Com as paredes forradas a fotos de quimobabies, filhos de mulheres que tiveram cancro durante a gravidez, Fátima Cardoso, 50 anos, dirige o Programa de Investigação do Cancro da Mama da Champalimaud. Visitada pelas gaivotas que fazem ninho nas janelas com vista para o Tejo, recorda que foi a primeira médica contratada pela Fundação.
Esta foi a entrevista que concedeu em 2016 à VISÃO.
Veio de Moçambique para Portugal com 8 anos. Tem memórias de África?
Não. Tive amnésia pós-traumática. Perdi a memória, com exceção da cognitiva, aquilo que aprendi na escola.
Foi um regresso difícil a Portugal?
Sim. Trazíamos as nossas malas e um escudo na carteira. Fomos viver para Vila Nova de Gaia, depois mudámos para Carnaxide e fiz o liceu na Amadora.
Porquê a escola da Amadora?
A minha mãe era professora em Linda-a-Velha. Eu precisava de boas notas para entrar em Medicina e não queria que dissessem que era por a minha mãe ser professora na mesma escola. Venho de uma família de engenheiros e professores. Quem destoa sou eu.
Porque decidiu “destoar”?
As minhas bonecas estavam sempre doentes. Só brincava aos médicos. Devia ter vivido na altura de Aristóteles porque gostava de tudo, da literatura à física. Mas teria de ser homem.
Passados tantos séculos, ainda seria melhor ser homem?
É sempre mais fácil ser homem. Luto constantemente pela igualdade.
Como?
Na Sociedade Europeia de Oncologia, onde faço parte da direção, temos um grupo de “Oncologia para Mulheres”. Ao longo da minha carreira tentei ajudar outras mulheres.
Isso é original. A maior parte das mulheres não se interajudam.
Não. Normalmente não. Hoje, cerca de 80% dos estudantes de Medicina são mulheres. E é assim porque já não dá tanto dinheiro nem prestígio como antes. Nos lugares de chefia e de relevo, a desproporção entre mulheres e homens é abismal. Mas também houve mulheres que me ajudaram.
Quais?
O meu modelo é a minha irmã mais nova, que teve um acidente terrível aos 7 anos. Ficou com o pé preso num elevador. Tem 45 anos e já fez mais de 20 operações. A primeira vez esteve internada mais de um ano. Vive com dores constantes, e mesmo assim formou-se em engenharia robótica e é professora universitária. Sofreu, e sofre, mas é uma mulher realizada. Ensina-me muito. Quando ando com problemas olho para a minha irmã e para os meus doentes. E depois concluo: o que me está a preocupar não é um problema.
O que é um problema?
É aquilo por que está a passar um colega meu, com uma filha com cancro avançado. Tem uma sobrevida média de 2 a 3 anos – e só tem 24 anos. Isso é um problema. Ou ver aqui pessoas com dificuldade em comprar medicamentos.
Sente isso, mesmo aqui na Fundação?
Sim. Era ainda interna de Oncologia no IPO do Porto quando recebi um casal. Ela com cancro da mama, ele da próstata. Explicava como se tomava a medicação e todas as consultas verificava que um deles tinha dores. Eu voltava a explicar. Até que um dia me disseram: “Entendemos muito bem como é preciso tomar. Mas não temos dinheiro para comprar para os dois. Por isso, um mês toma ela e outro mês tomo eu”.
Marcou-a?
Muito. Nunca mais me esqueci. Um casal trabalha a vida inteira e chega ao fim obrigado a alternar a medicação para a dor. É muito difícil de engolir.
Mesmo assim escolheu Oncologia. Porquê o cancro da mama?
Na faculdade apaixonei-me pela biologia do cancro e, no quinto ano, a minha melhor amiga teve cancro da mama.
O que aconteceu à sua amiga?
Tratou-se e ficou bem. Como a maior parte das pessoas com cancro da mama.
Foi há quase 30 anos. Mas os médicos não gostam de falar em cura. Porquê?
Há duas razões para não termos cura: é uma doença de dentro do organismo, não uma bactéria ou um vírus, que entra dentro de nós. São as nossas próprias células que perdem a capacidade de morrer e de limitarem a sua proliferação. Se for algo que nos invada do exterior, o organismo deteta como estranho e o sistema imunitário reage. No cancro, como são células nossas, não estamos preparados para lutar contra elas. E as células tumorais são inteligentes. Desenvolvem mecanismos de resistência, continuando a crescer.
Mas a maioria, 70%, sobrevive.
Sim. Até pode ser superior a 70%, mas é uma probabilidade. Não podemos dar uma imagem cor de rosa: que se fizerem os tratamentos, comerem bem e fizerem exercício corre tudo bem.
Os médicos receiam que as doentes desmobilizem das vigilâncias?
Não consigo dizer a nenhuma mulher se vai estar nos 70 ou nos 30 por cento. As 30% que recidivam sentem-se culpadas e abandonadas pela ciência. Como não consigo dizer com toda a certeza se está curada, o melhor é não falar em cura.
Nem passados 20 anos?
Depende do subtipo. Mas posso continuar sem saber. O subtipo mais frequente, o que depende das hormonas e engloba 65% a 70% de todos os cancros da mama, tem tendência a voltar mais tarde (após 10 ou 20 anos). Os triplo-negativos, sem estes recetores, têm um risco de recidiva mais precoce. Se não acontecer nos 5 ou 8 anos antes, se calhar já não vai acontecer. Quanto mais entendemos a biologia, mais difícil é usar a palavra cura. Posso ter uma visão mais pessimista. Ou melhor, cuidadosa. Mas se relaxam e o tumor volta, algumas pessoas não ultrapassam o choque, nem a perda de confiança no médico.
Que retrato podemos fazer do cancro da mama hoje?
Uma coisa é o avanço no conhecimento da biologia, outra é o benefício para o doente. Entre ter uma molécula que parece promissora e a sua aprovação vão 10 a 15 anos. Estamos a tentar encurtar para 5 a 10 anos. Mas desde os anos 70, os avanços são de meses de sobrevida.
Houve uma estagnação?
Sim, nos últimos anos.
Porquê?
Há 10 anos, o cancro da mama foi dos primeiros com o genoma descodificado e permitiu-nos compreender que são diferentes doenças. A tecnologia que usamos agora vai ao pormenor de analisar gene por gene e ver quais estão alterados. Foi importante para perceber a biologia, mas não está a ser tão fácil aplicar na clínica o que sabemos.
Qual é o peso do stresse agudo no cancro da mama?
Os oncologistas ouvem frequentemente que a doença apareceu depois de uma fase de stresse intenso, ou um choque emocional. Há uma teoria. Temos células tumorais em nós todos os dias. Mas estão controladas. Com stresse intenso, a diminuição do sistema imunitário pode levar a um desequilíbrio. Tem lógica, mas não conseguimos provar. Muitas vezes o cancro aparece sem fatores de risco. A minha amiga dizia: “Faço exercício, como bem, não tenho excesso de peso, não fumo nem bebo. Então, porquê?”
Como responde ao “porquê?”
Não vale a pena. O cancro é a nova epidemia não contagiosa. Hoje, nos países desenvolvidos, uma em cada três pessoas terá cancro. Daqui a 15 anos, será uma em cada duas. Não vale a pena perguntar porquê. A questão será: Porque não? Morrer de cancro vai ser cada vez mais frequente. Às vezes não há fatores de risco nenhuns. Por isso, é melhor não terem sentimentos de culpa.
Queria pôr Portugal no mapa dos ensaios clínicos. Conseguiu?
Estamos bastante melhor. Mas continua demorado, e no último ano com mais problemas. Há questões que não são levantadas em nenhum outro país.
Melhorou e voltou a piorar?
Acho que sim. Na Bélgica dediquei-me a assinaturas genómicas para decidir quem precisa de quimioterapia no cancro da mama precoce, para o estudo Mindact. Fui eu que o coordenei e quis muito que abrisse no meu país. Fez-se em nove países europeus e não há uma única portuguesa nesse estudo porque demorou mais de um ano a ser autorizado. É uma das minhas maiores tristezas. A lei prevê 3 meses para dar resposta e nunca é menos de seis.
O que está mal?
A comissão de ética melhorou, mas agora temos problemas com a proteção de dados. Também precisamos da aprovação do Infarmed. E as três entidades têm atrasos. Os peritos da comissão de ética nem sempre têm os conhecimentos necessários e levantam questões sem cabimento. Em Portugal, quem avalia um estudo em Oncologia é um perito de outra área para não enviesar. Eu acho que só quem está na área consegue avaliar.
Continua difícil o uso de quimioterapias orais?
Se o reembolso for feito por administração no hospital, não há estímulo para medicamentos orais porque saem do orçamento do hospital e não são reembolsados. Os EUA são o paradigma disso. Muitos doentes recebem quimioterapia sem precisar.
Nem sequer precisam?
Não.
Dá-se quimioterapia de mais aos doentes? Como é possível?
É um pouco consciente, um pouco inconsciente e um pouco por pressão. Pensa-se que mais vale sobretratar do que subtratar.
Acontece em Portugal?
Sim. Quando regressei, a quimioterapia oral não era prescrita nos hospitais públicos porque o Estado só pagava pela utilização do hospital de dia.
Porquê?
Acho que é por desconhecimento dos decisores. Basta vontade política para decidir: pago a quimioterapia, seja oral ou endovenosa. É melhor para toda a gente.
Isto é um problema do SNS?
Não. Com os seguros é igual. Se for oral, temos muita dificuldade em fazer perceber que é quimioterapia e que deve vir do plafond de internamento e não de ambulatório. Temos lutas incríveis com isto. Com a radioterapia, o mesmo. É reembolsada por sessão e não devia. O sistema hospitalar tem interesse em que se façam mais sessões e não devia ser assim. Ninguém ficava a perder se se pagasse por tratamento em vez de sessão.
Já interpelou o ministro da Saúde sobre isso?
Não. Mas alertei a Ordem dos Médicos e o coordenador das doenças oncológicas. Vamos juntar várias instituições – Ordem dos Médicos, Sociedade Portuguesa de Oncologia, Liga Portuguesa Contra o Cancro e grupos de doentes – para irmos à Assembleia da República.
Tornou-se um problema político, que prejudica os doentes?
Às vezes é falta de conhecimento. Há muita gente preocupada com o acesso a medicamentos caros quando há um problema maior: o acesso a medicamentos baratos.
Como?
Os medicamentos mais importantes contra o cancro são antigos, não custam nada, e começam a desaparecer. Se isso acontecer, deixamos de poder tratar cancros. Os medicamentos inovadores e caros são para um grupo limitado. E só funcionam associados aos medicamentos antigos, de que ninguém fala.
A indústria não produz por serem demasiado baratos?
A indústria até os produz. O problema são os distribuidores. Estivemos mais de um ano sem um corticoide indispensável no tratamento de metástases cerebrais. O pouco que se produzia era desviado para a Alemanha, que paga cinco vezes mais. Produz-se menos e são desviados.
Como se explica uma coisa destas?
Tenho muita dificuldade em entender. Mas a distribuição resguarda-se na ideia de mercado livre. Não podem obrigar ninguém a vender cá porque estamos num mercado livre. E vão vender onde lhes pagam mais. Mas não sei porque a vontade política e económica há de ser mais forte do que vidas. E não entendo porque não pode haver uma lei a obrigar que uma parte tenha de ser vendida cá. Fomos nós que criámos o mercado livre. Também o podemos mudar.
Há portugueses que não têm acesso à medicação de que precisam?
Começa a haver. Mas não é um problema só nosso. Os EUA fizeram acordos com a Índia para produzir medicamentos. Estamos a tentar chamar a atenção dos políticos europeus. Mas não é tão sexy como os medicamentos caros, e a comunicação social não fala disto. A Sociedade Europeia de Oncologia Médica já criou um grupo de trabalho para o acesso a medicamentos – caros e não caros. Queremos soluções. Farmacêuticas e distribuidores têm um negócio a gerir, mas nós temos vidas à nossa frente.
O que se diz ao doente: ‘um medicamento podia salvá-lo, mas o mercado livre está primeiro’?
Não vale a pena colocar esse peso no doente. Tentamos alternativas. A geração antes da minha dizia que não queria saber de preços. A minha já não pode ter essa atitude. E a que vier a seguir ainda menos. Temos de saber o preço de tudo e até adaptar o tratamento ao que o doente pode suportar.
Como é exercer Medicina assim?
Estamos a caminhar para uma Medicina a duas velocidades: a dos ricos e a dos pobres. Para um médico que tenha consciência, é muito doloroso.
Qual é a sobrevida das doentes de cancro da mama na Champalimaud?
Fomos de um edifício vazio a uma unidade certificada em 5 anos. Na Europa há cerca de 30 e nós somos uma delas. Estamos orgulhosos. Mas a história do cancro da mama tem de ser contada, no mínimo, a dez anos. Os nossos dados são muito bons, mas precisamos de mais tempo para tirar conclusões.
Esses bons resultados não são enviesados por terem doentes selecionados?
Não. Isso não existe.
Nunca recusaram um doente?
Não. Como é que podíamos viver connosco próprios?