Bruno R, 35 anos, 14 de alcoolismo e três de recuperação. Parece-lhe que tem duas datas de nascimento, uma em 81, outra em 2013, quando foi internado para uma cura de desintoxicação, já num estado lastimável de adição – “Nasci duas vezes”. Quando se refere ao período em que esteve insensível aos estímulos e às emoções, vítima de um cérebro doente que lhe raptava a vontade e o corpo, nunca diz “naquele tempo”. Diz, antes, “naquele sítio”: “Era um local mesmo muito sombrio”, o fundo do poço. “Deixei de ter a noção da passagem do tempo, como se tivesse aqueles anos todos fechado numa cabina telefónica. Não vivia no presente mas no futuro, sempre a planear o próximo copo.” A descida ao abismo começou numa esplanada, aos 18 anos, quando em vez de uma Coca-Cola resolveu pedir uma cerveja. Para experimentar. Detestou o sabor mas adorou a sensação de liberdade. De repente, desinibiu-se, deixou de ser tímido, começou a ter coragem de abordar raparigas. Descobriu “outro eu”, além de uma enorme tolerância ao álcool. Chegava a beber mais de 13 cervejas, em média. “Quando o bar fechava, era como se o mundo acabasse.” Levava sempre bebidas para casa, para consumir até adormecer. “E mesmo que não as bebesse, precisava de as sentir perto.” Se estava mais tempo sem beber, o pânico apoderava-se dele, o coração acelerava, ficava ofegante, por várias vezes pensou que morria. O emprego – foi DJ e segurança – descarrilou, mentia, falhava, faltava, descurava na higiene. Só agora se apercebeu de que aqueles a quem chamava amigos não eram mais do que “figurantes no cenário do vício”. “Não tinha amigos, não eram eles que me levavam a casa quando tinha blackouts e perdia os sentidos, ou só me movia de gatas; não eram eles que me davam banho; não eram eles que se preocupavam comigo quando me engasgava e quase sufocava com o meu próprio vómito.” Era a família. Por isso se irrita com um anúncio recente que associa amizade à bebida: “É mentira. A bebida não fomenta a amizade.”
Comportava-se sem filtros, depois ficava “vergado pela culpa e pela vergonha”. “Deixava-me guiar pelo rastilho do álcool e ia tudo à frente”, não fazia ideia do que tinha feito na noite anterior, notava mossas no corpo de quedas de que não se lembrava, tinha feridas que o organismo intoxicado já não regenerava e nunca cicatrizam, o que o angustiava ainda mais e voltava a entupir-se em álcool – estava preso, literalmente, num círculo vicioso. Quando fez 32 anos, resolveu organizar um jantar de anos, convidou toda a gente para um restaurante – ele foi o único que não compareceu. Tinha passado o dia a beber e já não dava acordo de si.
Bateu muitas vezes no fundo, mas não o suficiente para dar o impulso de vir à tona. O cérebro manipulava-o, entrava em negação, rejeitava a cura, preferia ser preso a ser internado, não suportava contrariedades, não ultrapassava os obstáculos da vida, “escolhia sempre o atalho do álcool”. Ficou em lista de espera para um serviço público, “era isso ou a morte”. Cinco semanas de internamento e muita psicoterapia depois, nomeadamente na rede Alcoólicos Anónimos – “antes ser um alcoólico anónimo do que um bêbado conhecido” –, Bruno descobre agora tudo o que lhe passou ao lado. Na parte dos afetos, ainda tem dificuldade em relacionar-se com namoradas, sente-se um rapazinho – nunca aprendeu a fazê-lo sóbrio. Mas passou a reparar em tantas coisas, até no canto de um pássaro, “eu nem ao cinema ia… porque ou não aguentava estar hora e meia sem beber ou ia já num estado em que não via nada”. “A adição é uma doença, tem de se fazer manutenção diária até morrer, não tem cura, como a diabetes. E eu andei a brincar, durante 14 anos, com a minha cabeça, com o meu fígado, com os meus rins… ” Está a viver o tempo perdido, recuperou o emprego, sente-se grato, já recaiu e apercebeu-se de como é fácil, “a doença continua a passear dentro de mim, basta um impulso, uma hesitação de segundos”. O álcool está por todo o lado, na publicidade, nas ruas, “passam-nos copos para a mão”, já teve de ser rude para recusar um copo de cerveja, “porque quem não bebe é careta”. Já sóbrio, voltou às discotecas, reconheceu-se nos comportamentos de outros embriagados. Não consegue achar graça. Sobretudo quando vê miúdos a beber shots uns atrás dos outros, até caírem. Gostava de os ajudar a não terem de passar por tudo o que ele passou: “Isto está a tornar-se uma verdadeira loucura, alguns são crianças…”, comenta.
‘Binge drinking’ ou beber até cair
O psiquiatra Margalho Carrilho, especialista em adição, também usa a mesma expressão: “uma perfeita loucura”. A situação parece estar a fugir de controlo e com a cumplicidade passiva da sociedade. Portugal está, segundo a OMS, entre os 10 países onde mais se bebe (12,5 litros de álcool puro per capita por ano), a bebida circula livremente nas famílias, é uma droga lícita, democrática e acessível, e, em geral, tolerada socialmente pelos pais, mais preocupados se os filhos consomem marijuana ou cocaína. Mas, explica o psiquiatra, o paradigma mudou de há duas décadas para cá, os jovens iniciam-se em idades muito precoces em bebidas destiladas, como o gin ou o vodka, em vez das tradicionais bebidas fermentadas, como a cerveja ou o vinho (com mais baixo teor de álcool). Importou-se a tradição dos países do Norte, explica, já não é beber para ficar alegre mas praticar o binge drinking: adolescentes bebem continuamente sem parar, ao ritmo de seis shots por minuto. “Os jovens procuram o efeito stone, o atordoamento rápido. Dantes apareciam-me adultos com consumos prolongados, agora aparecem-me miúdos que consomem de forma chocante. Só lhes falta beberem álcool puro…” O médico lamenta que estas bebidas, altamente nocivas, sobretudo em organismos jovens, não tenham uma taxa fiscal mais acentuada. Aboliram-se as campanhas ao tabaco, imprimiram-se alertas e fotos alarmantes nos maços de tabaco, mas nunca se tomaram providências semelhantes nas bebidas, tantas vezes associadas a crimes, suicídios, à violência no namoro e doméstica, a acidentes rodoviários e atropelamentos. Se, continua o psiquiatra, a nicotina é a droga cerebralmente mais poderosa e que provoca mais mortes, logo a seguir vem o álcool com uma série de danos pessoais e sociais, e mortalidade precoce. O médico brasileiro Ronaldo Laranjeiro, professor da Universidade de São Paulo, um dos maiores especialistas, em língua portuguesa, em adição, fala frequentemente nos efeitos devastadores do álcool, desde a violência urbana às doenças cardiovasculares ou ao cancro (30% dos cancros estão ligados ao álcool). Pelas estatísticas, afirma, quem associa álcool e cigarro dificilmente irá ultrapassar os 55 anos de vida. As raparigas apresentam um fator de risco acrescido, pois não só o seu metabolismo absorve o álcool mais rapidamente como têm 20% de maior probabilidade de ter cancro da mama. Uma coisa é beber sem intoxicação, outra é o consumo excessivo, ainda mais lesivo se acontecer antes dos 18, 20 anos: em termos neurológicos, o cérebro ainda está a formar-se e é muito plástico e vulnerável à dependência. A exposição excessiva ao álcool pode interromper ciclos cruciais, nomeadamente ao nível do hipocampo (onde se localizam a memória e a aprendizagem) e da zona frontal, que controla os impulsos, a violência, a capacidade de pesar as consequências. Começar a beber precocemente torna o jovem quatro vezes mais propenso a ficar com adição.
‘Blackout’ ou perder a noção
Nos bares e discotecas veem-se jovens em blackout, completamente destituídos da capacidade de decidir, raparigas quase despidas nos cantos, miúdos a consumir shots de gelatina com sabor a morango, mas de teor alcoólico, praticam-se rituais, bebe-se tequila a lamber o sal da palma da mão do parceiro, fazem-se duelos para ver quem bebe mais. Vive-se na sociedade de consumo rápido. Dos contactos rápidos. Procura-se alegria rápida, satisfação rápida, sexo rápido… e desprotegido. Nos festivais de verão, a bebedeira é quase instituída – jovens chegam já bêbados aos recintos e muitos destes festivais têm marcas de bebidas como patrocinadores. Nas Queimas, a bebida é oferecida. Este ano, na de Coimbra, 400 estudantes foram assistidos, a maioria por excesso de álcool. A Cruz Vermelha já instalou uma tenda, do género hospital de campanha, só para acudir a estes casos. António Preto, dos Hospitais Universitários de Coimbra, esteve muitas vezes de banco nos dias da Queima e da Latada. Recorda, há anos, alguns jovens que não vinham com excesso de álcool nas veias, mas, mais parecia, com sangue no álcool. A partir do meio-dia começavam a chegar às urgências. Alguns em coma alcoólico (quando o organismo entra em colapso, perde-se os reflexos e o raciocínio e as funções vitais começam a deixar de funcionar, desde a respiração ao equilíbrio). Lembra-se, em particular, de um rapaz de 20 anos que deu bastante trabalho à equipa. Depois de lhe injetarem soro e substâncias para diminuir a concentração e acelerar a degradação do álcool, o rapaz lá se foi recompondo. Quando voltaram à maca, já não estava lá, tinha-se ido embora sem ter alta. Foi com espanto que a equipa o viu regressar ao fim da tarde, de ambulância, ainda em pior estado, com a segunda overdose alcoólica do dia. José Dias, presidente da Associação Académica de Coimbra, afirma que, na academia (30 mil estudantes), se têm feito muitos progressos ao nível da prevenção ambiental, através da promoção de copos recicláveis, e garante até que este ano não foram tantos carrinhos parar ao rio – os estudantes vão buscar carrinhos de supermercado para transportar o maior número de bebidas e depois ganharam este hábito de os atirar ao Mondego. A maior festa académica do País, que tem entre os patrocinadores marcas de bebidas, parece, vista de fora, uma enorme orgia etílica. Mas, nega José, tem aspetos culturais, cívicos e desportivos importantes, além dos recreativos e o número de intoxicados diminuiu face a anos anteriores. Têm feito campanhas de sensibilização para os comportamentos de risco, contra a bebida em excesso, drogas, tabaco, violência no namoro, prevenção rodoviária, mas, quando se pergunta porque não um dia da Queima sem álcool, o presidente da associação admite que nunca equacionaram essa hipótese.
Na clínica de reabilitação e dependências químicas Creta, o psicólogo coordenador, João Soares, vê-os chegar com 14 ou 15 anos. Nunca, em 23 anos de existência da clínica, recebeu pacientes tão precoces no alcoolismo. Por vezes, vêm com policonsumos: acumulam outras substâncias, “mas a tendência iniciadora é quase sempre o álcool”. “A sociedade assiste como se fosse um espetáculo, minimiza, desvaloriza e até glamouriza”, comenta. Na opinião do psicólogo, “a abordagem não deve incidir apenas nos jovens mas também nos pais, que têm de incutir regras, princípios em casa, de forma a minimizar comportamentos de risco”. Para Ana Pinto Coelho, investigadora e consultora em dependências químicas e comportamentais, há pouca consciência, em Portugal, de que o alcoolismo é “uma doença primária (pode haver predisposição genética), progressiva e fatal”. Como costuma dizer, a adição só pode levar a um de três sítios: à prisão, ao hospital ou à morgue (ou aos três juntos). Parece-lhe que toda a sociedade está “em negação”, até as estatísticas indicam como causa de morte ataque cardíaco ou acidente, “quando a causa real é o álcool”. Tudo parece pretexto para beber: celebrações, festas, concertos, encontros românticos, de trabalho, “até é de bom-tom levar uma garrafa quando se é convidado a jantar a casa de amigos”. “Para os alcoólicos em fase adiantada, beber não traz felicidade, nem conforto. Não é mais do que uma subida ao altar da autodestruição.” Eles apenas “obedecem às ordens do cérebro doente que incita, sem dó nem piedade, que continuem a beber”. Precisam de ajuda, é muito difícil sair disto sozinho. E alerta a consultora: “Quanto mais cedo começa, pior acaba.”
Conduzir para a morte
No próximo E Se Fosse Consigo?, um jovem, visivelmente embriagado, prepara-se para entrar no carro e conduzir. O estado impróprio dele e da namorada é evidente. Os protagonistas são atores mas a cena acontece na realidade. Será que alguém vai impedi-los de entrar no carro? Este é o ponto de partida do programa sobre o consumo de álcool dos jovens. Segunda-feira, às 20h50, num simultâneo SIC/SICNotícias