Para variar, este texto vai começar pelo fim. Ou melhor, pelo futuro. Avancemos no calendário até 2050 para encontrar Leonardo Pereira, um célebre chef que decidiu arrumar os tachos aos 65 anos. Encontramo-lo numa quinta, algures em Portugal ou, quem sabe, na Tailândia, de onde é a sua mulher. Passa os dias com as mãos e os pés na horta, a comer o que o solo lhe dá, da forma mais natural possível. “É o meu maior prazer.” Nem sempre foi assim. Em miúdo “odiava” ficar com terra nas mãos quando ajudava o pai na quinta onde viviam, em Milheirós de Poiares, Santa Maria da Feira.
Como o texto começou pelo fim, a nossa refeição também vai virar-se do avesso. “Trago-vos um ‘petit four'”, avisa, em caso de dúvida. É simples, original e saboroso – talvez os três adjetivos que melhor se adequem à comida de Leonardo Pereira. Em cima de uma tábua de madeira tosca, apresenta-se uma banana da Madeira desidratada, que se faz passar por alfarroba, ao lado de pequenas bolachas de alfazema e de um montinho de sementes de sésamo e sal de alecrim. A banana caramelizada deve ser barrada e polvilhada com aquela mistura. Explosivo.
Andemos vinte anos para trás. Leonardo está no pleno do seu sonho. Aos 45, é dono de uma tasca revolucionária: cadeiras tortas, mesas a balançar com jarros de vinho em cima e clientes a comer e a conversar até à hora que querem. “Nem precisam de me pagar, dão-me pinturas ou qualquer coisa do género.” Ao lado dessa tasca, está a horta de onde saem os produtos para os pratos inovadores que lança neste restaurante popular, ao estilo bistrô. Afinal, sempre conseguiu atingir a “democratização da gastronomia”, como sonhava aos trinta. Nunca quis ser um “chef num restaurante finório”.
Continuando de trás para a frente, chega-nos o prato de peixe. No menu, com descrições muito breves, lê-se: “Tamboril, Amaranto e Chuchu.” O chef vem à mesa com uma pequena frigideira na mão, mostrar como acaba de cozinhar o peixe, caramelizando-o com espuma de manteiga. No prato, há também lascas de chuchu, temperadas com limão, e rebentos de ervilha. Só o rolinho com pequenos grãos de amaranto desilude… O resto está irrepreensível, mesmo para quem não morre de amores por tamboril.
Em janeiro de 2015, Leonardo Pereira tem 30 anos. A experiência no estrangeiro pô-lo, desde dezembro, à frente da cozinha do hotel Areias do Seixo, em Santa Cruz, uma praia a 45 minutos de Lisboa. O dia está triste, daqueles em que a chuva deixa tudo cinzento, sem que se distinga o céu do mar. É uma pena, porque o momento pedia uma luz especial. Almoçamos num enorme open space que se confunde com a receção, a sala de estar e uma mercearia com produtos da casa. Entre a vista para o mar ou para a cozinha, preferimos ficar de olho nos tachos e registamos a organização nórdica, com os ingredientes guardados em pequenas caixas de plástico, arrumadas a preceito em armários. O chef tem um pano verde sempre à mão e puxa dele assim que algum ingrediente cai fora do prato. Enquanto prepara a refeição, vai provando o que sobra das ervas que levará para a mesa.
A terrina de lebre, bolbo de aipo e nozes traz folha de mostarda e um vinagrete à base de beterraba. Há outros verdes no prato, a rodear aquela espécie de patê, que comemos sem questionar – a mistura de sabores enche as medidas de tal forma que nem precisamos de mais pormenores. E como deixei de ver a chuva, penso que o sol voltou a brilhar nas minhas costas, tal o conforto desta entrada.
Para já, durante a semana, o restaurante só abre ao jantar. Aos sábados e domingos servem-se as duas refeições. E por estes dias já estará à disposição o menu degustação (por €75). O chef não revela nada acerca das oito especialidades que servirá a quem se depositar nas suas mãos. Percebe-se porquê, quando diz: “Usar a horta e o mar é o nosso marco. Sou espontâneo e tenho de me adequar ao que houver disponível nesse dia.”
A maior parte do peixe que serve no restaurante vem de Peniche, mas o polvo, por exemplo, é apanhado pelo pai do pasteleiro. Leonardo ainda não está 100% satisfeito com os fornecedores. Na Dinamarca, onde viveu durante anos e chegou a subchefe do Noma (considerado o melhor restaurante do mundo) não sentia dificuldade em trabalhar com pequenos produtores, a distribuição era menos burocrática. “Antes de voltar para Portugal, li imensos livros sobre produtos nacionais e descobri uma variedade incrível. Mas depois só se encontram sempre os mesmos.”
Por falar em produtos portugueses, aposto que o chef não tem nem uma vírgula a acrescentar às ostras que nos serviu. Vêm de Setúbal, da produção da Neptun Pearl, e são carnudas q.b. com o mais correto toque de salinidade. É por isso difícil saber o que juntar a este pedaço de mar, sem desvirtuar o seu sabor. Ele descobriu: pedacinhos de pepino, óleo de algas da nossa costa e lascas de rabanete preto da horta.
Custa a crer que a culinária não lhe tenha corrido nas veias desde o berço, mas ele jura que não sentiu qualquer chamamento ou inspiração. No 11.º ano, foi para um curso profissional de cozinha apenas porque desistiu da ideia de seguir desporto. “Quem cresce numa quinta com galinhas, patos, ovelhas e cabritos, como foi o meu caso, tem sempre uma ligação forte à comida.” Aos 18 anos, depois de acabar o curso, ficou a trabalhar num restaurante perto de casa. Passados dois meses, foi para o olho da rua devido ao seu temperamento efervescente. A seguir, sem “saber bem como”, mudou-se para Aveiro, como único chef, e chegou a pensar “que era o maior”. Quando o restaurante faliu, decidiu emigrar. Acabou por aterrar numa terrinha a uma hora e meia de Dublin, na cozinha de um italiano. Pouco tempo depois, foi parar à capital irlandesa e, durante seis meses, trabalhou das sete às duas da manhã. “Não estava preparado para aquele nível. Chorei todas as noites.” Saiu de lá como subchefe para tentar a sorte em Copenhaga. Bateu à porta do Noma, onde começou por estagiar durante três meses. “Foi o período de que mais gostei. Levantava-me a sorrir e a correr para trabalhar.” Ainda andou por Espanha e pela Suécia, antes de regressar ao Noma, com 500 euros no bolso e o chão do quarto de um amigo para dormir. Ficou cinco anos.
E é nesta altura, com tudo de trás para a frente, que chegamos ao couvert e ao amuse-bouche. Primeiro vem o pão, morno, fofo, sem fermento, obra da mulher do chef, pronto a ser molhado no azeite ou numa pasta de couve portuguesa arrumada em cima de um seixo. Depois, um prato com nabinhos da sua horta para passar numa emulsão de manteiga de avelã. “Come-se tudo com as mãos, rama incluída.” Assim fizemos, primeiro a medo, depois com toda a convicção.
Leonardo não sabe bem o que o trouxe de volta a Portugal, ao fim de dez anos. As saudades, claro. Mas o hectare e meio de horta que tem agora à sua disposição foi o melhor chamariz para abordar o que a natureza dá e pensar como pô-la no prato. Sem receitas. Chegados ao fim, regressamos, na verdade, ao princípio de tudo.