“Ver a morte em cima duma pessoa e salvá-la dá uma consolação que ninguém imagina. O socorro deve acontecer nos primeiros cinco a seis minutos, senão fica tudo queimado. Atuámos onde poderia haver mais sobreviventes e só depois fomos à outra metade do avião, que calculávamos ter maior número de mortos do que de vivos.
Mas há sempre milagres, nestes dias… Caía uma chuva miudinha e o vento estava muito forte quando o intercontinental DC-10 se fez aos 2 490 metros de pista algarvia, com 340 pessoas a bordo. Quase todos holandeses, a caminho de umas férias de Natal no Algarve. Ao aterrar na pista 11 do Aeroporto Internacional de Faro, bateu com a asa no chão, partiu-se ao meio e tombou.
Se a torre de controlo informa que há um acidente, perguntamos o tipo de avião e o número de passageiros. Não deu tempo para isso. O socorro avançou mesmo antes do sinal, porque vimos a asa bater. Os homens foram para os carros predeterminados, eu peguei na viatura de socorro e salvamento e segui atrás deles.
Normalmente, entrava ao serviço às 9 da manhã, mas, naquele dia, estava lá às 8, porque dispensara um bombeiro… sem poder. Na tarde anterior, veio dizer-me que a mulher ia ser operada e não dava para acompanhá-la por estar de serviço. Fiquei a pensar naquilo e, ao fim do dia, disse-lhe para ir assistir a mulher.
É assim que ganhamos a dedicação das pessoas.
Mas quis garantir o número de homens obrigatório e vim para o aeroporto mais cedo.
Chegar àquela hora acabou por ser importante.
O pessoal sentiu-me ali e foi para os carros verificar o material. Pagam-nos para treinar e era isso que fazíamos todos os dias: preparar-nos para a catástrofe. Só não imaginávamos que ela nos esperava, naquele 21 de dezembro. Fez agora vinte anos.
O primeiro contacto com a realidade foi um horror.
Havia choros, gritos, pessoas a arder. O meu corpo paralisou, como para me não deixar fugir. Mas, depois, vem-nos uma força! Perde-se o medo de morrer. Alguma coisa nos empurra para vencer. Para salvar. Atirávamos espumífero. Corríamos para afastar as pessoas das chamas. Emocionou-me ver os meus homens a porem-se debaixo daquele pó químico para salvar seres humanos.
Quando levanto a cabeça, vejo um bombeiro espavorido, a correr, com um bebé ao colo. Estendeu os braços e disse, com os olhos muito abertos: “Olhe o que encontrei!” Tinha pouco mais de um ano e vinha todo roxinho dos fumos. Mas a respirar. Como o avião se partiu ao meio, a família ficou separada os pais numa parte do aparelho e o filho, cuspido com o embate, na outra. Já davam o menino como morto, porque não o encontravam.
Descobrir aquele bebé no meio dos cadáveres foi como uma prenda para toda a equipa. Isso explica porque mo puseram nos braços, apesar de não ter sido eu a encontrá-lo. Gostava de conhecer essa criança, que já há de ser um homem.
Nesse dia houve risco de vida para nós. Ouvi um estrondo e senti um objeto vir contra mim. Era um pedaço de metal que voara com a explosão. Fez-me um buraco no capacete. Estava um bombeiro ao meu lado, olhámos um para o outro e demos um abraço, sem dizer nada. Custa estar a lembrar isto, agora… Aquilo mata uma pessoa. Devia ter sido internado. Estava sempre a ver corpos, mesmo de olhos fechados. Cheguei a casa a cheirar a fumo e a mortos. Tive pesadelos, falava e gemia até a mulher me sacudir.
A memória que me persegue é a do indivíduo que ficou debaixo da asa. Olhou para mim e levantou a cabeça, como que a chamar-me. Não conseguia fazer nada sozinho, mas, à primeira oportunidade fui lá com dois ou três homens. Já estava morto. Lembro-me da cara, ainda lhe vejo os olhos. Pediu-me ajuda e eu não lha dei… O que mais custa é não podermos ajudar uma pessoa, ainda por cima quando nos pede.
Fiz o melhor que podia, mas o maior peso é o de não ter conseguido salvar todos.
Só depois de retirados os sobreviventes pude tratar dos mortos. Foi o pior. Uma mulher tinha uma criança ao colo, a cara voltada para o peito dela, agarradinha à mãe. Pensei: aqui não pode haver engano na identificação. E pu-las no mesmo saco. Achei que mãe e filho mereciam continuar juntos. Depois, apareceu um engravatadinho a dizer que não podia fazer aquilo.
Várias pessoas foram levar-me flores, por causa do meu trabalho de socorro. Eu mandava-as para trás.
Sentia-me mal a recebê-las. Fiz a minha parte.
Um ano depois, prepararam um beberete para me agradecer e a família do menino salvo esteve cá em casa. Tinha uma foto minha no quarto e chamavame avô. O pai quis saber porque o filho não fora logo retirado. Olhei-o nos olhos e disse-lhe: “Nem eu nem o meu pessoal estavalá por causa do seu filho. Estávamos por todos os passageiros e todos os filhos. Para minha infelicidade, não consegui salvar mais.”