“Olha, é o dos olhos bonitos!” O grito de uma moradora de Benfica faz saltar todas as suas amigas das cadeiras do café do bairro. Nos últimos dias de campanha para as autárquicas, o Bloco de Esquerda (BE) promovia uma “arruada” e os olhos azuis de Ricardo Robles, candidato à Câmara de Lisboa, ameaçavam transformar até a mais empedernida militante de outro partido numa simpatizante bloquista. Já ao lado do candidato, a mulher que dera o grito de alerta conversa com ele como se sempre o tivesse conhecido. “Sabe, quando o vi pensei: ‘Este é bonito demais para andar na política…’” Uma vizinha atropela-a na conversa. “Você tem uns olhos maravilhosos, uns olhos que a gente até cai…” Mais atrás, outra idosa abana-se com o panfleto que acabara de receber dos militantes, tentando apaziguar os calores: “Ai, que borracho.” O candidato agradece os elogios mas sublinha que as ideias é que importam. “Se for de ideias como é bonito, estamos encantadas!”
Ricardo Robles foi eleito vereador, mas o resultado do BE esteve longe dos melhores resultados obtidos em eleições anteriores. Na hora do voto, os olhos azuis do candidato pesaram alguma coisa na decisão? E a favor, ou contra?
A beleza física é um atributo bem cotado socialmente. Os modelos da biologia e da psicologia evolucionista confirmam, há décadas, que ser bonito é um ativo precioso mas – não há bela sem senão – tem vicissitudes: não ser levado a sério ou ficar refém desse atributo são algumas delas.
O assunto mereceu a atenção de um grupo de investigadores israelitas, que acabaram por provar que a discriminação dos mais belos existe e que as mulheres são o principal alvo dela. Bradley Ruffle e Ze’ev Shtudiner enviaram candidaturas fictícias, com e sem foto (foi medido o grau de atração), a 2500 empresas que estavam a contratar. Confirmaram que o visual atraente influenciava positivamente a marcação de entrevistas mas, no caso das senhoras, as fotos menos atraentes levavam vantagem sobre as outras. Explicações possíveis, segundo este estudo: os gestores decidem ainda em função da crença “se é bonita, não é inteligente” e as entrevistadoras preferiam descartar candidatas mais atraentes do que elas próprias (e por isso rivais), mesmo quando superavam os requisitos.
Não é de estranhar, portanto, que em culturas empresariais mais competitivas, existam millennials bem sucedidas a tomar especiais cautelas para não arranjarem sarilhos. Foi assim que Eileen Carey, diretora da startup Glassbreakers, em Silicon Valley, explicou no mês passado à BBC porque decidiu escurecer a cor do cabelo, trocar as lentes de contacto por uns óculos e esquecer os saltos altos: “Para ser levada a sério”, não correr o risco de parecer muito jovem, ser rotulada como “loura burra” ou “ser tratada como um objeto sexual”.
O senhor “efeito de halo”
Beleza e a inteligência não são mutuamente exclusivas mas todos somos instintivamente atraídos pelo belo, e quem se aproxima do ideal dominante tem mais força social. Assim se compreende que a indústria da beleza seja uma das mais florescentes, facilitando a vida aos menos abençoados pela natureza ou “prejudicados” pelos efeitos do tempo. A obsessão pela beleza remonta a tempos imemoriais e deve-se a um mecanismo cognitivo identificado pelo psicólogo social americano Edward Thorndike, o chamado efeito de halo: associamos um visual excecionalmente bonito à presença de outros atributos que podem, ou não, lá estar.
Na sociedade do marketing, político e não só, a beleza e a juventude são um bom cartão de visita, mas não mais que isso. Contudo, na praça pública que são hoje as redes sociais, abundam comentários sobre os atrativos das figuras públicas. Primazia feita às bloquistas Mariana Mortágua e Catarina Martins, a que se seguiu a vez dos cavalheiros, na última campanha às autárquicas. “Já levei um bacalhau deste senhor”, comentava uma mulher no Twitter, acerca de João Ferreira, da CDU. “Só queres rapazes jeitosos”, replicava outra. Ricardo Robles e João Ferreira lideraram a lista de nomeados pela página do Facebook Sexy Autárquicas, assim como o candidato Joaquim de Almeida (pela CDU, à Câmara de Fornos de Algodres). Durante os debates em Lisboa, foram mais do que muitos os comentários à imagem e poucos às ideias dos candidatos de esquerda. Nem faltaram os tweets de feministas como Rita Ferro Rodrigues, fundadora do movimento Capazes.
E a credibilidade? “Não se perdem ou ganham eleições só por ter uma cara bonita, mas pelo confiança e talento”, afirma o deputado do PSD João Almeida, que começou nestas lides aos 25 anos. Apesar dos comentários à sua “cara de puto”, ele nega ter sentido que deveria cortar o cabelo ou usar gravata para parecer mais velho e credível.
Joana Amaral Dias, psicanalista e também uma das candidatas à autarquia alfacinha, encara “com naturalidade” fatores como a beleza ou a aparência atraente, “presentes nas relações pessoais”. Complicado é “referir tais atributos com a intenção de apoucar e diminuir as qualidades e capacidades discursivas, sobretudo das mulheres” e, acrescenta, “é uma tática disseminada na nossa sociedade machista e patriarcal”.
“Não sou só a minha imagem”
Vera Nobre da Costa, formada em Psicologia, e que foi uma das mais prestigiadas gestoras na área da publicidade, onde manteve cargos de topo, nota que há mais realismo no mundo profissional e que, mesmo quando ainda era inexperiente e teve de fazer uma apresentação a um grande cliente, foi a competência e a responsabilidade que jogaram a seu favor: “À primeira vista eu era ‘uma miúda gira que não percebe nada disto’, mas impus-me pela personalidade e atitude convincente.” Sem nunca negar a sua feminilidade – “unha pintada, maquilhada, vestida com gosto, que faz parte de uma pessoa segura e com autoestima” – a ex-chairman da McCann Erikson e atual administradora da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva lembra que a sensatez e sobriedade, no dress code e na postura, fazem parte dos requisitos, mas não apagam o gosto incontrolável pela trivia: “É mais fácil discutir, por exemplo, o aspeto da Judite de Sousa do que dar atenção ao que ela diz.” Isso também lhe aconteceu em prestações televisivas: “Ai, estavas tão gira com aquele corte de cabelo.” Deixava-a assombrada a importância dada à sedução.
Miguel Stanley, diretor clínico da White Clinic, também enfrentou situações parecidas em palestras públicas sobre ciência: “No final vinham ter comigo para tirar uma selfie, diziam ‘você é tão bonito!’, e eu perguntava: ‘Não tem interesse em saber mais sobre o meu estudo?’”
Porque o assunto é sério
A imagem pode ser um estorvo, sim, particularmente em profissões com elevado grau de especialização, em que os requisitos técnicos da função estão na primeira linha. Confirma-o a pesquisa do psicólogo britânico Will Skylark, da Universidade de Cambridge, divulgada este ano. Os rostos atraentes que constavam nos trabalhos captavam a atenção pública recebiam avaliações menos favoráveis que os outros colegas. Estes resultados não assustam o cientista Miguel Bastos Araújo. A exercer funções no centro de investigação em biodiversidade e recursos genéticos (CIBIO-InBIO), ele não se furta a divulgar os seus estudos nos media, mas compreende quem evita fazê-lo: “Na minha área, quem não for nerd e se dedicar intensamente ao trabalho tem dificuldade em competir pelos poucos lugares disponíveis”. Ou seja, a componente erótica fica à porta, já que “o mérito representa 90% na hora de avaliar um projeto”. Além disso, os tempos não são o que eram, há menos tolerância para manobras sexistas, que tendem a acabar mal. Caso do Nobel Tim Hunt, que há dois anos foi cilindrado nas redes sociais por afirmar não querer mulheres bonitas no laboratório. “Apaixonas-te por elas, ou elas por ti e choram quando as criticas”, podia ler-se no Guardian. De pouco lhe valeu a mulher, uma antiga aluna, vir em sua defesa: aos 72 anos, perdeu o lugar e manchou a carreira.
No mês passado, o deputado conservador canadiano Gerry Ritz apelidou a ministra do ambiente Catherine Mckenna de “Barbie do clima”. A resposta não tardou. “Fala assim com a filha, a mãe ou a irmã? Precisamos de mais mulheres na política, não de comentários sexistas.” O deputado retirou o que disse, em menos de meia hora.
Progressos e paradoxos
“A democratização de costumes, a informalização do meio profissional e o mediatismo permitem que seja normal “homens e mulheres fazerem valer a sua imagem”, reconhece Ana Loya, presidente da Mindshift. No início da sua carreira, na consultoria, era a única mulher entre homens. “Vestia-me como se fosse mais velha para ser levada a sério.” Hoje já não é assim, considera. “Ninguém questiona a excelência de mulheres líderes e bonitas, como Conceição Zagalo ou Cláudia Goya, embora o preconceito e machismo levem as mulheres a camuflar atributos físicos para não serem importunadas”.
Às vezes, o mesmo sucede no mundo masculino. A tese de doutoramento da socióloga Elisabete Rodrigues, no ISCTE, agora publicada em livro, vai ao fundo da questão. Super Homem ou Algo do Género (Livros Horizonte, 248 págs., €16,90) resultou de entrevistas feitas a homens com idades na casa dos trintas e identificados como metrossexuais. A especialista em questões de género concluiu que “a sociedade atual tanto premeia como castiga a beleza”. No masculino, “sentem pressão para se manterem jovens e com boa aparência, mas ainda são apontados por isso”, como refletem dois dos testemunhos da investigação. Joaquim referiu “algum estigma por ser bonito ou cuidar da imagem e receava que o catalogassem de fútil”. Para Nuno, “isso era por vezes lido, no meio profissional, como falta de inteligência”.
O caminho é sempre em frente
Bastam poucos segundos de interação para se formar uma boa impressão numa entrevista de emprego, mas Amândio da Fonseca, CEO da Egor, mostra-se confiante no triunfo do profissionalismo: “Visual, simpatia e sedução contam num processo de recrutamento, mas atrás da avaliação das competências técnicas e do potencial dos candidatos”. Há muito mais a fazer, diz. “Ainda há mulheres a serem preteridas face ao sexo oposto por estarem em idade fértil, e uma minoria que se rege ainda por instintos básicos e preconceito.” Com os valores da estética e da perfeição em alta, não admira que a imagem seja usada como arma de arremesso. A este respeito, Pedro Amorim, diretor da Experis Portugal, lamenta que ainda haja situações de “inveja e calúnia que recaem sobre homens, mulheres, bonitos e feios. Infelizmente isso é muito nosso, dos países latinos”.
Resta viver com alguns dissabores e seguir em frente, sem vacilar. Quando era bolseira em Oxford, no Reino Unido, nos idos anos 1970, Maria Filomena Mónica, a primeira doutorada em Sociologia em Portugal, percebeu que tinha um problema: “Por cada sete homens havia uma mulher, nenhuma particularmente bonita; eu tinha boa figura, fazia questão de usar minissaia, botas e rímel, e os homens viam-me como objeto sexual.” Soube, mais tarde, que alguns colegas haviam feito reparos do tipo “por ser bonita é que progrediu na carreira.” A quem possa interessar, deixa uma pista: “Ser quem se é, afirmar-se sem dar azo a conversas ambíguas e, se possível, ignorar o machismo.”
Aspirar à beleza pura
Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe. Um ditado que assenta como uma luva quando falamos de um atributo tão poderoso e perturbador. Falta saber de onde vem a intenção de humilhar e denegrir, o ciúme, a inveja maligna. “Só acarreta problemas a beleza genuína, que vem de dentro e se manifesta na relação”, esclarece a psicoterapeuta Patrícia Câmara. “Quem não tem brilho interno tenta apagar no outro aquilo que inveja, porque não tem… ou tem e não sabe.” O próprio culto da aparência, acrescenta a especialista em psicossomática, “não é mais do que a luta contra o medo de não ser amado, bonito por dentro.”
Tal vai ao encontro do trabalho da psicóloga americana Heather Patrick, do Baylor College of Medicine, no Texas: crianças com grande poder de atração podiam tornar-se adultos inseguros, por desenvolverem uma autoestima contingente (assente na avaliação dos outros), com consequências limitadoras: desejar ser feio só para ser aceite como a pessoa que é ou boicotar o sucesso, pelo receio de ficar refém da imagem.
Se fosse viva, a diva do cinema americano Hedy Lamarr teria hoje 102 anos. Não foi reconhecida em vida enquanto inventora e precursora do wifi, telemóveis e sistemas GPS. Casou seis vezes e morreu sozinha. Quando lhe perguntavam o segredo para ser bela, ela ironizava: “Qualquer rapariga pode ser bonita, basta que esteja quieta e faça um ar de estúpida.”
No outro extremo, uma cena memorável da série This Is Us, na Fox Life, a candidata excluída num casting de voz acusa a organização de a discriminar por ser obesa, trocando-a por uma jovem magra e bonita. Repetida a prova da selecionada, desfez-se ali o equívoco. Naquele dia, venceu o talento. E alguém ganhou uma nova visão de si mesma.
(Artigo publicado na VISÃO 1284, de 12 de outubro de 2017)