20:06
Atenção à retranca!
A aventura começa no mesmo sítio de onde partiram outras tantas. Ao lado do Padrão dos Descobrimentos, na saída de Belém para o Tejo, em Lisboa. Neste caso, o objetivo da viagem é mais humilde.
Não partimos em busca de novos mundos, apenas de um mundo para nós desconhecido, a vela.
Faço parte da equipa de três elementos da VISÃO ( jornalista, repórter-fotográfica e repórter de imagem) que vai passar as próximas 24 horas a bordo de um veleiro de 12 metros, o Pardal V.
À chegada, perguntam-nos se fizemos a incontornável paragem na farmácia para evitar enjoos. Afirmativo. Aproveitam para avisar-nos de que a fome é a melhor amiga dos enjoos uma ótima justificação para qualquer excesso alimentar a bordo.
Antes de pormos os pés no convés, há tempo para outros alertas: é normal o barco adornar (inclinar), há que ter cuidado para não levar uma pancada com a retranca (ferro que segura a vela grande) e, se alguém cair à água, as palavras de ordem são “homem ao mar”.
As apresentações ficam para depois. Sente-se pressa na tripulação e ansiedade nos aprendizes. Está na hora de zarpar.
22:43
Do frenesim ao silêncio
“Temos de caçar a vela”, grita o skipper, que comanda as operações. Das sete pessoas a bordo, a equipa da VISÃO é a única para quem cada ordem soa a um verdadeiro código secreto. Os movimentos frénicos da tripulação parecem demasiado importantes para colocarmos qualquer dúvida. Resolvemos deixar a curiosidade para mais tarde, e apreciar a dança das velas e dos cabos. Quando o veleiro fica no rumo certo, fazem-se as apresentações, ao sabor do vento e dos primeiros petiscos. Queijo, chouriço e pão fresco deliciam os navegantes.
João Pardal Monteiro, 57 anos, skipper e dono do barco, é um arquiteto apaixonado pela vela, para quem fim de semana só tem um significado: velejar. Fernando Sá, 43 anos, sócio da empresa Treino de Mar, que se dedica a cursos e eventos náuticos, é um homem do mar desde os 17 anos. Mário Novo, 61 anos, está à espera da lotaria para comprar um barco, mas tem carta de patrão local. Assim como José Luís, 49 anos, que a recebeu no dia da viagem depois da insistência da família, acabou por vender a mota de alta cilindrada que tinha, e resolveu experimentar algo menos radical.
Somos integrados no “sistema de quartos “, cada par de tripulantes está de serviço duas horas, em turnos sucessivos.
Um fica ao leme, o outro controla o painel de instrumentos, que dá informações fundamentais como a velocidade, a força do vento ou a rota que está a ser seguida.
A navegar à bolina (próximo da direção do vento), percebemos que a pressa num veleiro é só para partir. Depois, chega a calma. O silêncio.
00:21
Ventania de susto
O vento é escrutinado ao minuto, cabe–lhe decidir a velocidade da viagem. Dirigimo-nos para o cabo Espichel, em Sesimbra. A meteorologia é consultada antes da partida, para planear a viagem, e as informações retiradas da net são guardadas religiosamente.
A noite está calma e amena. A Lua nova deixa-nos praticamente às escuras. Valem-nos as luzes da costa que chegam ao barco.
O embalo do veleiro leva os primeiros tripulantes ao porão. Há três quartos individuais e dois sofás apetecíveis na sala. É aí que se instalam a fotógrafa Rita Chantre e o repórter de imagem José Pinto.
O descanso fez com que perdessem a observação de uma estrela-cadente que rasga o céu. Meia hora depois acordam num sobressalto, culpa do vento a 20 nós que surge à uma da manhã, cerca de 37 km/h, uma velocidade considerável, que imprime emoção à viagem. Para trás ficam os rolos de espuma branca que enfeitam a água salgada, na gíria, carneiros. Quando o barco começa a adornar, provoca inquietações, mas não é caso para isso.
O patilhão, 3 mil quilos de chumbo no casco do barco, impede-o de virar. Calha em sorte à escriba estar ao leme do Pardal V. O silêncio espelha a concentração perante a tarefa. A passagem ao largo do cabo Espichel é quase cerimoniosa. Com naturalidade, a tripulação mais experiente vai dando indicações ao leme, “orça um bocadinho” (pôr a proa do barco na linha do vento), “agora arriba” (afastar a proa da linha do vento). A falta de prática exige ginástica mental para, sem perder tempo, interpretar as ordens.
O porto de Sesimbra vai ficando mais próximo. Às duas da manhã fundeia-se o barco (lança-se a âncora), mas já passa das três quando é servida a ceia, ao largo da doca. Abandonar o leme provoca um misto de sensações, pena e alívio. Pouco antes das quatro, a equipa da VISÃO rende-se ao cansaço.
05:22
Alvorada com estardalhaço
Com o barco completamente adornado a bombordo (lado esquerdo quando olhamos para a proa), e ainda sem ter a certeza de estar acordada, vejo o armário da cozinha abrir-se, e os pratos a voarem para o chão com estardalhaço. Os outros membros da equipa são obrigados a acordar também. Subimos ao convés e vemos a tripulação em atividade. Seguimos a 7 nós (12,9 km/h), uma velocidade lenta, que à bolina parece sempre mais. A força das correntes também influencia a velocidade do barco, é uma espécie de tapete rolante.
“Temos de caçar a vela”, grita, outra vez, o skipper. Aos poucos desvendamos o código: é preciso puxar a vela. Com tanta agitação, nem damos conta da luz do dia.
O cabo Espichel deixou de ser uma mancha escura, e passou a maciço de pedra.
Dirigimo-nos para Cascais. O vento amaina subitamente, e recorre-se ao “vento do porão”, ou seja, liga-se o motor.
09:50
Rádio poliglota
O tempo parece suspenso. Fundeados ao largo de Cascais, não sabemos dizer se os minutos parecem horas ou se as horas parecem minutos. O descanso é agitado pelo desejo de um mergulho no mar. Depois de refrescarem o corpo na água salgada, a fotógrafa e o repórter de imagem da VISÃO voluntariam-se para subir ao mastro do barco em nome de boas panorâmicas.
Mais próximos do céu estão os aviões que fazem acrobacias por cima das nossas cabeças. Quem disse que velejar era só tranquilidade? O rádio de bordo dá conta dos barcos que entram na doca de Cascais. Ouvem-se vozes estrangeiras, em inglês, francês e castelhano.
É fundamental que as comunicações estejam operacionais. Existem vários sistemas de alarme além dos rádios, como a sinalização via satélite e, em último caso, os pirotécnicos (foguete com paraquedas, conhecido por very light noite, facho de luz dia/noite, e pote de fumos dia).
Incrédulos, descobrimos que no mar a solidariedade pode ter um preço. Se for lançado um “socorro mayday”, indicador de naufrágio, há quem, respondendo à chamada, se ache no direito de ficar com metade do valor do barco.
O almoço é casualmente à uma da tarde.
Segue-se o abandono à modorra.
17:45
Marinheiros, sim
As cerejas que estão em cima da mesa instalada no deck desaparecem ao ritmo da conversa, comprovando o provérbio.
João Pardal Monteiro aproveita para contar como foi de Lagos a Lisboa com o motor avariado. “Não temos muitas histórias de perigo porque tomamos as devidas precauções”, diz.
Os barcos são um tema incontornável no regresso à doca de Belém. Completam-se as horas de navegação com as arrumações.
Descer a vela, recolher cabos, arrumar o porão, colocar as defensas (boias que protegem o casco de pancadas), sob uma chuva que abençoa a aventura à chegada.
Os novatos sentem-se tentados a voltar a experimentar. Fernando Sá, habituado a dar formação, garante: “Qualquer pessoa consegue velejar.” Quando pisamos terra firme, sentimo-nos marinheiros em potência. Afinal, sempre descobrimos um novo mundo.