Quem olhar para este cão e não souber da polémica em que esteve envolvido, dificilmente o achará perigoso. Depois de ser fotografado nos estúdios da VISÃO, onde chegou abanando a cauda a desconhecidos, passou todo o tempo a dormir e a ressonar, deitado ao colo da treinadora e da sua detentora legal.
No final de setembro, Zico foi entregue a Rita Silva, 33 anos, presidente da associação Animal, que vive com ele no santuário de quatro hectares pertencente ao coletivo e onde residem, também, outros cães. Todos os animais ocupam parques individuais, com espaço para correr e brincar. Não há celas de cimento, não estão fechados e comem apenas ração vegana (sem nenhum produto de origem animal). O bicho passou por um processo de recuperação e foi rebatizado hoje, responde pelo nome Mandela. Mas já lá vamos. Para melhor compreender esta história, teremos de viajar primeiro até ao Alentejo.
MÁ SORTE
Há uma ferradura presa no aro da porta de entrada, no terceiro andar deste prédio, no “Bairro do Texas“, como é conhecida esta zona dos subúrbios de Beja. Há outra por cima do acesso à cozinha. Mas nem estes amuletos têm afastado a tragédia da casa de Jacinto Pinto, 55 anos, avô de Dinis Janeiro, um bebé de 18 meses que morreu em terríveis circunstâncias.
Eram 18 e 30 de domingo, 6 de janeiro de 2013. Tinha escurecido. “O miúdo veio para a cozinha e o cão saltou, o miúdo caiu-lhe em cima e ele agarrou-o”, contou, na altura. A mãe, Vanessa das Neves, pegou em Dinis e levou-o, em braços, até ao Hospital José Joaquim Fernandes, a 600 metros de casa. Ali, deu entrada com ferimentos muitos graves, já em coma, devido a “lesão por mordedura de cão”, como consta do relatório hospitalar. A urgência era tal que, de imediato, o estabelecimento de saúde requisitou um helicóptero e transferiu-o para a Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Ainda foi operado, mas não resistiu. O óbito foi declarado às 23 e 20, no dia 7 de janeiro. No relatório da autópsia, pode ler-se que a causa da morte, classificada como “violenta”, terão sido “lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas”. Descreve-se, ali, que “estas denotam terem sido produzidas por ação de natureza perfurocontudente, ou atuando como tal, como o que pode ter sido a mordedura de um cão”. Não é uma afirmação, é uma hipótese. Caberá ao tribunal judicial de Beja apurar o que realmente se passou naquele dia. Mas o processo criminal ainda está longe da conclusão.
TER CORAÇÃO
A ordem natural seria que Jacinto Pinto e a esposa, Maria Antónia, juntos há 40 anos, nunca tivessem vivido esta tragédia. Estes avós viram morrer um neto e, anos antes, já tinham perdido um filho. Como pode uma pessoa suportar uma dor deste tipo não se sabe, mas Jacinto sabe de cor a manhas do sofrimento. Pelo menos o físico. O pai dele foi forcado, ele forcado foi. Nasceu e cresceu no meio de pegas e lides, da brutalidade de enfrentar bestas com centenas de quilos. Fez parte dos grupos de Beja, de Évora, dos Lusitanos. Foi a França, a Espanha, à Venezuela, ao México. Durante 23 anos, partiu-se todo. Tantas vezes, que tem a pele cravada de cicatrizes e os ossos moídos das cornadas. Não o mataram, mas moeram-no. O corpo, se dava para os touros, não aguentava a profissão de bate-chapas, que Jacinto não exerce há 20 anos, por incapacidade. Vive de uma pensão de invalidez. Passa os dias em casa. Lava, passa a ferro, cozinha, esfrega, limpa.
Maria Antónia, a mulher, também na casa dos 50 anos, faz limpezas. Não gosta das corridas. “Já penei muito com os touros”, desabafa. Mas é impossível escapar-lhes, nesta casa. A pequena sala de estar parece um museu. A jaqueta de forcado de Jacinto, bege, debruada com flores, está pendurada na parede. Por cima, as meias brancas, rendilhadas. Entalado, um pequeno capote, vermelho, com que ensina ao neto mais velho, João, 7 anos, irmão de Dinis, os primeiros movimentos de um peão de brega. Os dois filhos mais velhos, João Pedro Janeiro, 29 anos, pai de Dinis, e Pedro Janeiro, 37, proprietário de Zico, também pegaram touros. Mas “não tiveram coração para aguentar mais e abandonaram a lide”, desabafa Jacinto. Ele também vem perdendo a afición. “Corridas já nem as vejo. Apaguei-me um bocadinho, por causa do meu neto.”
OLHO POR OLHO…
O corpo de Dinis Santiago Neves Janeiro foi entregue à família na quarta-feira, 9, ao anoitecer, porque a autópsia se realizou nessa tarde. No dia seguinte, de manhã, desceu à terra, no cemitério de Algeruz, em Setúbal. Foi nesta cidade que Dinis nasceu e é aí que, hoje, vivem os pais. Não suportaram ficar na casa onde aconteceu o infortúnio.
Zico, um cão com caraterísticas físicas de pit bull, considerado por lei como raça potencialmente perigosa (existem quase 18 mil animais registados com esta classificação), estava na família há nove anos. Nunca tinha sido agressivo, disse o avô, na altura: “Tenho dois netos, nunca fez mal a nenhum. Abriam-lhe a boca, faziam-lhe tudo.” O animal de estimação tinha as orelhas cortadas (prática proibida mas comum em cães que participam em lutas), não estava registado na junta de freguesia nem possuía seguro de responsabilidade civil, não estava esterilizado e, das obrigações legais, apenas cumpria uma: usava chip eletrónico. Jacinto Pinto, sabia, contudo, que o cão de Pedro Janeiro, o filho mais velho – que hoje mora num outro prédio -, no mesmo bairro, não podia viver dividido entre a varanda e a cozinha. “Já pedi para o abaterem. Não tenho condições para o ter em casa”, revelou aos jornalistas, no dia em que a criança morreu.
A família não apresentou queixa. A PSP, atenta ao fenómeno – nos últimos cinco anos, foram comunicados às autoridades 170 ataques a pessoas -, soube do caso pela comunicação social e participou o sucedido ao Ministério Público, que abriu um inquérito criminal e mandou recolher o animal. Linda Rosa Ferreira, veterinária municipal de Beja, acompanhou a apreensão e anunciou que o cão seria abatido: “Cães perigosos são eutanasiados.” Foi então que estalou o verniz.
BONS E MAUS
Ao ver as imagens de um cão acocorado e medroso, a ser levado para dentro de uma carrinha, sem que se soubesse o que tinha, de facto, acontecido, meio país comoveu-se. Foi lançada na internet a petição Contra o abate do Pitbull Zico e de todos os outros Zicos!, que somou mais de 15 mil assinaturas, na primeira semana. O documento chegou a ser entregue na Assembleia da República. Hoje, conta com quase 80 mil subscritores.
Seguiram-se outras petições, a favor e contra o abate do animal. Escreveram-se dezenas de artigos de opinião e, nas redes sociais, travou-se um combate raivoso e maniqueísta: de um lado, os que defendiam a criança; do outro, os que queriam proteger o cão. Bons e maus. Defensores da vida humana e “maluquinhos” pelos animais. Figuras públicas envolveram-se e deram a cara: o actor Ruy de Carvalho pela vida do bicho; o comentador político Daniel Oliveira, pela morte.
Pedro Galvão, 40 anos, autor livro Os Animais Têm Direitos? Perspectivas e Argumentos (Ed. Dinalivro, 2011, 240 pp., €15,37), professor de Filosofia na Universidade de Lisboa, lembra que “um cão não é um agente moral, nunca faz o menor sentido julgar que ele merece ser castigado pelos males que tenha causado“. Ainda assim, entende que “toda a preocupação com o destino do Zico foi absolutamente desproporcionada. Revelou até bastante insensibilidade em relação à morte trágica da criança”.
Mas, ao contrário do que dissera a veterinária municipal, o cão não tinha de ser “eutanasiado ” em oito dias. O n.º 1, do artigo 15.°, do Decreto-Lei n.º 315/2009, refere que o animal agressor só é eutanasiado “uma vez ponderadas as circunstâncias concretas, designadamente o carácter agressivo do animal”. E o n.º 1, da Portaria 81/2002, determina que “os cães (…) agressores de pessoas ou outros animais (…), são considerados suspeitos de raiva e deverão ser objeto de observação médico-veterinária obrigatória e imediata e permanecer em sequestro durante, pelo menos, 15 dias”.
Conhecendo a Lei, a associação Animal meteu-se ao barulho. Quatro dias depois da morte de Dinis, entregou uma providência cautelar no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Beja, requerendo o impedimento do abate do cão e, mais tarde, a sua entrega ao coletivo. Começaria aqui uma longa batalha mediática e jurídica, que culminaria com a entrega de Zico à Animal.
RENASCER COMO ‘MANDELA’
Nos bastidores do processo administrativo tem estado Rita Henriques, 33 anos, advogada. No seu gabinete, em Montemor-o-Novo, conta com a companhia de Pantufas, um pequeno rafeiro, anafado, de cor castanha, que todos os dias vai com ela para o trabalho. Há um cartão, em cima do sofá onde dorme o canito, com os adjetivos “adoptado e mimado”. Ofereceu-se para defender o Zico, pro bono: “Não sabia qual seria o desfecho, mas sabia que valia a pena lutar.” A ação principal ainda corre no TAF de Beja e não se espera que a sentença seja conhecida antes de 2015. Só nessa data se decidirá se a associação Animal fica definitivamente com a guarda do cão… ou se é emitida uma ordem para o pit bull ser abatido.
Zico foi entregue a Rita Silva, a 5 de agosto passado. “Vi um cão debilitado, que tinha perdido bastante massa corporal. Ficou lá oito meses, sem possibilidade de exercício. A cela era lavada com ele lá dentro e ainda hoje tem as patas traseiras com muita abrasão. Quando chegámos estava ensopado em urina. De Beja a Lisboa íamos morrendo, com o cheiro”, conta.
No Hospital Veterinário do Restelo, tomou banho, fez análises, retirou uns nódulos benignos. E mudou de nome. Passaria a chamar-se Mandela, ou Mandy, no diminutivo. Rita Silva, justifica a polémica escolha: “Tenho um Karl Marx, um Martin Luther King… Todos os animais que vêm para os nossos cuidados são renomeados. Damos nomes de amigos, de humanos importantes ou de outros animais falecidos, como homenagem. É regra. Os lutadores pela liberdade têm um papel fundamental para quem trabalha pelos direitos dos animais. Acreditamos que homenageámos o homem Nelson Mandela ao dar o seu nome a este cão.”
PELA POSITIVA
Saído do hospital, Mandela foi entregue a Cláudia Estanislau, 36 anos, treinadora de cães e proprietária da escola It´s All About Dog’s. A especialista em comportamento animal, que trabalhou no Canadá e em Inglaterra, foi escolhida por não utilizar métodos aversivos no processo de educação dos bichos. “Não uso a força, uso a inteligência. Os métodos tradicionais – já os pratiquei, falo com conhecimento – provocam comportamentos agressivos nos cães.” Prefere o método do reforço positivo.
Mandela esteve à solta dentro de casa, na lavandaria, que continuou em uso. Era lá que dormia e comia. Não estava preso, circulava entre o jardim e a sala de estar. Nunca lhe pôs um açaime. “Sou muito boa a ler os cães e não vi nada na linguagem do Mandy que me indicasse que ele podia ser um perigo para mim, ou para outra pessoa.” Durante dois meses, treinou-o. “No início, só caminhava e olhava, desconfiado. Depois, começou a abrir-se: choramingava, ladrava quando íamos embora, corria quando o soltávamos. Só lhe toquei 15 dias após estar com ele. Comecei a provocar determinados comportamentos. Experimentei os brinquedos, percebi que ele perdia o controlo e desisti. Fui para a comida, para lhe ensinar que tem valor. Dei-lha sempre à mão, todos os dias”, explica Cláudia, que recupera e treina todo o tipo de animais, até suricatas. Além disso, dá aulas nas quais ensina os seus métodos. “O maior problema é a falta gritante de informação por parte das pessoas. Trabalho mais vezes o comportamento dos donos que o dos cães.”
O que realmente se passou naquela noite de 6 de janeiro de 2013, só será esclarecido quando o inquérito criminal, que ainda decorre, estiver concluído. Caberá ao Ministério Público arquivar o processo ou deduzir acusação e avançar para julgamento. O dono do cão, Pedro Janeiro, tio de Dinis, arrisca-se a ser incriminado por homicídio por negligência, com uma moldura penal até cinco anos de prisão. Poderão as ferraduras penduradas em casa de Jacinto Pinto e Maria Antónia livrar esta família de mais uma desgraça?
SAIBA MAIS:
- CRONOLOGIA: Durante oito meses, a decisão de abater ou não o cão Zico esteve dependente da sentença do Tribunal. Revelamos os momentos mais importantes desta disputa judicial e explicamos a confusa linguagem jurídica
- REPORTAGEM: O bairro Beja I, onde tudo aconteceu, é conhecido como “Bairro do Texas”. Habitação social, uma população a braços com o desemprego, problemas de tráfico de droga e, sobretudo, má fama, são os cartões-de-visita deste subúrbio da cidade alentejana
- ANÁLISE: Pedro Galvão é o autor do livro Os Animais Têm Direitos? Perspectivas e Argumentos, e professor de filosofia. Comenta a polémica em torno do abate do cão Zico e dos valores inerentes a essa discussão