No dia em que celebrou os 81 anos, Filipa Vacondeus surgiu no pequeno ecrã, subindo para uma autocaravana, pela mão de Filipa Gomes, 50 anos mais nova. Lá dentro, uma cozinha bem equipada, pronta uma viagem gastronómica pela nossa culinária tradicional. E uma viagem, também, por diversos locais do País.
Mas a montanha teve de ir a Maomé:
“Comecei a ficar sem nada para fazer e como sou espectadora assídua do canal, decidi pedir uma entrevista e propor um programa divertido e diferente. Na minha idade, quando uma pessoa para é para a morte a vir buscar. Mesmo com esforço, vale a pena não ficar inativa.”
A resposta chegou pouco depois, com a novata Filipa Gomes no “embrulho”. Não se conheciam, mas tinham admiração mútua: enquanto a mais nova cresceu a ver Vacondeus na televisão, a mais velha ocupa o tempo que agora lhe sobra a apreciar a irreverência da mais nova, no programa de culinária diário.
“Acho-lhe graça, parece uma personagem da Disney. Lembra-me a Minnie.”
Deve ser por causa das saias rodadas, dos laços na cabeça e do bâton vermelho. Filipa Gomes foi a vencedora do casting promovido pelo 24Kitchen, em 2013, tornando-se, assim, a nova apresentadora do Prato do Dia (após deixar para trás um emprego na área da publicidade), com um boneco inspirado no look rockabilly dos anos 1950. Esta Filipa (de ora em diante aqui tratada por Pips, como carinhosamente lhe chamam nas gravações) também teve uma incursão tardia na cozinha apenas aos 24 anos descobriu o prazer que os tachos lhe davam. Ao contrário de Filipa Vacondeus, tem predileção por doces. É na diferença que acabam por se complementar.
“Queria que fosse uma brincadeira a quatro mãos. E resultou. Não gosto nada de seguir receitas e a Filipa funciona à colher de café, sabe exatamente o que vai pôr. Não me apetecia ir para ali armar-me em senhora doutora a explicar-lhe tudo. Foi uma troca constante de saberes entre nós as duas.”
As gravações é que não correram tão bem. O inverno tempestuoso atrapalhou muito, já que todo o programa foi feito em exteriores. Houve vários adiamentos e uma pneumonia pelo meio, que obrigou Filipa Vacondeus a um internamento e a alguns dias de reclusão. Tirando esse percalço recente, encontra-se em boa forma (o cancro da bexiga já lá vai). A cabeça está perfeita, embora diga que sente o peso da idade nos ombros. E até já encerrou alguns capítulos da sua vida:
“Decidi parar de conduzir, mergulhar no mar e fazer noitadas. Mas estou preparada para outro programa televisão, apesar de já não fazer as coisas com a leveza de há dez anos.”
Mas ainda continua a cuidar de uma cadela Yorkshire (chegou a ter onze Grand Danois, quando vivia numa moradia), que salta às pernas com energia e pede atenção a cada minuto, e a cozinhar todos os dias, com imaginação. Para ela e para o marido de há quatro décadas. No dia em que fomos a sua casa entrevistá-la, tinha inventado uma refeição rápida, bem ao estilo que lhe deu fama nos idos 1980 aproveitando restos, sempre.
“Num quarto de hora, peguei num bocado de fiambre que tinha usado ontem ao jantar, juntei um bocadinho de pão ralado, molho bechamel, cogumelos de lata, triturei tudo e ficou um recheio seco. Estiquei um rolo de massa folhada, enrolei, pincelei e levei ao forno. Servi com uns ovos mexidos e uma salada. São anos e anos de experiência…”
O marido é a cobaia, mas não pode ser considerado um bom garfo. Filipa, sim. Adora cozido à portuguesa, mas também não dispensa qualquer comida de tacho, de onde se desprendem cheiros e sabores. Aprendeu isso, a reconhecê-los e a dominá-los, com uma cozinheira velha da sua avó. Deem-lhe uma grande panela, azeite, cebola, alho e ervinhas (coentros, hortelã, salsa, alecrim) e ela improvisará, de imediato, algo de saboroso.
“Fujo das receitas que existem. Quando tive o meu restaurante de luxo em Alfama (Cota D’Armas, que fechou em 1975) não tinha um único prato no menu que existisse noutros restaurantes.”
O restaurante encerrou, mas a sua casa passou a estar aberta a toda a gente, para jantares às sextas-feiras. E convidavam-se, da esquerda à direita. Ligavam para o jornal País, que o marido dirigiu durante muitos anos, para saber quando podiam ir lá comer. Até Ramalho Eanes, quando era Presidente da República, pediu para experimentar as comidas de Filipa. Mas não foi dessa vez que a cozinheira juntou pato para disfarçar a pequenez de um faisão que tinha no congelador, sem o revelar, está claro. Os franceses gourmets que o marido convidara, fartaram-se de elogiar aquele prato. Safavase assim, com imaginação e pouco dinheiro. Quando era miúda, a história escrevia-se com outros contornos:
“Os meus pais tinham uma casa na Costa da Caparica, no tempo em que aquilo nem era asfaltado. Passávamos lá seis meses por ano, com um grupo enorme, com quem cantávamos e tocávamos na garagem. Tínhamos uma piscina, mas tudo sem ostentação. Até vínhamos a Lisboa de cavalo. Depois, o meu pai teve um crash financeiro e eu comecei logo a trabalhar. Sem choros nem tragédias, mudámos o estilo de vida.”
Foi hospedeira, durante um ano. Depois, teve uma agência de viagens e foi assessora da Junta de Turismo da Costa do Sol e secretária de administração. Casou tarde para a época, aos 35 anos. Nunca teve filhos. Só entrou no mundo da culinária quando o marido a desafiou a escrever receitas, no seu jornal. Depois é o que se sabe estreou-se na RTP, em 1981, desafiada por Maria Elisa, durante um dos tais jantares de sexta-feira. E, de uma forma ou de outra, nunca mais saiu do ar. Nem das prateleiras das livrarias, com a dúzia de livros que publicou, ao longo da sua carreira como cozinheira.
“Se a minha avó ou o meu pai viessem ao mundo e vissem o que faço há 30 anos, voltavam a morrer rapidamente.”
É este o tipo de humor que lhe sai facilmente. Mas, neste caso, percebe-se bem a imagem: na altura em que começou a fazer dostachos o seu modo de vida, havia apenas dois ou três que podiam realmente orgulhar-se do seu legado. Estar de avental, à volta da comida, não era glamouroso. Filipa Vacondeus, que tem na decana Maria de Lourdes Modesto uma grande amiga e inspiração, nutre alguma desconfiança em relação à cozinha de autor contemporânea. Mas sabe apreciar e relacionar-se com os bons chefes da atualidade, como José Avillez, Vítor Sobral, Justa Nobre ou Henrique Sá Pessoa. E adora o estilo do inglês Jamie Oliver, que segue na televisão. Enquanto esteve nas gravações deste seu novo programa, não pôde seguir na TV os formatos de culinária de que tanto gosta e a entretêm. Mas adorou a experiência.
Até porque voltou a sentir o carinho do seu público e o feed back imediato de quem provava a entrada, o prato e a sobremesa que confecionava juntamente com Pips (elas faziam as doses exatas para quatro, da cozinha de back up saía mais quantidade para a degustação). Filipa Vacondeus foi tratada com todos os cuidados pela produção, quase como uma diva: o seu cabelo manteve-se sempre impecável, apesar das intempéries como quando Herman José fez um boneco inspirado nela, com imensa paprika, coisa que, a propósito, nunca entrou na sua cozinha. Sempre que havia uma pausa mais demorada, iam buscar-lhe uma cadeira, abriam-lhe um enorme guarda-chuva quando começavam a cair pingos, ou embrulhavam-na numa manta, se o vento teimava em fustigá-la. Ela e Pips sabiam as falas de cor, mas depois aquilo saía-lhes de improviso. Às duas, numa sintonia inusitada, porque se assumiram, desde logo, como radicalmente diferentes: a senhora tradicional e a menina que sai fora dos cânones. E ninguém lhes ficou indiferente, nem os estrangeiros que não percebiam aquela algazarra, junto à turística Torre de Belém. Quando as gravações deram tréguas, as duas cozinheiras tiraram fotos com os fãs e trocaram palavras simpáticas com quem as reconheceu. Aos 80 anos, Filipa Vacondeus ainda sabe como se faz… é como andar de bicicleta.