Ver o pai a inscrever-se na Universidade Lusófona, já em plena terceira idade, no âmbito de um programa de candidatura ao ensino superior para maiores de 23 anos, foi o clique. “Se ele pode, eu também posso”, pensou Fernando Madureira, de alcunha “Macaco”, líder dos Super-Dragões, a principal claque do FC Porto.
Pensou, logo agiu.
Impulsionado pela família”, falou “com algumas pessoas” e entrou, “um bocadinho a medo”, no Instituto Universitário da Maia (ISMAI), estabelecimento de ensino privado situado naquele concelho da área metropolitana do Porto. Madureira licenciou-se em Gestão do Desporto com 16 valores e, em novembro do ano passado, atingiu o grau de mestre, com um projeto de mestrado intitulado “Bancada Total: uma inovação ao serviço do clube”, obtendo a classificação final de 17 valores.
Em tese, o chefe do maior grupo organizado de adeptos portistas argumenta que a chamada bancada Super-Bock do Estádio do Dragão seja entregue, na totalidade, à sua claque, de molde a potenciar assim a procura de bilhetes e “um melhor aproveitamento e dinamização do espaço”, com capacidade para 6600 lugares. Pelo tema, ele sentiu-se, obviamente, “como um peixe na água”. Na prática, admitiu, era “falar da bancada, falar basicamente do que eu sei e do contributo e do projeto”. E onde se inspirou Fernando Madureira? Nos alemães. “São os que têm mais pessoas nos estádios”, explicou ele numa longa entrevista ao jornal Ideal, do curso de Ciências da Comunicação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em janeiro. “Fogo, carago, como é que estes gajos eram uns parolos do carago, não tinham ninguém e agora têm tanta gente?”, questionou-se, na altura, procurando, desde logo, estudar os casos das assistências dos jogos do Bayern de Munique e do Borussia de Dortmund. Concluiu: “o grande impulso que eles tinham dado”, afiançou ao jornal universitário, passou por criar “dois tipos de preços e dois tipos de adeptos”. E tirar as cadeiras da bancada, o que ainda não é permitido em Portugal, mas Madureira acredita que vai ser.
O “aluno exemplar”
Prova de acesso feita, o percurso letivo foi “espetacular”, no dizer do próprio.
Fernando Madureira fez tudo “por avaliação contínua”, sem ir a exame, e “com grandes notas”. Dedicação pura. “Quando entro nas coisas é sempre para ganhar”, garante ele. O rosto mediático da maior claque portista sabia, porém, que a via da formação universitária era demasiado estreita para quem acarreta a fama de ser, como ele próprio glosa, “chefe dos bandidos” e liderar um grupo que, segundo diz, não é propriamente composto por escuteiros, “nem é uma excursão a Fátima”.
Todos os olhares, de colegas a professores, estavam, pois, em cima dele, como o próprio reconhece. “Tive sempre um comportamento exemplar, sempre na fila da frente, o primeiro a chegar, o último a sair, respeito pelos professores, atento às aulas, participativo”, garantiu na referida entrevista. “Nunca faltei a uma aula, tirando quando era para ir ver o Porto”. No dia em que entrou doutor no ISMAI e saiu mestre, a postura valeu-lhe mesmo um reconhecimento público do júri. “Disseram que eu era o aluno que qualquer professor queria ter”, orgulha-se.
Das três vias possíveis – tese, dissertação ou projeto – o líder dos Super-Dragões escolheu a última, por, segundo as suas próprias palavras, preferir “coisas mais práticas”.
O orientador do mestrado foi Henrique Pinhão Martins, do Conselho Pedagógico do ISMAI e docente do Departamento de Ciências da Educação Física e Desporto. “O dr Fernando Madureira, no que a mim me diz respeito, foi um aluno exemplar”, explicou à VISÃO, por escrito, ressalvando o facto não conhecer o seu orientando até lhe ter dado aulas no 2º ano da licenciatura em Gestão do Desporto. Instado a divulgar a ata do júri que concedeu o grau de mestre ao líder dos “Super-Dragões” e a comentar várias passagens do projeto de mestrado, Henrique Martins declinou. “Não seria de todo ético e deontológico responder a qualquer outra das questões que me coloca, em virtude de envolver várias outras pessoas e critérios de avaliação que fazem parte do contexto académico”, justificou. Gastão Sousa, coordenador do curso de Gestão do Desporto, não respondeu ao contacto da VISÃO.
As 36 páginas “insultuosas”
O projeto de mestrado de Fernando Madureira tem 36 páginas e está disponível no repositório do ISMAI. No documento, disponível para consulta online, não passam despercebidas a familiaridade do autor com o tema e a quantidade de erros de português.
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Raúl Martins, do Centro de Investigação do Desporto e da Atividade Física da Universidade de Coimbra, notou, porém, outras fragilidades. Sem colocar em causa o tema proposto, que lhe parece “adequado”, este docente nota, porém, que “a dissertação aparenta ter sido escrita de forma descuidada, tendo em consideração a qualidade do texto que apresenta”, relatou à VISÃO. Além disso, realça, “não aparece nenhuma secção específica para a metodologia do trabalho, onde conste de forma explícita a questão em investigação, o desenho do estudo, as variáveis, os instrumentos, os participantes, etc.”. Quanto à revisão de literatura, verifica-se “um conjunto de afirmações genéricas, conceptualmente heterogéneas e frequentemente sem referenciação autoral. Mantém-se a utilização de linguagem com baixo grau de formalidade e escrita descuidada”. Segundo Raúl Martins, “o estudo aparenta ter um propósito preditor”, ou seja, “pretende compreender o conjunto de variáveis que permitam «delinear uma estratégia capaz de agregar mais adeptos para o estádio»”. Contudo, faz notar aquele professor da Universidade de Coimbra, “parte de um conjunto de convicções pessoais do autor, não demonstradas, para concluir sobre o que não foi, de facto, demonstrado”. Por outras palavras: as medidas apresentadas por Fernando Madureira no seu tema de mestrado, da substituição de cadeiras à nova forma de distribuição de bilhetes, passando pela reorganização dos adeptos ou a animação da bancada “poderão até ser, de facto, muito úteis, porque resultarão de uma experiência do autor, mas não foram testadas nem controladas. Logo, as conclusões parecem-me excessivas”, assinala. Concluindo: “Dado que a qualidade geral da dissertação não parece alinhada com a classificação final de 17 valores (Muito Bom), admito que o autor possa ter tido uma apresentação e discussão oral perante o júri com uma qualidade que tenha transcendido o que o documento transmite”.
Algo que o contacto da VISÃO com os docentes do ISMAI não permitiu esclarecer.
Quando leu o documento, Maria Alzira Seixo, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ia tendo um susto. Ou pior. “A tese de Fernando Madureira é um insulto à Língua Portuguesa e ao desporto nacional. Manuel Sérgio [catedrático da Faculdade de Motricidade Humana] pode ter um ataque cardíaco se a ler!”, ironiza, sem se deter, citando um dos académicos mais prestigiados nesta área. “É escrita num Português iletrado, analfabeto e ridículo. Inacreditável que uma instituição do ensino superior aceite tal coisa”, reforça Maria Alzira Seixo, sem deixar de “louvar” o estudo universitário do Desporto. “O que aqui falha é o ensino da Língua, e a formação de base da tese. Como chega a um grau de investigação superior quem não teve um ensino do Português decente, ou falhou no seu aproveitamento? Como se aceita no plano universitário um estudo sem gramática?”, questiona, sem ter ganho para o susto. “Como professora, fico aterrada com esta prova da falência do nosso ensino, em todos os seus graus. Porque esta tese tem aspetos de redação vergonhosos. E desonra os Super-Dragões!”
Para Fernando Madureira, a maior falha era mesmo não ter seguido os estudos. Tudo por causa da tropa, “da claque” e pelo facto de os pais não terem condições financeiras que lhes permitissem mandar o filho “para uma universidade privada”.
Na entrevista dada ao jornal Ideal, da Universidade do Porto, o homem que veste a alcunha “Macaco” desde os tempos difíceis de adolescência, na Ribeira, considera que as claques de futebol constituem uma espécie de “micro sociedade”: nem melhores, nem piores, com defeitos e virtudes. Assim mesmo. “Existem toxicodependentes, existem médicos, existem pessoas boas, pessoas más, existem pessoas que cometeram crimes” e “homossexuais”. Resumindo, “tudo o que há na sociedade” existe nos Super-Dragões, defende o também jogador do Canelas. E agora, ainda que por linhas tortas, também há um doutor feito mestre, com 17 valores.