A praia chama-se Paraíso. Só percebemos porquê quando saltamos um muro e seguimos o chefe Rui Silvestre pela escarpa cheia de ervas. Lá em baixo, as ondas batem forte nas rochas sempre que rebentam.
A vista, com um céu azul irrepreensível, faz jus ao batismo.
É por aqui que, quase todos os dias, alguém da equipa do Bon Bon o restaurante do Carvoeiro que ganhou uma estrela Michelin na edição do guia de 2016 passa e começa o dia de trabalho. Há muita erva aromática que vai parar aos pratos deste fine dining, cognome que se lê nas tabuletas que indicam o caminho para lá chegar.
Rui Silvestre só consegue apanhar funcho do mar, mas não poderá utilizá-lo nas suas criações. Por estes dias, o Bon Bon está virado do avesso. As obras profundas só permitem que as portas se abram a 11 de fevereiro (apenas jantares).
A ementa está quase pronta e vai manter-se um menu de degustação que pode ser de três, cinco ou sete opções.
Mesmo sem querer revelar as surpresas da época pós-Michelin, sabemos que haverá chorão (sim, a planta) cozinhado a acompanhar ostras, 90% do menu será constituído por vegetais e surgirá um novo conceito de harmonia, com pequenos aperitivos entre cada prato (antes de servir bivalves, por exemplo, apresentará um mexilhão confitado e congelado com nitrogénio líquido que fica crocante e prepara o palato para o que se segue).
“Continuamos com a mesma cozinha simples, sem ser simplista, muito assente no que temos aqui na região, como peixe, marisco e ervas.” Rui tem cabelo curto, espetado para cima à custa de gel. Está todo vestido de preto, com uma camisola de malha e botas com os atacadores meio desapertados.
No pulso direito usa quatro pulseiras com missangas grandes e no outro não dispensa um relógio de linhas clássicas. Tira cigarros de um maço também ele preto e, enquanto falamos, bebe dois cafés. “Não gosto de rótulos, faço o que me dá na telha. Aqui somos 100% livres a trabalhar”, garante. E pelo ginete que tem, aos 29 anos, percebemos que só assim poderia ser. Logo ele que veio parar às cozinhas por acaso.
Quando acabou o 9.º ano, já em Lagos, para onde foi viver quando deixou Valongo, teria escolhido Antropologia, não fora um professor de História dizer-lhe que para exercer essa profissão teria de emigrar. Virou então a agulha para a Escola de Hotelaria de Portimão, que frequentou durante três anos.
Quando saiu de lá, foi o amigo Nuno Diogo (hoje dono do Bon Bon) que lhe arranjou um lugar no Colina Village, dentro de um aldeamento algarvio. Depois abriu o Pimenta Preta, que ainda hoje existe. E foi-se mantendo por ali, afinal era o que queria na altura. Até que provou um menu de Bertílio Gomes chefe hoje à frente da cozinha do Chapitô, em Lisboa e percebeu que havia muito mais mundo além do seu Algarve.
Decidiu emigrar nesse mesmo dia. Enviou currículos numa quarta-feira, recebeu uma proposta na sexta, e partiu rumo à Normandia, para um restaurante com uma estrela Michelin, no domingo seguinte.
Aos 22 anos, e sem falar uma palavra de francês, aterrou numa cozinha com duas dezenas de pessoas. Só teve oportunidade para descascar e limpar, ganhando o ordenado mínimo. Mas como fazia as suas tarefas rapidamente para poder mostrar o que valia, logo passou a chefe de secção das carnes. Aprendeu francês a ler livros e hoje, apesar de estar em Portugal há dois anos, essa ainda é a língua que prefere quando fala de gastronomia.
Não admira: depois da Normandia, trabalhou quase sempre em francês (e sempre no universo Michelin), se excetuarmos a sua passagem pelo Costes, em Budapeste, para onde foi quando Miguel Rocha Vieira saiu. “Conheço praticamente toda a Europa e isso fez-me crescer.
Mas, desde que nasceu a minha filha, há dois anos, já não tenho vontade de andar de um lado para o outro.” No entanto, Rui Silvestre continua a viajar, sempre com a comida debaixo de olho. Da última vez que foi a Marrocos, conta, engordou oito quilos em dez dias, porque almoçava e jantava duas vezes.
E gastou dois mil e quinhentos euros em especiarias. “Parecia um puto numa loja de brinquedos”, lembra, divertido. Nos bastidores do restaurante, diz, já não se ri tanto. “Estive em cozinhas em que a violência era normal, quando assumi a chefia era muito complicado trabalhar comigo. Sou muito obcecado, mas tento não ser mauzão.”