Américo Ferreira de Amorim morreu esta quinta-feira, 13 de julho. Morreu em casa na sequência de uma pneumonia. O homem mais ico de Portugal nasceu em Mozelos, Santa Maria da Feira, em 21 de julho de 1934. A missa de corpo presente realiza-se este sábado, 15, às 10h30m, no Mosteiro de Grijó.
Sucessão sempre foi uma palavra maldita dentro do clã Amorim. Quando, há precisamente 10 anos, a VISÃO confrontou o patriarca com essa questão, Américo Amorim deu um salto na cadeira e respondeu lesto: “O quê?! Porque é que me está a inventar a morte?! Se estivesse atormentado com isso não tinha comprado a Galp”. Fim de conversa. A sua entrada na petrolífera, um ano antes, tinha surpreendido o mercado e acabava de reforçar a sua participação para um pouco mais de 33%, garantindo assim uma posição de domínio, que ainda mantém.
Por essa altura, outubro de 2006, ao receber o prémio Empreendedor do Ano, atribuído pela Escola de Gestão do Porto, o empresário que nasceu na indústria da cortiça confessava: “O prazer que tenho hoje no trabalho é igual ao que tinha quando comecei. Às vezes falam-me da minha sucessão e eu digo: sou eterno”. Na verdade, o tabu é por ele alimentado, e a frase “Mas porque é que hei de morrer? Tenho um profundo sentido de eternidade” é mil vezes repetida, matando qualquer tentativa de abordagem pública do assunto.
Quando o senhor Américo completou 82 anos de idade e 64 anos de “trabalho, trabalho, trabalho”, olha-se para trás e é mais fácil perceber que a sua sucessão passa por uma estratégia de longo prazo, tal como sempre defendeu para o mundo dos negócios. O empresário do norte que conquistou o mundo guiando-se pelos “horizontes largos” e pelos “planos a dez anos” já há muito vem preparando, com serenidade e sem alarido público, a passagem do poder para a quarta geração da família Amorim.
O sinal mais evidente disto é a sua renúncia ao cargo de presidente do conselho de administração da Galp, alegando motivos pessoais, e a ascensão da sua filha mais velha, Paula, 45 anos, ao topo da empresa que mais contribui para que Américo Amorim fosse o homem mais rico do País, com uma fortuna avaliada, pela revista Exame, em 3 071 milhões de euros. Mas Paula chegou ao comando da petrolífera depois de quatro anos de treino na vice-presidência, cargo que assumiu em 2012.
Tendo dado provas à frente do negócio de luxo, com as suas lojas Fashion Clinic (que lhe deram autonomia face à família), Paula – que vive entre Lisboa e Porto – contou com 25 anos de trabalho ao lado do pai. Primeiro na área imobiliária e depois na gestão florestal e agrícola do grupo. Prova de que está à cabeça na linha de sucessão é o facto de Paula também presidir ao conselho de administração do Grupo Américo Amorim, a holding que concentra os negócios do seu pai.
Também Marta, a segunda filha, 44 anos, ascendeu, por cooptação, à administração da Galp, mas substitui a irmã mais velha na vice-presidência do grupo. E tudo indica que será ela que ficará responsável pela supervisão financeira da petrolífera. Licenciada em gestão de empresas, iniciou carreira no setor bancário, trabalhou no Santander em Nova Iorque e, aos 30 anos, estava na área comercial do Banco Nacional de Crédito (BNC), na altura controlado por Américo Amorim. É a única das filhas que tem assento na administração da Holding Financeira SGPS, SA e na Amorim Financial SGPS, empresas que detém as participações financeiras do grupo.
Quanto a Luísa, a filha mais nova, 43 anos, já há muito que se dedicou ao setor dos vinhos. A gestão da Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo (que junta a produção de vinhos à hotelaria) é a sua joia da coroa. É ela também que assegura a ponte com a Corticeira Amorim, ocupando um lugar, não executivo, na administração presidida, desde 2001, pelo seu primo António Rios Amorim, filho de António, um dos sete irmãos de Américo, onde também já está a prima Cristina Rios Amorim. Luísa também avançou, a título individual, com a comercialização de uma marca de vestuário de luxo para criança, a Andorine.
Américo Amorim tem nas três filhas a garantia de uma sucessão pacífica e, ao que a VISÃO apurou, suficientemente preparada de forma a não causar qualquer sobressalto após o seu desaparecimento. Uma gestão no feminino, complementada, no entanto, com a participação de dois dos genros. Nuno Barroca, marido de Marta é o vice-presidente da Corticeira Amorim e assume cada vez mais postos de gestão nas empresas dominadas por Américo. Francisco Teixeira Rêgo, marido de Luísa, também está na administração da Amorim Holding II SGPS, SA. Só o segundo marido de Paula, Miguel Guedes de Sousa, é um outsider na gestão das empresas da família. Depois de ter passado por uma financeira em Lisboa e pelo setor da hotelaria, preparar-se-á para abrir uma cadeia de restaurantes de luxo em Lisboa e Porto.
Saída de palco
A arrumação da estrutura de capital na Corticeira Amorim – negócio que está na origem da história da família – é outro sinal evidente de que Américo Amorim preparou a sua saída de palco. Adepto da ideia de que ninguém é herdeiro por natureza, que uma herança tem de ser conquistada e que a gestão e a detenção de capital deve estar nas mãos de quem nela trabalha, Américo mostrou disponibilidade para que o destino da Corticeira, empresa cotada em bolsa, ficasse cada vez mais sob responsabilidade da descendência do seu irmão António.
O sobrinho, António Rios, provou ser o mais capaz de prosseguir com êxito o caminho iniciado pelo bisavô, António Alves Amorim, que, em 1870, se instalou em Gaia para fundar uma oficina de fabrico de rolhas de cortiça para as garrafas de vinho do Porto. A modernização e o ganho de valor que a Corticeira acrescentou nestes últimos dez anos fazem jus ao historial de família. O negócio foi fortemente impulsionado por Henrique (segunda geração), cuja gestão enfrentou a Segunda Guerra Mundial, e depois pelo sobrinho Américo (terceira geração), que também passou sem sobressaltos o período revolucionário do pós 25 de Abril e soube aproveitar a abertura de Portugal ao regime democrático.
No final do ano passado, os irmãos António e Américo reequilibraram entre si a estrutura acionista da maior exportadora mundial de cortiça, com a tendência de reforço a pender para os filhos de António. Se o irmão José já tinha abandonado, em 1988, os negócios de família, por não concordar com a dispersão em bolsa de parte do capital de quatro das empresas do grupo – Amorim & Irmãos, Corticeira, Champcork e Ipocork –, foi agora a vez de Joaquim ceder a sua participação e sair de cena.
O susto e a recuperação
Em 2016, Américo Amorim deu entrada no hospital de Gaia, onde ficou em coma induzido, naquele que foi um dos seus maiores confrontos com a sua própria mortalidade. Foi internado com uma insuficiência cardíaca provocada por uma disfunção da sua prótese. “Foi-lhe posta uma válvula aórtica percutânea, pois a que tinha estava estragada e tinha perdido o prazo de validade. Já tinha cerca de 10 anos”, explicou então à VISÃO o diretor do serviço de cardiologia do hospital de Gaia. Uma pneumonia complicou o quadro clínico. O verão, passou-o já em recuperação entre a sua Herdade do Peral, no Alentejo, e o hotel Vilalara, no Algarve, também criado por si.
E é bem provável que a mulher com quem se casou, em 1969, aos 35 anos, lhe tenha cozinhado, em jeito de mimo, os seus dois pratos preferidos: cozido à portuguesa e bacalhau cozido. E que ele tenha passeado pelos jardins, como bom “amante da natureza” que foi, enquanto definia estrategicamente o futuro dos seus negócios, que, além da energia e da cortiça, passavam pelo imobiliário, pelo setor financeiro e cada vez mais pela floresta, cá e além fronteiras.
Mas em junho, arranjou um tempinho para conversar com Paulo Portas, agora vice presidente da Câmara de Comércio Portuguesa, ajudando-o relativamente aos procedimentos para liderar uma missão de empresários a Cuba. Pelo menos, Paulo Portas a isso foi aconselhado. Américo foi amigo de Fidel Castro, que fez questão de o visitar na sua empresa quando, em 1998, passou pelo Porto, durante a realização da cimeira Ibero-americana. Nessa altura, a Amorim Turismo investia em força na hotelaria daquele país. Uma amizade que se estendeu ao irmão de Fidel, Raul Castro, agora no poder, e que, em 2005, também passou pelas unidades industriais de Vila da Feira, precisamente quando já fazia a transição para a substituição do líder da revolução cubana.
No alto do seu metro e oitenta, Américo era um homem rijo, habituado a todo o tipo de adversidades. “Quem teve uma origem modesta, está bem em qualquer lado”, costumava dizer. Talvez por isso, a sua imagem impõe respeito. “Desde que entrava naquela porta, sentia-se uma energia, uma força… É muito direito e a idade nunca o curvou”, conta à VISÃO Maria Cândida Rocha e Silva, que criou o Banco Carregosa, tendo o empresário como um dos principais acionistas. “Foi uma colaboração preciosa, pois tinha uma grande experiência de vida e de negócios”, relata.
Carlos Oliveira Santos, o autor de vários volumes editados pela própria empresa sobre a vida e obra do Rei da Cortiça – como, em 1992, lhe chamou a revista Forbes – destaca a “dinâmica empresarial fantástica” deste homem nascido na pobreza que caracterizava o norte de Portugal nos anos 30. “Num País que veio sistematicamente a abandonar a indústria, ele tornou-se um industrial que nunca abandonou o setor e que é ainda uma grande riqueza do produto nacional”, sublinha.
“Há ali uma recusa da pequenez que se instalava na cabeça dos empresários. Era uma pessoa dura, mas que nutre um gosto pelo mundo e pelas suas geografias. Rejeitou a mediocridade e a mesquinhice e correu mundo com um catálogo de rolhas. Como se se sentisse a abafar no meio dos tios e primos”, avança Carlos Oliveira Santos.
Na verdade, as viagens que iniciou aos 21 anos pelos quatro cantos do mundo foram a sua “verdadeira licenciatura”. Viajar é dos seus maiores prazeres e, a qualquer sítio onde fosse, por muitas reuniões que tivesse,deixava sempre espaços vazios para poder deambular pelos sítios, conhecer as suas gentes e culturas. É célebre a mensagem que sempre tentou passar aos filhos e sobrinhos e, agora, aos netos: “Saiam de Mozelos city. Lavem a cabeça no mundo. Não se deixem aprisionar pela mentalidade do caldo verde.”
O tio Henrique
Aqui chegados, temos de atribuir os devidos créditos ao tio Henrique, que foi mais que um pai para o jovem Américo. Henrique é um dos 11 filhos do fundador António Alves Amorim, que, na viragem para o século XX, se muda de Gaia para Santa Maria de Lamas. O negócio das rolhas continuava muito dependente das oscilações de venda do vinho do Porto e atravessava um período de ataque da indústria dos plásticos.
Quando, em 1922, nasce a fábrica Amorim & Irmãos já o negócio voltava a prosperar. Mas pouco depois, morre António Alves. Ficam como sócios os 9 filhos vivos, entre os quais está também o pai de Américo. Quando, em março de 1944, um incêndio destrói a fábrica, já esta estava apenas nas mãos de quatro irmãos, precisamente os que nela trabalhavam: José, Henrique, Ana e Rosa. Aquele que viria a ser a maior fortuna do País tinha então 10 anos, acabara de fazer a quarta classe e só usava sapatos para ir à missa ao domingo.
Um ano depois, a fábrica é reconstruída e entra em laboração parcial com 350 operários. Américo Alves Amorim (pai) manda o pequeno Américo, quinto filho de um total de oito (quatro rapazes a quatro raparigas), frequentar o curso comercial da Escola Académica, no Porto. A mãe, Albertina Ferreira, morre em 1951 e, dois anos depois, morre o pai. Deixa de herança aos oito filhos, 20% da Amorim & Irmãos (2,5% para cada um), dinheiro (que os rapazes dão às irmãs) e alguns terrenos. Américo tinha 19 anos.
É então que o tio Henrique, celibatário, convida Américo a entrar na fábrica, com um ordenado mensal de 500 escudos (€2,5, ao câmbio atual), bom para a época.
Sem filhos, o tio Henrique tinha já acolhido, em 1948, duas crianças refugiadas da II Guerra Mundial, judeus austríacos, Gerhard Schiesser e Joseph Seiwerth, o primeiro dos quais se revelaria um contacto essencial na expansão dos negócios a Leste. Foi com uma empresa em nome dele que, no final dos anos 60, a Corticeira Amorim vendeu para a Áustria e, daí, redirecionava o produto para os países comunistas, depois de apagar a denominação de origem portuguesa, num tempo em que vigorava a cortina de ferro.
Mas em maio de 1955, Henrique proporciona aos sobrinhos uma experiencia que definiria o percurso de Américo: levou-os numa viagem de automóvel: Espanha, França, Itália, Suíça, Holanda e Alemanha. O jovem iniciante nunca mais perderia o gosto pelas viagens. Por isso, quando esta acaba, apanha o Sud Express. Na bagagem leva o bilhete, uma gravata e umas amostras de rolhas de cortiça. Faz um curso de francês em Biarritz e segue Europa fora. Não satisfeito, o destino seguinte foi a América Latina e, mais tarde, a Europa de Leste. Assim aprende outras línguas. Não se confina ao espaço que herdou e na sua mira estão os negócios e novos contratos. Depressa a família o considera o seu ministro dos Negócios Estrangeiros pelos postais que recebe de Buenos Aires, Colónia, Roma, Praga, Hamburgo, S. Francisco ou Pequim.
Não satisfeito, Américo visita a Roménia e pede passaporte para a União Soviética, onde antecipa grandes oportunidades de negócio. Na sua cabeça começa a germinar uma rede de distribuição. Apercebe-se que, em vários países, a cortiça é muito mais do que uma rolha. É também aglomerado para isolamentos, revestimento de paredes e pavimentos, componentes para a indústria automóvel, naval, aeronáutica, e até para decoração. Manda um emissário ao Japão. “Em setembro de 1959 estava em França quando Charles De Gaulle fez o seu discurso memorável sobre a independência da Argélia. Interiorizei, nesse momento, a inviabilidade de continuidade das Províncias Ultramarinas Portuguesas. Eram os ventos da História”, contou Américo ao seu historiador, percebendo que o futuro de Portugal passaria pela Europa.
Em janeiro de 1963 funda a Corticeira Amorim, com os seus três irmãos (José, António e Joaquim) e ainda o tio Henrique. A nova fábrica nasce na Quinta de Meladas, também em Mozelos – que Américo e os irmãos tinham comprado à família Van Zeller, anos antes – para aproveitar os 70% de desperdícios gerados pelo fabrico de rolhas na Amorim & Irmãos e, assim, diversificar o produto. Começa a fabricar aglomerados, mesmo sem autorização oficial do regime de Salazar.
Queria fazê-lo no âmbito da Amorim & Irmãos, mas esta era ainda controlada pelos tios, não muito favoráveis à ideia, por temerem a Lei do Condicionamento Industrial, que dava ao regime de Salazar o controlo da criação de novas empresas e produtos. Era preciso fazer parte do núcleo próximo do poder para cair nas boas graças e receber as autorizações pretendidas e o tio Henrique usa os seus contactos. “O condicionamento industrial foi o maior passaporte antidinâmico que se implementou em Portugal desde 1953 até 73”, diz Américo Amorim no livro 50 anos de Trabalho. Este colete-de-forças só terminaria com Marcelo Caetano, mas, antes disso, a perseverança do empresário venceu a resistência do regime e, em 1970, o Presidente Américo Tomás visitou as instalações do grupo.
Américo Amorim tinha 36 anos, estava há um ano casado com Maria Fernanda, filha de um médico e comprara o seu primeiro carro novo: um Rover. A partir daí, nunca mais ninguém o parou. Em 1972, construía a primeira fábrica no exterior, em Marrocos, a Comatral, por ali existir produção de cortiça. Comprou várias herdades no Alentejo, mesmo durante o período revolucionário, quando todos os outros vendiam. “Em 1978, plantei sobreiros em Portugal nas áreas que me tinham sido expropriadas. Ninguém compreendeu esta atitude na altura”, conta Américo Amorim. Só em 2000, saíram dessas terras a primeira cortiça virgem. “25 ou 30 anos para mim não é nada”, justifica.
Quando se deu a revolução de Abril, Américo Amorim não era um homem do Salazar. Pelo contrário. Já negociava com o Leste comunista. “Enquanto os outros fugiam, eu fiquei e comprei. Entre 76 e 78 fiz fábricas novas e remodelei as existentes. Só fui expropriado pela reforma agrária”.
Entrada na banca
A sua vontade de crescer era imensa, mas faltava o financiamento. Começa a dar os primeiros passos no setor financeiro. Primeiro com a criação da SPI, que acabaria por dar origem ao BPI, e, mais tarde, junta-se a um grupo de empresários que daria origem ao maior banco privado português: o BCP.
Nos anos 90, depois da dispersão em bolsa, dá-se outra onda de expansão do grupo e a diversificação por outros setores: turismo, imobiliário, telecomunicações. Já neste milénio, engorda a esfera pessoal: depois de, em 93, sair do BCP, por divergir com a estratégia de Jardim Gonçalves, cria o BNC, que acaba por trocar por 5% do espanhol Popular; fica com 25% do banco luso-angolano BIC (que já vendeu); entra no Banco Luso-Brasileiro e adquire 25% da marca de roupa de luxo Tom Ford, entre muitos outros negócios. E, claro está, domina na Galp Energia, que é presidida pela sua filha Paula. Este foi o primeiro passo na transição de poder do homem mais rico de Portugal.
(Artigo publicado na VISÃO 1233, de 21 de outubro de 2016)