Começamos às escuras. É de noite, os faróis dos camiões são fracos e estamos algures na Argélia mas não sabemos exatamente onde. Um homem entre muitos outros é seguido de perto pela câmara. Alguém trata-o por Ayiva, talvez seja Abas; aprenderemos mais tarde que os dois são amigos e saíram de uma aldeia no Burkina Faso, a caminho do sonho europeu que viram no Facebook dos amigos.
Chegaram ali não interessa como. O que interessa é que conseguem lugar no camião que vai largar um grupo de homens e algumas mulheres na fronteira com a Líbia. E que, quando pisam o deserto, faz-se luz no ecrã, o sol da manhã a queimar-lhe os olhos e as pedras a lembrar-nos que as paisagens de areia sem fim apenas existem nos filmes de ficção.
Por esta altura, continuamos às escuras sobre a personagem principal. Vai ser preciso os imigrantes serem assaltados no deserto e mais tarde resgatados do mar pela guarda costeira italiana para ficarmos a saber que Ayiva deixou para trás uma filha pequena, com a sua irmã. Os cinquenta euros ganhos nos dois primeiros dias a apanhar laranjas em Rosarno, no sul de Itália, darão para elas se sustentarem durante muito tempo.
Para trás, na verdade, nunca viremos a saber nada. O realizador de Mediterranea quis contar-nos a sua vida na Europa, uma Europa muito diferente daquela que entreviu no Facebook. Jonas Carpignano só decidiu começar o filme com a parte final viagem para não nos esquecermos de que ela nunca é uma pera-doce.
“O que acontece depois” foi o ponto de partida, já disse Carpignano, o plural neutro do título em latim a querer significar “um lugar que não pode ser definido de acordo com as suas fronteiras”. E o que acontece depois, no caso de Ayiva, Abas e de muitos outros imigrantes africanos que como eles chegam à Europa quase sem rede, é o mergulho num cenário inesperadamente vazio de perspetivas. “E agora?”

À chegada a Rosarno, Ayiva e Abas arranjam trabalho nas plantações de laranjas. Um trabalho pesado e mal pago
Laranjas, Ndrangheta e tiros
Ayiva e Abas têm à sua espera dois ou três amigos que deixaram o Burkina Faso uns anos antes. A ajuda é providencial mas curta. Os dois acabam a dormir numa tenda abarracada que deixa passar o frio das madrugadas, e gastam os dias num trabalho pesado e mal pago na apanha de fruta. As miúdas giras europeias que viram no Facebook nunca se materializam. E parte da população local há de revelar-se racista e xenófoba.
Mais do que inspirado numa história real, o Mediterranea grita “documentário” por quase todos os frames, até pela maneira como foi filmado. Não é por acaso. Uns 90% do que acontece no filme aconteceu a Koudous Seihon, o ator que interpreta Ayiva.
A percentagem é avançada pelo próprio realizador, que conheceu Koudous em Gioia Tauro, a 8 quilómetros de Rosarno, na região da Calábria, logo da primeira vez que lá esteve, em 2011. Um ano antes, a pequena cidade assistira a uma revolta de mais de 1 500 imigrantes africanos ilegais que ali trabalhavam e viviam em condições desumanas. Carpignano queria filmar uma curta-metragem sobre “A batalha de Rosarno”, como lhe chamou o jornal La Repubblica.
Os homens chegavam a estar na apanha doze a catorze horas por dia, recebendo 1 euro por caixa de mandarinas ou 50 cêntimos pelas laranjas; no fim, tinham de dar uma percentagem à Ndrangheta, a máfia local. Dormiam acampados, numa velha fábrica desativada e numa outra estrutura abandonada.
Em 2010, a revolta estalou quando um grupo de desconhecidos atingiu vários imigrantes – um deles refugiado político do Togo com autorização de residência válida – com uma espingarda de pressão de ar. Os ferimentos não inspiraram grandes cuidados, mas a reação aos gritos de “No more shooting blacks!” (parem de matar negros) não se fez esperar. Entre dezenas de carros incendiados, montras de lojas destruídas e confrontos com o corpo de intervenção, foi o caos em Rosarno.

Koudous, Pio e Marta
Filho de uma afro-americana (a família da mãe é originária dos Barbados) e de um italiano, Jonas Carpignano faz 32 anos no próximo dia 16. Tinha 28 quando apresentou A Chjàna, com Koudous Seihon como protagonista. A curta fez o périplo dos festivais de cinema, ganhou prémios e levou os responsáveis do laboratório de guionistas de Sundance a contactarem o jovem realizador. Quereria ele fazer uma residência no Utah?
Carpignano regressou, então, aos Estados Unidos. Crescera em Nova Iorque, no Bronx, no seio da comunidade latina porto-riquenha e dominicana, e saíra “por razões geográficas” – não lhe interessava fazer filmes na América. Tinha família em Itália, e fora em Itália que entrara no mundo do cinema a pés juntos, pela mão do avô paterno, ele próprio realizador.
Trabalhara como assistente de realização durante uns anos. De uma das vezes, conseguiu um emprego “à americana”: meteu conversa conversa com Spike Lee que estava de visita a Roma, para receber um prémio, e ofereceu-lhe os seus préstimos. O realizador terá achado graça à lata do miúdo e acabou por lhe telefonar uns meses mais tarde, convidando-o para ser seu assistente no filme Miracle at St. Anna (2008). [Alguns críticos escrevem que as cenas mais violentas de Mediterranea lembram Spike Lee]
Em Sundance, diz que aprendeu com os melhores. E veio de lá com a certeza de que A Chjàna ia dar lugar a uma longa-metragem, mas pelo meio ainda haveria de escrever e realizar uma outra curta, A Ciamba (2014), sobre Pio (Pio Amato), um miúdo fura-vidas de etnia cigana que podemos (re)ver em Mediterranea.
Pio arranca-nos algumas gargalhadas, quase só ele é capaz disso ao longo dos 107 minutos de filme. Há uma outra miúda, Marta (Vincenzina Siciliano), a filha pré-adolescente do patrão de Ayiva, que nos deixa respirar um pouco, fazendo o contraponto com a complicada existência do imigrante. Carpignano conheceu Vincenzina por acaso uma noite, num restaurante e decidiu logo ali incluí-la no filme. “Estávamos a jantar e o Koudous desapareceu durante muito tempo. Achei estranho, fui à sua procura e encontrei-os a jogarem num iPhone. Eu já tinha uma miúda na história e ela, mandona como é na vida real, pareceu-me perfeita.”
Foi assim com a maioria dos atores do filme. À exceção dos italianos e de Alassane Sy, um ator senegalês que Carpignano conheceu em Sundance, escolhendo-o para dar corpo a Abas, são na sua maioria imigrantes africanos a interpretarem a sua própria vida. “Não sendo um documentário, improvisámos muito. Na verdade, eles raramente dizem ou fazem no filme alguma coisa que nunca tinham dito ou feito.”

Jonas Carpignano
Jonas e Rihanna
Carpignano conheceu Koudous mal chegou a Rosarno, em 2011. Para assinalar a revolta, os imigrantes tinham organizado uma manifestação e Koudous ia à frente, de megafone, a falar francês, inglês, italiano, ganês, a conduzir a marcha. “Era muito carismático, o meu olhar caiu logo sobre ele”, recorda o realizador. “Pensei: ‘Este tipo tem tanto carisma a comandar que vai também comandar no ecrã’.”
Mas não foi fácil convencê-lo a interpretar o seu próprio papel num filme. Koudous tinha-se transformado num ativista, tinha mais que fazer. “Tive de o cortejar. E gastei tanto tempo que nos tornámos bons amigos. Ao segundo dia da curta já sabíamos que queríamos fazer alguma coisa maior.”
Koudous nasceu em Zabre, no Burkina Faso, foi pai aos 20 anos e deixou a sua cidade em 2008, para procurar trabalho na Europa. Atravessou o Mali, o deserto do Sahara, a Argélia, a Líbia e o mar Mediterrâneo. Continua a trabalhar na apanha da laranja, ao mesmo tempo que defende os direitos dos imigrantes. Hoje, já tem vistos que lhe permitem viajar até Londres e os Estados Unidos, mas ainda não conseguiu o reagrupamento familiar. Para isso precisa de uma autorização permanente de residência e de provar que ganha o dinheiro suficiente para sustentar a irmã e a filha.
Jonas mudou-se para Rosarno e divide casa com Koudous. Prepara uma longa sobre Pio, um miúdo ao mesmo tempo “alarmante e hilariante”, que é amigo de Ayiva. O filme não será uma sequela de Mediterranea, mas continua à volta das relações entre as pessoas, as comunidades, os mundos tão diferentes que, no fim, se encontram. E, acredite-se ou não, o fio condutor pode ser Rihanna. “No meio de tanta diferença, a música pop é uma das colas que nos une.”