“Avô, vamos ao campo!” Francisco Simões, 9 anos, está irrequieto. Aproveita os últimos dias das férias escolares para se envolver na azáfama da vindima. O avô, na verdade o bisavô, Horácio Santos Simões, obedece ao miúdo e entra no velho todo o terreno UMM. Tem 93 anos e continua muito longe de se encostar ao borralho. Na Casa Agrícola Horácio Simões, situada na Quinta do Anjo, Palmela, convivem quatro gerações. Fundada pelo trisavô de Francisco, em 1910, é famosa pelo seu moscatel roxo, distinguido em vários concursos internacionais como o Muscats du Monde (França) ou o Decanter World Wine (Inglaterra).
Há muito que Francisco sabe o que vai ser “quando for grande”. “Eu e o Duarte [o primo] vamos ficar com a adega. Vamos fazer vinho e, se tivermos dinheiro, compramos mais rótulos…” O pai, Pedro Simões, atual gestor da casa, ri-se. De facto, os vinhos portugueses parecem ter um futuro radioso à sua frente. Para quem exporta, note-se.
Dentro do País, o mercado contrai-se, os portugueses consomem menos e, no primeiro semestre deste ano, houve uma quebra de 5,3% do volume de vendas. “Isto afeta bastante os pequenos produtores que dependem muito do mercado nacional. Além disso, nota-se uma deslocalização do consumo para as gamas mais baixas”, refere Frederico Falcão, presidente do Instituto do Vinho e da Vinha (IVV). Ou seja, vende-se menos e a preços mais baixos.
No entanto, quem pôs os olhos além-fronteiras, pode regalar-se com os números: as exportações cresceram 20,8% em volume, nos primeiros cinco meses de 2012, e 11,4% em valor. É certo que o preço médio do litro caiu 7,8%, sofrendo com a diminuição do preço do vinho do Porto, que representa quase 40% do valor total exportado. Em contrapartida, os vinhos a granel – sem denominação de origem, bem mais baratos que os engarrafados – vendidos para fora da União Europeia, cresceram 41 por cento.
Podemos, então, afirmar que o setor está a viver um bom momento? “Aqui há uns anos, quando o IVV começou a criar a marca Wines of Portugal, um estudo mostrava que os vinhos portugueses não tinham qualquer imagem. Os consumidores dos Estados Unidos – e até do Reino Unido – não sabiam que o nosso país era produtor de vinho. Hoje, tudo é diferente e Portugal tem uma imagem de qualidade. Na exportação, o nosso preço médio por litro é superior ao do espanhol”, responde Jorge Monteiro, presidente da ViniPortugal, a maior associação de profissionais do setor.
Alentejo: o aroma de uma ‘poliphonia’
Lá fora, o vinho português está em alta. No top 100 da prestigiada revista Wine Spectator, Portugal encontra-se representado por quatro marcas: Quinta do Vallado (touriga nacional Douro 2008) aparece logo na sétima posição; Quinta de Cabriz (Dão 2008) está em 42.°; e Quinta do Crasto (Douro reserva 2008) aparece em 62.°, dois lugares acima da Quinta do Vale Meão, outro Douro de 2008. Além disso, medalhas de ouro e de prata nos grandes certames não faltam e, este ano, um dos mais considerados concursos internacionais, o Concurso Mundial de Bruxelas, disse que o melhor vinho tinto de 2012 é luso – trata-se do Poliphonia Signature 2008, produzido em Reguengos pelo empresário Henrique Granadeiro.
Presidente do conselho de administração da Portugal Telecom, Granadeiro ainda é visto, no meio dos vinhos, como um “paraquedista”, embora ande nisto há 30 anos, desde que se tornou administrador da Fundação Eugénio de Almeida. Não lhe desagrada, no entanto, a imagem de outsider. À frente de 110 hectares de vinha, responsável pelo emprego de oito pessoas a tempo inteiro, mais 40 sem contrato permanente, o empresário exibe a sua moderna adega, com visível orgulho. “A tecnologia está aqui para potenciar as características das castas da região, para mimar a uva ao máximo”, garante o enólogo Pedro Baptista.
“Negócio é negócio”, vai dizendo Henrique Granadeiro, 68 anos, natural de Borba. Por ano, produz quase um milhão de garrafas, de gamas média e alta. A alta é vindimada à mão; a média é colhida com máquina, durante a noite. Se tudo correr bem este ano, 30% da produção irá para o Brasil, Angola, Macau, Hong Kong, Polónia e Estados Unidos.
Os prémios são uma ajuda na estratégia de comercialização. As diversas proveniências e profissões dos júris, com critérios de avaliação distintos, levam os críticos de vinhos e grandes apreciadores a desvalorizarem os concursos, mesmo os mais prestigiados. No entanto… “Não valorizo a questão das medalhas, embora reconheça que podem ter importância para o negócio. Pesam na compra”, diz o crítico José António Salvador.
A distinção ganha, este ano, pelo Poliphonia de Henrique Granadeiro é uma espécie de jackpot. “Se, em 8 597 vinhos, o meu foi considerado o melhor, isso tem algum significado. Seria imodesto desvalorizá-lo, até porque o de Bruxelas é um dos grandes concursos do mundo”, contrapõe o empresário. Neste meio, um elogio do crítico norte-americano Robert Parker, ou das revistas Decanter e Wine Spectator abrem muitas portas, a nível internacional.
Douro: dois em um
Dos vinhos do Douro classificados pela Wine Spectator com mais de 90 pontos (a tabela chega aos 100), cerca de metade pertence aos Douro Boys. Há cerca de dez anos, cinco jovens com relações familiares e descendentes de famílias durienses, chegaram ao negócio e revolucionaram os métodos. Romperam com uma atividade cujos produtores coexistiam de costas voltadas entre si e começaram a trabalhar em conjunto, partilhando conhecimentos. Foram eles que fizeram os primeiros vinhos DOC (denominação de origem controlada). E, na história surge a palavra sucesso.
Autoapelidaram-se de Douro Boys. A saber: Dirk Nieport (da Nieport), Tomás Roquette (Quinta do Crasto), Cristiano Van Zeller (Quinta do Vale D. Maria), João Ferreira (Quinta do Vallado) e Francisco Olazabal (Quinta do Vale Meão). A verdade é que o crescimento dos vinhos DOC ajuda a rentabilizar a região. Da mesma vinha, faz-se o vinho do Porto e os DOC, que definitivamente conquistaram Portugal, mas também mercados externos como o Canadá, Angola e Brasil. Para a Nieport, cuja média de faturação, nos últimos quatro anos, anda na casa dos 7,5 milhões de euros, a Alemanha é a sua última vitória. “E mandei agora quatro contentores com 60 mil garrafas para Angola”, conta Dirk.
“Se não fossem os vinhos DOC, a região estava numa situação péssima, pois, dos 39 mil agricultores durienses, só pouco mais de 800 têm para cima de 8 hectares de vinha”, sublinha Cristiano Van Zeller, para quem o aparecimento dos vinhos DOC tem sido a revolução necessária e mostra a “capacidade de regeneração” dos produtores. “Das mesmas uvas podemos fazer dois dos melhores vinhos. Isto é único, em termos de região e é o que nos distingue, no mundo.”
Ele, que conseguiu a pontuação mais alta atribuída por Robert Parker a um português (96 pontos para o Quinta Vale Dona Maria 2009), considera os prémios importantes “para entrar nas elites mundiais” e sabe que há países novos a abrirem-se, como China, incluindo Macau. Depois de ter sido responsável pela Quinta do Noval (cuja família vendeu aos franceses da AXA) e de ter passado pela Quinta do Crasto, investiu, no ano passado, na sua própria quinta (hoje com 15 hectares próprios e mais 25 arrendados) e já ultrapassou um milhão de euros de volume de negócios.
Mas a Real Companhia Velha, por exemplo, sente um grande desafio. “Apesar de exportarmos mais, existe grande concorrência. E lá fora está tudo por fazer”, atira Pedro Silva Reis, o presidente. Detentor do Porca de Murça, número um em Portugal e na exportação dos DOC Douro (com 3 milhões de garrafas comercializadas), Silva Reis considera que “continua a haver um estigma que marca o vinho português” em algumas partes do mundo. “Os vinhos que custam entre 4 e 9 euros têm dificuldade de ganhar espaço e ainda há muito trabalho a fazer, mesmo a nível dos restaurantes”, reforça.
Bairrada: um vinho sem maquilhagem
“O setor está cada vez mais virado para a exportação, que representa já 30% do total da produção. Mas isso tem custos: é preciso dominar línguas e a concorrência é brutal. Muitos produtores não têm dimensão para seguir esse caminho”, observa Frederico Falcão. Jorge Monteiro calcula que a esmagadora maioria das nossas exportações esteja concentrada em 25 empresas.
Entre os pequenos produtores, Luís Pato, 64 anos, foi pioneiro na arte de vender vinho além-fronteiras. Em meados dos anos 80, lá ia ele a caminho de França, com umas garrafas na mala. Hoje, é um dos mais conceituados produtores do País, produz 400 mil garrafas por ano nos seus 60 hectares de vinha, na Bairrada. Nesta região, há muito que a uva não serve só para fazer o espumante que vai bem com o leitão.
Filipa Pato, 37 anos, a sua filha, seguiu o ofício do pai, mas não quis ficar à sua sombra. Aos poucos, vai comprando – ou alugando – vinhas. Formada em Engenharia Química, trabalhou na Austrália, em França e na Argentina já na área da enologia. Regressou à Bairrada, onde tem agora 14 hectares e produz 80 mil garrafas por ano. Prefere apostar nesta pequena produção de alta qualidade. “Não quero ser grande. Para mim, é mais importante ter vinhos conceituados do que uma grande produção”, diz.
Como ela, o seu vinho não tem maquilhagem. Não é preciso “maquilhar” a uva na adega, pois muito do trabalho é feito na vinha. “A videira tem de estar equilibrada – nem demasiado stresse nem demasiado vigor. Usamos fertilizantes naturais como estrume de vaca e preservamos as técnicas tradicionais. Trabalhamos quase só com vinhas velhas. Temos vinhas com 80 anos e é delas que extraímos o topo de gama”, explica. Esse vinho é todo artesanal, até na tradição da pisa da uva.
Mais de 70% da sua produção segue direta lá para fora – o Brasil é o seu melhor mercado, mas sem dúvida que ter os vinhos em restaurantes ingleses com estrelas Michelin é uma promoção que não está acessível a qualquer um. “A imagem dos vinhos portugueses tem melhorado. A moda é beber vinhos autênticos e Portugal dá cartas nesse aspeto. Vender vinhos com história é muito diferente do que vender vinhos do novo mundo”, conclui.
Filipa ganhou, em 2011, o chamado “Oscar do Vinho”. Ela foi considerada a Newcomer of the Year pela revista alemã Feinschmecker. Além disso, o seu tinto e o seu branco integram a lista dos 50 melhores vinhos portugueses, elaborada pela especialista inglesa Julia Harding.
Setúbal: uma casta de outros tempos
O moscatel roxo de Casa Horácio Simões também está na lista da inglesa. À frente da casa, estão agora os irmãos Pedro, 37 anos, e Luís, 31. O primeiro é o responsável da empresa e o segundo o enólogo. Com o desaparecimento das tabernas, a venda do vinho a granel começou a decair. Há cerca de 20 anos, a família optou pela denominação de origem. “O moscatel foi sempre a nossa grande imagem de marca”, diz Pedro. Luís conta a história: “Fomos à procura de uma casta antiga que estava praticamente extinta, o moscatel roxo. Encontrámos umas plantas e multiplicámo-las. Estudámos onde se dava a casta e hoje ela está em todas as regiões do País e até se fazem ensaios em Espanha e em França.”
Por ano, produzem-se ali 10 mil litros de moscatel roxo, 50 mil de moscatel de Setúbal e 100 mil de brancos e tintos. Têm a seu cargo 40 hectares de área de vinha e exportam cerca de 20% da produção. Para o tinto topo de gama, o Vale dos Alhos, a uva é pisada tal como os irmãos faziam quando eram crianças.
“Há mais de dez anos que vamos pelo mundo fora com a garrafinha de moscatel debaixo do braço”, continua Pedro. Outras vezes, é o mundo que vai à Quinta do Anjo. Encontrámos um grupo de turistas noruegueses, “consumidores profissionais de vinho”, como ironizam, na parte da adega reservada ao enoturismo. “Exquisite”, classificam o moscatel roxo.
Francisco regressa do campo com o bisavô. Corre para a adega, com uma grande cacho de uvas na mão. A vindima está quase a acabar.