Dois alunos da Universidade de Stanford, na Califórnia, passeavam de bicicleta quando viram, atrás de um contentor, um colega naquilo que lhes pareceu um ato sexual com uma jovem que não se mexia. Intervieram e chamaram a polícia. A rapariga estava inconsciente depois de uma noite de copos e ainda hoje não se lembra do que aconteceu. Só recuperou os sentidos no hospital.
Em cima dela encontrava-se Brock Turner, de 20 anos, que disse em tribunal ter atuado com o consentimento da jovem, mas acabou condenado por abuso sexual com intenção de violar uma mulher embriagada e penetração sexual (com os dedos) de uma pessoa inconsciente. De acordo com as autoridades, nessa madrugada de 18 Janeiro de 2015, a rapariga de 23 anos acusou uma taxa de alcoolemia três vezes acima do limite legal e ele tinha bebido o dobro do permitido.
A sentença, lida na semana passada, determinou seis meses de cadeia para este nadador com aspirações olímpicas, quando a moldura penal previa até dez anos de prisão. Argumentou o juiz que uma pena mais dura teria “um impacto severo” no jovem, e o pai dele concordou, alegando que seria injusto castigá-lo por mais tempo por causa de “20 minutos de ação”, como declarou em tribunal.
Antes da deliberação final, a vítima (cujo verdadeiro nome foi protegido) leu uma carta carregada de ironia e sarcasmo, na cara do agressor. As poderosas descrições sobre o modo como está a lidar com a situação, bem como a clareza com que rebate os argumentos de Brock Turner para escapar à condenação, tornaram a carta viral na internet. Começa assim: “Tu não me conheces, mas estiveste dentro de mim e é por isso que estamos aqui hoje”.
Respire fundo e leia de seguida as passagens mais fortes:
– Era sábado à noite, o meu pai fez o jantar e sentei-me à mesa com a minha irmã mais nova que estava de visita no fim de semana. (…) Tinha planeado ficar em casa, enquanto ela iria a uma festa com amigos. Depois, pensei que era a minha única noite com ela, então porque não? Havia uma festa parva a dez minutos de minha casa e eu iria dançar como uma tola, e embaraçar a minha irmã.
– Bebi depressa demais sem ter em conta que a minha tolerância tinha diminuído deste os tempos de universidade. A próxima coisa de que me lembro é de estar numa maca num corredor. (…) Depois de umas horas a ser examinada, deixaram-me tomar um duche. (…) Tudo o que me disseram foi que eu tinha sido encontrada atrás de um contentor, potencialmente penetrada por um estranho, e que deveria fazer novo teste de VIH mais tarde, mas que por agora devia ir para casa descansar.
– Um dia, estava eu no trabalho a ver as notícias no telemóvel, e parei num artigo. Através dele tomei conhecimento, pela primeira vez, de como tinha sido encontrada inconsciente, com o cabelo desgrenhado, o colar embrulhado no meu pescoço, soutien arrancado, vestido abaixo dos ombros e puxado acima da cintura, despida das nádegas até às botas, pernas abertas, e que tinha sido penetrada por alguém que não conhecia. Foi assim que soube o que me aconteceu, sentada à minha secretária a ler as notícias. (…) Ele tinha-me despido, os dedos dele estiveram dentro de mim.
– No parágrafo seguinte, li algo que nunca vou perdoar; li que, de acordo com ele, eu tinha gostado. (…) Eu teria gostado porque me rocei nas costas dele. Roçar nas costas. Nunca mencionou que ouviu a minha voz a consentir, nunca mencionou que tivéssemos sequer falado. Um roçar nas costas.
– Mais uma vez, através das notícias, soube que o meu rabo e a minha vagina tinham ficado completamente expostos, os meus seios tinham sido tocados, dedos espetados dentro de mim (…), a minha pele e a minha cabeça a roçarem no chão atrás de um contentor, enquanto um caloiro erecto fazia sexo com o meu corpo meio nu e inconsciente. Mas eu não me lembro e, sendo assim, como posso provar que não gostei?
– O abuso sexual era muito claro, mas aqui estava eu no tribunal, a responder a questões como: Quanto pesas? O que comeste nesse dia? O que bebeste? O que tinhas vestido? Onde urinaste? A relação com o teu namorado é séria? És sexualmente ativa com ele? Alguma vez o trairias? (…) Fui esmagada por perguntas mesquinhas e afiadas que dissecaram a minha vida pessoal e amorosa, o meu passado, perguntas idiotas sobre detalhes triviais na tentativa de encontrar uma desculpa para este tipo que me despiu antes sequer de se ter dado ao trabalho de me perguntar o nome.
– Depois de uma agressão física, fui agredida com perguntas feitas para me atacar, para poderem dizer: veem, os factos não coincidem, ela está louca, é praticamente uma alcoólica, provavelmente queria ter sexo, ele é um atleta, estavam ambos bêbados, o hospital diz que ela recuperou a consciência só depois do ocorrido, mas para quê ter isso em conta se o Brock tem muito a perder e está a passar um mau bocado.
– Um anos depois do incidente, ele lembrou-se ah sim, já agora, ela na verdade disse que sim, a tudo. Contou que me tinha convidado para dançar. E aparentemente eu respondi sim. Perguntou se eu queria ir até ao dormitório dele, eu respondi sim. Depois perguntou se podia usar os dedos em mim e eu disse sim. A maioria dos rapazes não pergunta ‘posso usar os dedos’? Por hábito as coisas avançam de uma forma natural e desenrolam-se consensualmente, não através de um entrevista. Mas aparentemente eu dei permissão total. Ele está inocente. Na história dele, eu proferi um total de três palavras, ‘sim sim sim’, antes de me ter meio despida no chão. Para referência futura, se estás confuso sobre se uma rapariga consente, confirma se ela consegue proferir uma frase completa.
– Segundo ele, a única razão para estarmos no chão foi eu ter caído. Apontem: se uma rapariga cair ajudem-na a levantar-se. Se ela está demasiado bêbada para andar, não tenham sexo com ela, não lhe tirem a roupa interior, nem insiram a vossa mão na vagina dela. Se ela está a usar um casaco por cima do vestido não o tirem para lhe tocarem nos seios. Talvez ela tenha frio e por isso vestiu o casaco.
– Dois suecos a andar de bicicleta abordaram-te e tu fugiste. Quando eles te apanharam não disseste, “parem, está tudo bem, vão perguntar-lhe, ela está mesmo ali”. Quer dizer, tu tinhas pedido o meu consentimento, certo? Eu estava acordada, certo? Quando a polícia chegou e interrogou os diabólicos suecos, ele chorava tanto que nem conseguia falar.
– O teu advogado insistiu que ninguém sabia ao certo quando ela tinha ficado inconsciente. E tens razão, talvez eu ainda pestanejasse e não estivesse ainda totalmente inerte. (…) De qualquer modo não paraste quando eu estava inconsciente. Foi alguém que te parou. Dois tipos a andar de bicicleta repararam no meio do escuro que eu não me estava a mexer. Como é que tu não deste por isso estando em cima de mim?
– Não durmo a pensar no que teria acontecido se aqueles dois tipos não aparecessem. O que me teria acontecido?
– Além de tudo isto, ele afirma que eu tive um orgasmo ao fim de um minuto de penetração digital. A enfermeira disse-me que a minha genitália estava esfolada, dilacerada e suja. Isso foi antes ou depois do orgasmo?
– Vir aqui sob juramento informar-nos que sim, eu quis, sim, eu permiti, e que tu és a verdadeira vítima, atacada por suecos por razões que desconheces, é assustador, é demente, é egoísta, é destrutivo.
– És culpado. Doze jurados consideraram-te culpado. (…) Culpado por unanimidade. Pensei que tinha acabado, finalmente ele vai assumir os erros, pedir desculpas sentidas, e vamos seguir em frente e melhorar. Depois li o teu testemunho.
– Se pensas que um dos meus órgãos vai implodir de raiva e eu vou morrer, estou quase lá. Estás muito perto. Isto não é mais uma história de um engate de estudantes bêbados com fraca capacidade de decisão. Agressão não é um acidente. De algum modo, ainda não percebeste isso.
– Dizes que estávamos bêbados, mas o álcool não é desculpa. (…) Beber demasiado foi um erro de amadora e admito isso, mas não é crime. (…) Estávamos ambos bêbados, a diferença é que eu não tirei as tuas calças nem a roupa interior, não te toquei inapropriadamente e depois fugi. Essa é a diferença.
– O teu dano foi concreto. Tiram-te os títulos, os graus, a matrícula (na Universidade de Stanford). O meu dano foi interno, invisível, carrego-o comigo. Tiraste-me o meu valor, a minha privacidade, a minha energia, o meu tempo, a minha segurança, a minha intimidade, a minha confiança, a minha voz, até hoje.
– Não me podes devolver a vida que tinha antes daquela noite. Enquanto te preocupavas com a tua reputação arrasada, eu arrefecia colheres todas as noites para que, quando acordasse, com os olhos inchados de chorar, as pudesse usar para reduzir o inchaço.
– Preciso de ter sempre alguém a meu lado, de ter o meu namorado comigo, a dormir comigo, protegendo-me. É embaraçoso sentir-me tão débil. Demorei oito meses a conseguir falar do assunto. Gritava com a família ou o namorado sempre que puxavam o assunto.
– Compraste-me um bilhete para um planeta onde vivo sozinha. Sempre que sai um novo artigo na imprensa, fico com a paranoia de que toda a minha cidade vai descobrir que sou eu a rapariga que foi abusada. (…) Quando comentam comigo que estou mais magra, digo-lhes que tenho corrido muito.
– Há alturas em que não quero que ninguém me toque. Tenho de reaprender que não sou frágil, sou capaz, sou saudável, não apenas lívida e fraca.
– Na minha opinião, ele tem idade suficiente para saber que o que fez é errado. Aos 18 anos, neste país podes ir para a guerra.
– Durmo com um desenho que fiz de duas bicicletas e colei por cima da minha cama, para me lembrar que há heróis nesta história.