Na Escola Básica Engenheiro Manuel Rafael Amaro da Costa, em São Teotónio, o ano escolar tinha começado há uns dias. Aqui, o ano escolar não começa como nas outras escolas. O toque de entrada e de saída, as aulas, os níveis de escolaridade, os agrupamentos etários, a avaliação, o sistema de ensino, nada é como nas outras escolas públicas. Os alunos não são em maioria portugueses. Convivem neste recanto alentejano miúdos de mais de duas dezenas de nacionalidades, vindos de todos os cantos do planeta, aprendendo uma nova realidade por entre os esquissos ilusórios de uma terra prometida. Vieram da dificuldade, da pobreza, de guerras, de perseguições, de vidas difíceis e cenários vazios de esperança. Transportam língua, religiões, hábitos, culturas diferentes. São crianças, que chegam à escola mais desenraizadas que as outras, mas igualmente ávidas de aprender. Algumas já receberam duros ensinamentos sobre a vida. Alguns, com 8, 9, 10 anos, nunca tinham posto um pé num estabelecimento de ensino. Cada uma das suas realidades formam a realidade desta escola, que teve de tornar-se diferente para ser igualitária.
A primeira dificuldade que qualquer aluno encontra é a mesma com que se depara um imigrante em solo de acolhimento. No Alentejo, como em qualquer outra parte do mundo, às vezes não passa de um eufemismo precário. A grande muralha da língua é capaz de causar divisões entre alunos, assim como entre estes e os professores. Se muitos dos estudantes nunca tinham estado numa escola, nenhum dos professores tinha estado numa escola como esta, que um dia teve de enfrentar o espelho e os mais frágeis estilhaços de uma explosão demográfica no seu território.
Não podíamos continuar a assistir ao aumento exponencial do abandono escolar (em 2011 era de 30 por cento) e das taxas de reprovação, que começavam a atingir médias de 40 por cento do nossos alunos”, diz Rui Coelho, diretor do agrupamento de escolas de São Teotónio. Por junto, a gravidade dos números não refletiam apenas um problema escolar, mas um problema social, que cedo ou tarde cairia nos braços da freguesia. Se a boa regra da educação é a inclusão, não fazia sentido excluir dos efeitos as suas causas.
Em 2011, decidiram criar de raiz as bases de um novo sistema de educação, adaptado à diversidade do seu núcleo escolar. “Tivemos de avançar para um contrato de autonomia. Neste, o Ministério da Educação permite-nos alterar os currículos dos meninos. E foi assim que conseguimos ‘prender’ estes alunos à escola. Eles iam às aulas de Português, mas não iam, por exemplo, às de História, Ciência ou Geografia, porque não estavam lá a fazer nada. Era o mesmo que uma criança portuguesa assistir a uma aula de História em mandarim. Havia sempre por aí grupos de miúdos abandonados pelos corredores. Não podíamos ficar à espera que as crianças aprendessem por si”, acrescenta o diretor.
Todas estas disciplinas curriculares, que para muitos dos alunos eram como ciências ocultas, foram transformadas numa disciplina, criada propositadamente para eles: Glossário, que integra um pouco de todas, mas sendo a sua pedra basilar o ensino do português. “É claro que isto envolve um imenso trabalho dos professores e das direções das escolas. Basta olhar para os horários para perceber.” Estes são, em si, uma verdadeira disciplina de ginástica pedagógica. São como várias escolas a funcionar numa só. “O número de alunos estrangeiros é tão elevado que são os alunos portugueses que têm aulas à parte, sendo que todos partilham as disciplinas universais, como a Ginástica, a Educação Visual e a Música. Os horários são praticamente individuais para os alunos de língua não-materna”, explica o diretor.
Na disciplina Glossário, que funciona como uma base de dados, em que cada um dos alunos pode aceder facilmente no Moodle, o fio condutor não é apenas a língua, mas a cultura portuguesa. Há três níveis: A1, que é a iniciação; A2, nível médio; e B1, mais avançado, em que o nível de entendimento e expressão do português já permite a frequência de outras aulas.
“É muito complicado, mas todo este projeto está a resultar numa experiência muito enriquecedora para alunos, professores e órgãos de gestão.” As taxas de abandono escolar em São Teotónio estão hoje um pouco acima dos níveis nacionais, que em 2016 era de 14 por cento. Este método não é perfeito (tal não existe quando o tema é Educação), mas conquistou o Selo de Escola Intercultural, da Direção-Geral de Educação.
Quando não estão nas aulas, é quando melhor a sua multiculturalidade se demonstra. As crianças transportam às costas adereços de imaginários tão distantes como a Hello Kitty e o Incrível Hulk, quase tão distantes como as suas procedências. Nem todos partilham a língua adotiva, pois alguns acabaram de chegar. Os que se encontram há mais tempo em São Teotónio, mais integrados, são naturais guias e tradutores. Por vezes, comunica-se em inglês. Mas, em geral, a comunicação faz-se pela linguagem universal das crianças num recreio. Observá-los é como vislumbrar um pedaço de mundo como este devia ser.
Não deixam de ser búlgaros, nepaleses, indianos, bangladeshi, tailandeses, romenos, alemães, russos, holandeses, ingleses, ucranianos, moldavos, azeris, angolanos, cabo-verdianos, guineenses, brasileiros, chineses, de onde quer que sejam, só porque as circunstâncias os tornaram portugueses a aprender Portugal. Ali, são do “planeta escola”. Naquele espaço, é como se todas as fronteiras desaparecessem e aquele universo fosse só deles, sem barreiras de língua, de religião, sem contas antigas para acertar, sem heranças de preconceito, questões de raça, etnia, nacionalismo, género. Isso, fica lá para fora, onde os adultos ainda aprendem a seguir o seu exemplo.
UM MAR DE ESTUFAS
Há uma razão para que a escola de São Teotónio seja uma das mais multiculturais do mundo. O seu território tornou-se assim por um fruto que brota da terra, na freguesia de São Teotónio – a maior do concelho de Odemira, que é o maior concelho de Portugal.
É tão grande, que vai do interior serrano até ao mar. Mas não assim tanto que por ali se possam vislumbrar os arrozais da Indochina, as selvas pantanosas subtropicais do Bangladesh, as extensas planícies da Tailândia central ou as suas praias paradisíacas, as águas do Ganges, a cordilheira dos Himalaias ou o imenso Mar Negro. Aqui, quando a vista é suficientemente alta, apenas se vê o grande mar branco das estufas, que no horizonte divide aposentos com o Atlântico.
Dentro das estufas, nasceu um mundo, onde parece que todas as civilizações coexistem, para trabalhar de sol a sol no universo dos frutos vermelhos. Frutos do tamanho de polegares conquistaram hectares e hectares de território, plastificando a paisagem, formando debaixo dessa camada um novo tecido social que cruza mais de quarenta nacionalidades. Milhares de pessoas, a tentar sobreviver como um português qualquer neste enorme pedaço de Alentejo, que só por eles não está desertificado.
Há pouco mais que uma década, os colossos multinacionais de frutos vermelhos descobriram em Odemira uma Califórnia de baixo custo e produção intensiva, com o sol a brilhar durante quase todo o ano, solos arenosos e água em abundância, não fosse o concelho atravessado pelo Perímetro de Rega do Mira. O facto de também se encontrar no perímetro do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina não parece ter muito peso nesta equação expansionista, que disparou nos números da imigração e na balança de exportações.
SOCIEDADE DAS NAÇÕES
No concelho, o impacto social, territorial e paisagístico são por enquanto os seus frutos mais óbvios. As explorações de frutos vermelhos expandiram de tal forma na região, que esta não se tornou apenas a maior de Portugal, mas de toda a Europa.
tualmente, a extensão destas explorações já ultrapassa três mil hectares de território, tendo na freguesia de São Teotónio a sua maior massa produtiva. No total, os lucros destas multinacionais ascendem a perto de 150 milhões de euros por ano. Odemira obedecia então à tendência desertificadora da maior parte dos concelhos do interior do País. Nem a litoralidade do sudoeste alentejano parecia capaz de reverter o triste fado da sua interioridade. Nos anos 60, partiram daqui gerações sem regresso. No seu vagar, a vida foi abandonando o maior concelho do País, isolando os lugares, deixando os velhos cada vez mais sós, enquanto os novos cediam à regra. Nunca foi a vontade o que os fez emigrar. Os fluxos migratórios movem-se pela necessidade, toda a gente sabe. Também é verdade que o fenómeno raramente se inverte tanto como em Odemira, em que um ponto de partida se converteu num ponto de chegada.
Se Odemira fosse um daqueles concelhos apocalípticos em que a realidade se torna num filme de ficção, é como se o seu território tivesse sido dominado por uma elite de framboesas, que lideram um exército de amoras e de mirtilo, secundados por uma legião de morangos e uma retaguarda de produtos hortícolas, na frente de uma revolução agrária com as sementes de multinacionais, a precisar de proletariado como de pão para a boca. Problema: as forças nativas ofereciam resistência, entrincheirando-se na sua própria desertificação. Comadres e compadres em idade de reforma e rebeldes de juventudes perdidas noutras ilusões, não constituíam exatamente a mão de obra que os pequenos frutos exigem. Pela sua delicadeza, este tipo de cultura não dispensa a mão humana. Trabalho duro, intensivo como a sua produção. A escassa resposta local e a pouca apetência para este tipo de trabalho, determinou um surto migratório nunca antes visto nestas paragens.
O caudal de imigração laboral no concelho teve início no virar do século, coincidindo com a falsa premissa que o Portugal comunitário galopava um desenvolvimento irreversível.
hegaram os contingentes migratórios de países do leste europeu e do Brasil. Nesta época, começou também a criar raízes a maior comunidade imigrante do concelho, de origem búlgara, agora em vias de ser ultrapassada pela nepalesa. Os trabalhadores nepaleses, indianos e tailandeses, são os mais requisitados para as estufas, mas estão longe de estar sozinhos, pois o fluxo migratório para Odemira é constante e as suas origens continuam muito diversas, embora em grande escala do continente asiático.
Uma realidade que cresce noutra não é como um fruto a crescer numa estufa. Toda a diversidade que brotou no concelho trouxe com ela muitos problemas sociais, desafios de integração. A Câmara Municipal de Odemira não fez vista grossa à questão, que é ambígua.
Não vale a pena achar que todo o contingente imigrante que mora no concelho está em situação legal, com os descontos em dia para a Segurança Social. Basta cruzar números. Por cada 100 hectares de exploração de frutos vermelhos, são necessários pelo menos mil trabalhadores. A área de explorações já ultrapassa os 3 mil hectares, mas em Odemira o número de estrangeiros com estatuto de residente não chega a 3 500 cidadãos. Só a comunidade búlgara de São Teotónio tem perto de três mil pessoas.
As empresas fixadas na região garantem que os seus trabalhadores têm a sua situação legal, que gastam somas avultadas em Segurança Social e que as suas portas estão sempre abertas às inspeções do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Os números não-oficiais apontam para que, um pouco por todos os quadrantes de Odemira, estejam atualmente perto de 40 mil imigrantes. Alguns estarão de passagem, à bolina de sazonalidades, mas a maioria veio para ficar. Muitos vivem no limiar da pobreza, em situações de extrema precariedade. Nessa situação, estão à mercê de outras explorações. O acesso à saúde, à educação e à habitação não passam de um eldorado a reluzir no vazio dos direitos e dos deveres, fazendo o que pode no território da sobrevivência.
A Câmara de Odemira trabalha para esta realidade, oficiosamente invisível. O concelho é membro da Rede dos Municípios Amigos do Imigrante e da Diversidade, criou uma Comissão Municipal do Imigrante e elaborou um Plano Municipal para a Integração dos Imigrantes, trabalhando com organismos locais, como é bom exemplo o Espaço ST, em São Teotónio, local de acolhimento, apoio e integração. Foi através do ST que conhecemos três famílias, exemplares em mais que um aspeto, pois representam as maiores comunidades, assim como o que a imigração devia ser.
INTÉRPRETES DO NOVO MUNDO
Georgi, o chefe de família, estava a trabalhar. Anka, a sua mulher, estava preocupada porque a casa não estava muito limpa, Roza tem 12 anos e não se sentia fotogénica, Radka tem 5 anos e adora brincar na rua, Niki tem 15 anos e, na circunstância, era o homem da casa e o melhor tradutor dos pais, que ainda andam às voltas com o português. São búlgaros. Preferem deixar o seu apelido por dizer. Chegaram a São Teotónio faz em fevereiro cinco anos. Niki fala já como um português. Foi quem se adaptou melhor. O ciclo de chegada não é comum. Chegou primeiro a mãe, ele, e a irmã mais nova, só depois o seu pai e a irmã mais velha. Quanto ao setor para a sua mão de obra, não havia dúvidas. A mãe foi trabalhar para a agricultura e o pai também. Eles, andam na escola. Quando chegaram, a comunidade búlgara já era grande e a diversidade não era tanta. O acesso ao trabalho não foi difícil e tudo o resto se tornou fácil. Moram na vila e estão perfeitamente integrados. E, como crianças, conquistaram o seu legítimo direito de sonhar. As meninas ainda não sabem bem o que querem ser mas Niki não tem a menor dúvida. Quer ser jogador de futebol. “No Sporting, onde mais havia de ser…”
Nas imediações de São Teotónio vive a família Pokhrel, do Nepal. Maya, Abiral e Anubhav, mãe e os filhos, são recém-chegados. Chet já está em São Teotónio desde 2013, mas em Portugal desde 2011. O seu périplo começou em Lisboa, onde descobriu uma grande comunidade nepalesa, mas “nada comparável há que existe aqui”. Nessa altura, ainda não se considerava um imigrante. Era mais um “viajante”. Ao sabor da perspetiva de trabalho agrícola, viajou para Albufeira. Foi lá que um português lhe falou das oportunidades que Odemira tinha para oferecer, para quem trabalhava no setor frutícola. Com muito suor, Chet conseguir juntar a “pequena fortuna” necessária para trazer a sua família, que chegou há pouco mais de seis meses. A sua casa é modesta, mas é uma casa. E nada lhes falta, agora que estão juntos. “Não é da nossa cultura queixarmo-nos.” Mas era bom se o seu visto deixasse de ser provisório para ser permanente. Só assim se sentirão de cá, embora o seu pensamento esteja sempre a viajar para o Nepal.
Em zona nobre da vila vive uma família indiana, que integra uma enorme comunidade indiana na região, mas não corresponde exatamente ao seu perfil migratório. Rohit, Leena e Nikhil Arora são para todos os efeitos imigrante indianos, mas não imigraram da Índia. Vieram de Londres, à procura da tranquilidade da vida no campo. Na mãe-Índia, viviam bem. O filho estudava num bom colégio e ambos tinham trabalho. Rohit é chef de cozinha. Leena é fisioterapeuta. Ficaram no Reino Unido quatro anos e não foram as dificuldades que os trouxeram para São Teotónio. “Foi o clima e a segurança.” Leena e o filho chegaram em abril do ano passado. Rohit acabou de chegar. “Bem sei que não é bem aceite os indianos enviarem as suas mulheres primeiro, mas eu não sou desse género de homem. Confio muito nela e nas suas capacidades”, diz.
A integração leva tempo. Nikhil, que tem 9 anos, foi quem se adaptou melhor. Aprendeu português num instante, pois, ao contrário de crianças de muitas nacionalidades que compõem a sua vizinhança, tinha “o hábito e a técnica da aprendizagem”. Como acontece com muitas famílias, é ele o seu intérprete.
Na última década, muitas coisas mudaram em São Teotónio. Os fenómenos de repulsão que os emigrantes de início sentiam na pele, estão hoje esbatidos. De certo modo, os alentejanos de gema já se habituaram à sociedade das nações em que o seu lugar se transformou. Já aceitaram essa diferença, embora ainda lhes custe ver que alguns têm emprego e eles não. Quando o pensamento extrema, basta imaginar um familiar, um amigo, um alentejano como eles, num país que não é Portugal, à procura de uma vida melhor. Qualquer uma destas pessoas que habita hoje o seu quotidiano, já é como eles.
Artigo publicado na VISÃO 1283 de 5 de outubro