É com tristeza que José Carlos Pereira, 44 anos, revela já ter perdido vários amigos desde o início da sua luta contra a Uber – uma aplicação móvel que liga motoristas privados a utilizadores – acusada de trabalhar à margem da lei. Uma das amizades perdidas deveu-se a uma “suprema traição”: um motorista de táxi com carros ao serviço da Uber. José Carlos já denunciou os seus veículos 14 vezes… “Éramos amigos há mais de 20 anos”, lamenta, mas a emotividade do momento é subitamente interrompida. De repente, faz um sprint e põe-se à frente de um Mercedes, chamando a polícia. “É um Uber! É um Uber!”, grita. Com a denúncia de uma eventual ilegalidade, a PSP é obrigada a identificar o condutor e a elaborar uma participação. “Reconheci o carro porque já o denunciei antes”, afirma, orgulhoso, antes de tirar mais uma fotografia para exibir no Facebook os resultados da caçada do dia. Bruno Cordeiro, 41 anos, tem escassas 48 horas de experiência enquanto motorista de uma empresa turística parceira da Uber. “É a minha estreia no aeroporto”, confessa, antes de acrescentar: “Não me importo de ser identificado pela polícia, desde que não haja violência. Tenho alguns colegas que foram alvo de agressões.” Os passageiros suíços estão surpreendidos com o aparato. “Não fazia ideia de que a aplicação era polémica em Portugal, na Suíça corre tudo muito bem”, garante Mirò Fuchs, 32 anos.
Cenas como esta têm-se repetido no aeroporto da Portela, em Lisboa, sobretudo na zona das chegadas. O principal responsável é José Carlos Pereira, que soma 110 denúncias de automóveis de empresas parceiras da Uber, como táxis A e T, rent-a-cars ou operadores turísticos, que usam a aplicação para terem acesso a mais clientes. Contudo, a Uber não tem conhecimento de ter sido dado seguimento a qualquer denúncia “porque todos os seus parceiros estão legais”.
A praça do aeroporto é o local de paragem de José Carlos há 23 anos. Quando sentiu o seu “ganha-pão” ameaçado, resolveu agir. O primeiro passo foi descarregar a aplicação e usar o serviço para saber como funcionava. Assim percebeu que a melhor estratégia de caçada era observar quem se desviava da fila dos táxis com o smartphone na mão. “Quando vejo o mapa da aplicação no telefone de alguém, persigo essa pessoa”, revela. Assim que chega o veículo, repetem-se as corridas, os gritos e os braços no ar. Num desses sprints fez uma microrrotura na perna esquerda, o que não o impede de fazer turnos de cinco horas, ou mais, em busca dos Uber. A exigência da tarefa levou-o a entregar o táxi a um empregado no início de agosto.
Luta nas redes
Se Bolicao (a alcunha vem do tempo em que almoçava um pão com chocolate à pressa, para não perder serviços) usa o Facebook para fazer eco da luta anti-Uber, também é nas redes sociais que são denunciados ?alguns dos excessos dos taxistas.
No final de agosto, Nikita Kaminskyy, 21 anos, tinha acabado de aterrar em Lisboa vindo de Istambul, na Turquia, e chamou um Uber. Enquanto aguardava, assistiu à chegada de um UberBlack (serviço de gama alta) que vinha recolher uma turista. “De repente, vejo alguns taxistas a porem-se à frente do carro e a chamarem outros para não deixarem o carro avançar”, conta o estudante, que deixou a Ucrânia há dez anos. No séc. XXI só havia uma coisa a fazer: pegar no telemóvel e filmar. No vídeo publicado no YouTube veem-se alguns taxistas a impedirem a passageira de fechar a porta e, à frente do carro, sem surpresas… José Carlos. Apesar de ter pouco mais de um minuto, o filme deu origem a várias notícias e foi visto por mais de 170 mil pessoas. José Carlos abordou-o no final do episódio: “Disse-me que me tinha visto a gravar e que não havia problema. Quando o meu Uber chegou ele voltou a chamar a polícia. Perdemos ali uns dez minutos, mas foram todos educados.”
Nikita voltou a debater o assunto com José Carlos quando se cruzaram no Pavilhão Multiusos do Sporting, onde o estudante e o filho do taxista praticam boxe. “Até me deu os parabéns pelo sucesso do vídeo”, conta. E, depois, pediu-lhe amizade no Facebook: “De vez em quando, lá me aparecem as fotos dos carros da Uber que ele denuncia…”
Apesar de haver vários taxistas na família, foi a falta de alternativa que atirou José Carlos para o volante. “Juntei dinheiro para tirar a carta aos 18 anos. Fiz o exame num dia e, no seguinte, já estava na praça”, recorda, sempre atento às movimentações dos turistas que aguardam boleia nas chegadas do aeroporto. Cresceu na Musgueira Sul, hoje vive em Loures. Emociona-se quando recorda a avó materna, que o criou. A lágrima fácil contrasta com os braços esculpidos por anos de musculação. Não chegou a completar o 5.º ano e foi trabalhar como ajudante de motorista. Aos 17 anos deu-se como voluntário para os Comandos, mas abandonou a carreira porque o filho nasceu nessa altura. Bruno Pereira, hoje com 26 anos, seguiu as pisadas do pai e acompanha-o quando se diz “100% contra a Uber”.
Os colegas da praça admiram José Carlos como a um herói. Dão-lhe os parabéns, dizem querer vê-lo presidente da ANTRAL, a maior associação de taxistas, e seguem-no como um líder, como na paralisação de uma hora e meia dos taxistas do aeroporto na passada semana. E até fizeram uma coleta para pagarem uma viagem à Irlanda para o seu filho participar num torneio de boxe. Mas também há profissionais que não concordam com o seu tipo de ação. Um motorista que pede para não ser identificado acredita que “há mais desejo de protagonismo do que verdadeira preocupação com a classe”. Outro taxista, com 14 anos de profissão, defende que “deveria antes lutar para melhorar o serviço dos táxis” pois ?”a caça ao Uber só contribui para a má imagem do setor junto da opinião pública”.
Histórias de violência
O Tribunal Central de Lisboa aceitou uma providência cautelar da ANTRAL contra a Uber em abril. Mas a medida cautelar visa a Uber Technologies Inc., sediada nos EUA (avaliada em 45,5 mil milhões de euros), e a empresa alega no recurso apresentado na Relação que é a Uber BV, outra identidade jurídica, que explora o negócio em Portugal. A situação poderá ficar mais clara com a regulamentação do novo regime jurídico de transporte público de passageiros. O Governo admitiu aguardar pela posição da Comissão Europeia sobre a matéria. Enquanto isso, a Uber continua a funcionar, considerando que presta serviços de transporte privado e não público, como os táxis.
Mas a batalha está longe de ser travada apenas a nível cível nos tribunais. À VISÃO, um motorista da Uber revela ter sido agredido “com murros e pontapés” no aeroporto por um grupo de taxistas. A sua queixa-crime é uma das seis apresentadas contra taxistas desde o início do ano, em Lisboa, pela prática de injúrias, ameaças e agressões. Outro condutor relata ter sido retirado do automóvel à força e agredido por três homens, que depois lhe regaram o carro com gasolina. Depois de uma semana de convalescença, voltou ao trabalho – mas não aceita viagens para o aeroporto. José Carlos conhece a história mas demarca-se de qualquer envolvimento, apesar de admitir que pendem sobre ele três queixas-crime por alegadas agressões e ameaças. No início de setembro, também foi alvo de um mandato de busca ao seu táxi. Mais uma vez, emociona-se quando fala da vergonha de ter toda a gente a assistir no aeroporto às buscas da polícia. Os potenciais problemas com a Justiça estavam acautelados pelo apoio jurídico da ANTRAL, mas o verniz estalou quando o presidente da associação, Florêncio Almeida, lhe anunciou o cancelamento do apoio depois de José Carlos não ter aceite aguardar no Martim Moniz, juntamente com os motoristas mobilizados para a manifestação que paralisou Lisboa na tarde de sexta-feira, enquanto três representantes da ANTRAL eram recebidos por membros do PSD, no último dia de campanha eleitoral, minutos antes do comício agendado para a Praça da Figueira. Contrariando o pedido da PSP, de megafone na mão, José Carlos avançou pela esquerda do Hotel Mundial e “invadiu” o comício com um grupo de taxistas. Pouco depois, desatou num pranto convulsivo: “Se for preso não me importo!” Os colegas batiam-lhe palmas e gritavam vivas. Até o hino José Carlos cantou com as lágrimas nos olhos e as TVs a filmarem. Ao final da noite, José Carlos decidiu, então, abraçar mais uma luta: a destituição da atual direção da associação. Num vídeo colocado na sua página de Facebook diz-se atraiçoado e pede o apoio dos colegas para “acabar com toda a máfia que está dentro do sistema”. Mas a caça à Uber, garante, não vai parar.
Táxi vs. Uber
Conheça as vantagens e desvantagens dos táxis e dos automóveis ao serviço da Uber
- Basta pedir um carro através da aplicação e o motorista mais próximo vai ao encontro do passageiro com a ajuda do GPS. O cliente acompanha o percurso pelo telefone e é informado do tempo que demora a chegar a boleia
- A oferta é maior, o que pode facilitar o acesso a um carro, seja na praça de táxis ou com o simples gesto de esticar o braço na rua
- Os passageiros classificam os motoristas no final da viagem e podem recusar ser transportados por motoristas com más pontuações
- A aplicação da Uber obriga a registar o número de cartão de crédito através do qual será feito o pagamento das viagens, nos táxis os clientes são livres de pagarem em dinheiro
- Os passageiros recebem uma estimativa do custo da viagem antes de solicitarem o serviço. O preço varia consoante a procura, mas sempre que está a ser praticada uma tarifa acima do normal o cliente é informado
- Pode circular nas vias Bus, estando menos dependente do trânsito
Três perguntas a… Rui Bento, 31 anos, diretor-geral da Uber em Portugal
‘Não estamos à margem da lei’
O responsável máximo pela plataforma de mobilidade no nosso país não tem dúvidas de que “a inovação caminha muitas vezes à frente da regulamentação”, mas sublinha que a presença da Uber em Portugal é inteiramente legal.
Porque é que a aplicação causa tanta polémica?
O setor da mobilidade é muito regulado em vários mercados e a tecnologia tende a ser disruptiva. É importante o diálogo entre os agentes do setor – operadores, legisladores e reguladores – para que todos possamos melhorar. O desafio é atualizar a regulamentação de forma a garantir que operadores, utilizadores e a própria economia são bem servidos.
A Uber continua a funcionar porque a notificação da providência cautelar interposta pela ANTRAL foi enviada para a morada errada?
Não se trata apenas de uma questão de troca de morada, mas de entidade jurídica. A empresa visada foi a Uber Technologies Inc., que opera nos EUA, enquanto a empresa portuguesa responde à Uber BV [sediada na Holanda]. É importante sublinhar que só operamos com parceiros licenciados, que já existiam no mercado, não estamos à margem da lei.
Tem conhecimento de casos de motoristas intimidados por taxistas?
Nós estamos sempre ao lado dos nossos parceiros e vamos tomando conhecimento de algumas situações por eles, mas são casos do foro criminal que estão a ser resolvidos no fórum próprio.