Falta ainda um mês para a partida, mas António Camilo, 66 anos, e os seus companheiros de aventura apressam-se a despachar o contentor que seguirá de barco, com 40 toneladas de roupas, mobiliário, material didático e hospitalar, geradores, brinquedos e até dezenas de bicicletas. Esta será a 15.ª viagem que o empresário e ex-furriel da Companhia de Caçadores que combateu em Jumbembe, Guiné-Bissau, faz entre Lagoa – a sua terra natal, no Algarve – e a antiga colónia portuguesa. Em cada regresso, vai mais carregado e por um período mais longo.
Mesmo quando está em Portugal, empenhado nos negócios das suas três empresas – de eletrodomésticos e artesanato -, António Camilo já se habituou a passar uma boa parte do tempo ao telemóvel, a tratar de assuntos relacionados com a Guiné-Bissau e com a recolha de donativos de pessoas e empresas. São, muitas vezes, telefonemas de antigos combatentes, que ouvem falar da sua história e querem participar na próxima expedição. Em outras ocasiões, são chamadas que chegam do país africano, de pessoas a pedir ajuda. “Há dias”, conta, “ligou-me um homem, desesperado, porque a mãe estava a morrer e ele não tinha dinheiro para os medicamentos. Falei, então, com uma pessoa a quem deixo o dinheiro que nos sobra dos patrocínios, e disse-lhe para ir lá buscar o suficiente para comprar os remédios.” O antigo furriel de transmissões é já conhecido em toda a Guiné-Bissau – e de lá regressa com marcas físicas: os braços arranhados por crianças que se “atiram” sobre ele, sempre em busca de algo mais.
Quando se juntou a outros dez antigos companheiros militares, em 2000, para percorrer os locais em que tinham combatido, António estava longe de imaginar que, a partir desse momento, a sua ligação à Guiné-Bissau se tornaria tão forte. E permanente. Tinham passado 32 anos desde que se embrenhara nas matas guineenses, de G-3 aperrada, precisamente quando a guerra eclodiu. Foram 23 meses intensos, esses, que o marcaram para o resto da vida. Mas o regresso, já em clima de paz, foi um segundo choque. “Quando vi o estado de degradação em que se encontra o país, achei que era preciso fazer alguma coisa. A gente chora, quando lá vai.” António Camilo descreve, emocionado, a pobreza, os hospitais com todo o tipo de carências, em que uma boa parte das mães morre durante os partos, a fome… Dois anos após ter sofrido este embate, o empresário preparou o seu jipe e, com um antigo colega, fez-se à estrada em direção à Guiné. “Tenho pena daquelas pessoas”, diz. “Se não formos lá e não ajudarmos um pouco, o que será feito daquele povo?”
António Camilo recorda a aventura da primeira expedição. Começou por mandar cartas a empresas portuguesas, a pedir sobras, como mapas para as escolas, e a resposta ultrapassou todas as expectativas. “Preparei o jipe e o roteiro da viagem. O carro ia tão cheio que nem sequer cabia mais uma garrafa de água! Logo eu, que nunca tinha estado em Marrocos nem falo francês…”, lembra, divertido. Na altura, uma parte do percurso, na Mauritânia, teve de ser feito pela praia, já que não existiam estradas. “Naquele ano, como fomos à aventura, chegámos a dormir numa tenda de tuaregues, num areal. Só para entrar no Senegal, gastámos perto de 500 euros”, conta.
À medida que foi ganhando experiência e contactos – hoje, António Camilo faz o percurso sem sobressaltos -, o empresário apurou a lista de regras indispensáveis para que tudo corra bem. Os albergues ou pequenos hotéis já vão escolhidos, por vezes até reservados, de Portugal. As diversas autoridades são previamente alertadas, para que nem a bagagem nem os carros fiquem retidos. “Transporto sempre uma pequena farmácia, nunca conduzimos de noite, porque é perigoso, e levamos coisas para dar nas fronteiras ou nos postos de controlo”, relata. Mas já lhe aconteceu fazer toda a viagem, entre Lagoa e a Guiné–Bissau, sozinho. “Medo? Eu tenho medo é de andar em Lisboa…”
Na Guiné-Bissau, a expedição segue invariavelmente rumo à estalagem do Clube de Caçadores do Saltinho, antigo quartel militar, hoje explorado por portugueses. Durante duas ou três semanas – a cada viagem, António Camilo vai ficando mais tempo… -, o grupo percorre cerca de 3 mil quilómetros, atravessando todo o país. Por vezes, elementos da comitiva seguem para a Guiné de carro e regressam de avião, ou vice-versa. Como preferiu fazer o general Rocha Vieira, padrinho de crisma de António Camilo, que integrou uma das expedições, mas viajou de avião para Bissau.
Todo o material e alimentos são distribuídos porta a porta. Em escolas, hospitais, instituições e igrejas necessitados. “Já conheço a Guiné, tabanca [localidade] a tabanca”, orgulha-se António Camilo. “Quero ter sempre a certeza de que nada fica pelo caminho e que chega a quem precisa. E que, quem dá, tenha a garantia de que ajudou.” Ali, o empresário é assoberbado por pedidos de ajuda. Frequentemente, pega no seu jipe e leva doentes ao hospital. Ou vai às vendas comprar sacas de arroz para distribuir. Atente-se, já agora, neste exemplo: uma saca custa cerca de 25 euros, enquanto um polícia, por comparação, ganha 50 euros por mês.
Quando chegarem à Guiné, em março, o empresário e os 12 companheiros de viagem, transportados em quatro carros, têm um novo desafio à sua espera: a construção de uma creche, numa instituição para órfãos, em Varela, no Litoral Norte. É de forma apaixonada que António Camilo desfia os projetos que tem em mente e a maneira como os quer concretizar, até que se lembra da sua idade: “Já devia ser velho para estas coisas, não é?” E ele mesmo responde: “Nah, é sempre cedo para parar.”