Quando a arqueóloga Maria Ramalho e o fotógrafo freelancer Giorgio Bordino resolveram terminar, por mútuo acordo, a sua união de facto, um tema era incontroverso para os dois. Tinham de ficar a viver perto um do outro, para partilharem a guarda das cadelas galgas Xira e Nôa, e da whippet Óca. A decisão foi “automática”, diz Maria Ramalho.
No início, houve alguns atritos, por causa da divisão de despesas com veterinários, admite a arqueóloga. Mas essas divergências rapidamente foram ultrapassadas, e as cadelas tanto passeiam e correm na serra de Sintra e na praia do Guincho, como pelos jardins de Cascais, conforme estejam com o dono ou a dona.
Em março passado, este agregado de guarda partilhada, que começou há seis anos, ficou reduzido a quatro elementos, com a morte de Xira, vítima de doença súbita. Não passou pela cabeça de Maria Ramalho e Giorgio Bordino terem perdido uma “coisa”. E, no entanto, foi sob essa designação legal que Xira existiu. A galga morreu um pouco antes de ascender à “natureza de ser vivo dotado de sensibilidade”, como estipula o artigo 1º do estatuto jurídico dos animais, aprovado por unanimidade no Parlamento em 22 de dezembro último e que entrou em vigor este dia 1 de maio. O estatuto (que se soma à legislação já existente que pune maus tratos e abandono) altera uma série de artigos dos Códigos Penal, Civil e de Processo Civil. Significativamente, modifica neste último, por exemplo, o artigo 736º, relativo a “bens absoluta ou totalmente impenhoráveis”. Acrescenta-lhe uma alínea, a g) – “os animais de companhia”.
Há de ser nos processos de divórcio que o estatuto jurídico dos animais terá um dos seus maiores impactos. A advogada Alexandra Almeida, especialista em casos de Família e Menores, confirma que será agora obrigatório um entendimento sobre a guarda dos animais de estimação do casal, “nos divórcios por mútuo consentimento e nos litigiosos”. O princípio basilar está num aditamento ao Código Civil, o qual estipula que “os animais de companhia são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal”.
O pastor-alemão e o juiz
Alexandra Almeida esclarece que este novo acordo acresce aos itens habituais em casos de divórcio – regulação do exercício das responsabilidades parentais, relação dos bens comuns, destino da casa de morada da família e pensão de alimentos a cônjuge. “Nas guardas partilhadas, vai ser engraçado ver as crianças e os animais a andar de um lado para o outro”, antecipa a advogada.
Até aqui, estas situações revelavam-se, com frequência, um imbróglio para quem tinha de decidir. Por exemplo, o juiz Joaquim Silva, do tribunal de Família e Menores de Mafra, conta à VISÃO que, há cerca de dois anos, num divórcio por mútuo consentimento, se confrontou com um pedido complicado do casal que se separava. As partes solicitaram ao magistrado que regulasse a guarda de um cão pastor-alemão, que os cônjuges adoravam.
Pela lei civil antes em vigor, o pastor-alemão era, como se disse, uma “coisa”. Mas o juiz recorda que, apesar desse constrangimento legal, fixou uma guarda partilhada do cão entre o casal que então se separou. “Uma semana em casa de cada um, como era tão importante para ambos.” Nos fundamentos que usou para sustentar a decisão, o magistrado diz ter ido buscar aos estudos do neurocientista António Damásio “os avanços no conhecimento neurológico adquirido, verificando-se que os animais têm capacidade e competências emocionais, e consciência delas, possuem sentimento”.
Tempos depois, o juiz soube que o pastor-alemão reprovara o seu despacho. Quando estava com a dona, caía numa tristeza profunda. A sua fidelidade canina ia em exclusivo para o dono. E a senhora, que remédio, teve de se conformar com a preferência do cão.
Vantagens de não ser ‘coisa’
Três alterações e aditamentos à lei que o estatuto jurídico dos animais estipula e que precisa de saber
1 – Condição – Os animais de estimação passam a integrar os “bens absoluta ou totalmente impenhoráveis”. Novo artigo 736º do Código de Processo Civil, alínea g)
2 – Propriedade – Entre os “bens incomunicáveis”, estão “os animais de companhia que cada um dos cônjuges tiver ao tempo da celebração do casamento”. Ou seja: em caso de divórcio, o animal continua a ser de quem já era.
Novo artigo 1733º do Código Civil, alínea h)
3 – Meu, teu, nosso? Passa a ser obrigatório um acordo sobre a guarda dos animais de estimação do casal, nos divórcios por mútuo consentimento e nos litigiosos. O princípio basilar estipula que “os animais de companhia são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal”.
Aditamento ao Código Civil, artigo 1793º-A