante
Vários estudos comprovam que a privação do sono origina acidentes na estrada
20% – Percentagem de acidentes relacionados com a sonolência
17% – Pessoas que reconhecem ter adormecido ao volante
7% – Condutores que adormeceram ao volante e que tiveram acidentes de viação
54,1% – Percentagem de condutores que, apesar de sentirem sono, admiteM continuar a conduzir
5 horas – Número de horas de sono abaixo do qual o risco de acidente aumenta 4,5 vezes
Fonte: Associação Portuguesa do Sono, Sleepiness at The wheel across Europe (2105) e Sleepiness and motor vehicle in the representative sample of portuguese drivers (2015)