É muito fácil cair na tentação de ridicularizar Neil Harbisson.
Franzino, sempre vestido de cores garridas, o primeiro cyborg, reconhecido como tal por um Governo, anda por todo o lado com uma câmara pendurada na cabeça. Leva ainda um corte de cabelo à tigela, que lhe esconde um chip, apoiado por cima da nuca. “Riem-se de mim, enquanto vou pela rua, mas não ligo”, conta-nos o artista de 30 anos, ao telefone, desde Barcelona, onde vive.
A sua melhor defesa quando o impedem de entrar nos cinemas, com receio de que vá captar ilegalmente o filme, ou em lojas, por temerem a espionagem, é o seu passaporte britânico é filho de mãe espanhola e pai irlandês. No documento, Neil aparece com o artefacto, que não larga nem para dormir. É através desta câmara, semelhante às que utilizamos no computador, que o artista plástico ouve as cores que os seus olhos não veem. Confundida inicialmente com o daltonismo, Neil sofre de acromatopsia, uma doença rara, de origem genética, que se traduz, entre outras coisas, na incapacidade de perceber a cor.
Até à idade adulta, o seu mundo era branco e preto. Mesmo assim, decidiu estudar artes. “Percebi que, qualquer que fosse a área de estudo, a cor estaria presente. Na Química, na Geografia [basta imaginar o que seria interpretar um mapa sem distinguir as cores dos traçados] ou até na Literatura, cheia de referências visuais”, exemplifica. “Optei pelas artes para tentar entender algo que não conhecia ou sequer compreendia. Como quem se dedica ao estudo de uma religião.”
O TERCEIRO OLHO
Em 2003, numa conferência sobre cibernética, conheceu o americano Adam Montandon e os dois magicaram o eyeborg um terceiro olho que capta as imagens. Um chip (começou por ser um computador, obrigando-o a andar com uma mochila às costas) transforma as cores em sons, que Neil absorve nos ossos da cabeça. A cada cor corresponde uma nota sonora, como se o arco-íris fosse uma escala musical. Munido desta capacidade, a que chama sentido extra, o artista anda pelo mundo em performances, com um calendário tão cheio como o de uma estrela de rock. Uma das suas obras consiste em transformar uma cara numa escala musical, ou, num processo inverso, uma melodia num quadro. A digressão pelo mundo trouxe-o a Portugal, à Fundação Champalimaud, em Lisboa, na última quinta-feira, 24, para uma conferência sob o tema Humanos 2.0, uma designação que abre a porta ao mundo da ligação homem/máquina.
Neil, que, tal como os restantes palestrantes, não cobrou cachê para estar presente, afirma que se sente em casa rodeado de cientistas. “A correspondência entre as cores e as notas é matemática [o amarelo soa a Sol, o verde ao Lá e por aí fora].” Newton “já tinha criado uma escala semelhante “, sublinha. “Interessa-me muito a forma como a ciência pode alargar os nossos sentidos, pela associação à tecnologia.” Na Fundação Cyborg, que fundou com o intuito de ajudar as pessoas a incorporarem equipamentos que lhes estendam os sentidos, só são aceites projetos com uma base científica. “Não vejo limites para este tipo de aplicações e estas novas gerações já estão preparadas para incorporar a tecnologia; vão usá-la de outra maneira.”
VISÃO 360 GRAUS
O seu próximo passo será introduzir o chip dentro do crânio, num processo designado osteointegração. Uma ambição que já tem alguns anos, mas que carece ainda do aval do conselho de ética de um hospital catalão.
Outras das suas ideias são alargar a perceção das cores, para incluir o ultravioleta e o infravermelho, ou a colocação de uma câmara na parte de trás da cabeça, que lhe permitiria ter uma visão a 360 graus.
“Aceitamos facilmente a inclusão de equipamentos tecnológicos por razões médicas, mas temos dificuldade em aceitála para a extensão das nossas capacidades”, observa, tranquilo, dando como exemplo os implantes cocleares, utilizados para corrigir a surdez. “Sei que gozam comigo.
Mas não me importo. Ganhei o sentido da cor e perdi o do ridículo”, ironiza. Sereno e pragmático, a aura de excentricidade de Neil vai-se desvanecendo ao longo da conversa. Sem que se tenha esforçado para isso, convence-nos de que é, afinal, um homem à frente do seu tempo.