José Falcão Trigoso era um homem especial. Visionário, dizem muitos, e sensível, podia acrescentar a filha, Maria, que era um bebé quando a família trocou Lisboa por Lagos. Estávamos nos anos 30 e o pai largava um emprego maçador na banca por uma vida de agricultor na terra onde nascera. José tinha uma quinta que herdara, mas tinha sobretudo vontade de passar os dias no mar. Foi o que conseguiu ao comprar um terreno em cima da praia da Dona Ana e lá construir uma casa.
Nessa altura, a praia só era conhecida dos pescadores da zona. Ainda hoje Maria se lembra dos olhos azuis do homem a quem a avó, Piedade Corte-Real, encomendava o peixe que ele iria apanhar para o almoço.
E de como os amigos do pai se juntavam lá em casa, organizando espetáculos.
O juiz Armando Soares Ribeiro era um deles. Quando ia à praia, gostava de nadar com um jornal até um dos leixões e ficar por lá a lê-lo. O ritual valeu-lhe uma placa nesse leixão, chamado há anos de Pedra do Juiz, simbólica para os miúdos que gastavam os verões na Dona Ana: nadar até lá só a partir dos dez anos. Quando os turistas descobriram a Costa d’Oiro, a Casa Trigoso deixou de ser a única construção junto à praia. Nas últimas duas décadas ganhou vários empreendimentos turísticos à sua volta. Quanto à Pedra do Juiz, continuou a ser um desafio, até que, este verão, ficou em areia seca.
Há um antes e depois de abril de 2015.
Foi nesse mês que começou a obra de alimentação artificial da Dona Ana, que implicou a construção de um esporão entre a arriba e o Leixão da Artilharia e a descarga de 150 mil metros cúbicos de areia retirada ao fundo do mar. Desde abril foram muitas as vozes que se levantaram contra a descaracterização da praia, e, agora que as máquinas saíram do areal, a Associação de Defesa do Património Cultural e Ambiental do Algarve (Almargem) vai apresentar uma queixa na Comissão Europeia contra o Estado Português e uma queixa-crime no Ministério Público contra o Ministério do Ambiente. Em causa está a inexistência de um estudo de impacto ambiental, que seria obrigatório segundo um decreto-lei de 2013. A VISÃO sabe que a tutela irá argumentar que o projeto é anterior ao decreto.
Maria Trigoso anda arrepiada com o cheiro da areia. “Vem de um sítio com muito material orgânico.” E custa-lhe terem desaparecido as pequenas rochas. “A Dona Ana ficou uma praia banal. Parece um campo de aviação, de terra batida.”