No ano passado, o cirurgião Eduardo Barroso teve direito a €277 326 de incentivos para a transplantação, de uma forma que colegas seus, ouvidos pela VISÃO, consideram “eticamente reprovável”. Vamos aos factos. Em 14 de Fevereiro de 2007, Américo Martins, 54 anos, tornou-se director do Serviço de Cirurgia Geral e Transplantação do Hospital Curry Cabral (HCC), em Lisboa, em substituição de Eduardo Barroso, 59 anos, que fora nomeado presidente da Autoridade para os Serviços de Sangue e de Transplantação, num despacho, de 30 de Novembro de 2006, assinado por José Sócrates e pelo então ministro da Saúde, Correia de Campos. Há dias, em entrevista à VISÃO, no gabinete que ocupa no Ministério da Saúde, Barroso chamava a Américo Martins “o meu n.° 2”. Com propriedade. O cirurgião vai diariamente ao HCC e dirige todas as reuniões da equipa que, em teoria, deixou de chefiar há quase um ano. “É a cadeia hierárquica da competência, que não se perde por decreto”, justifica. Mas não só. Dos incentivos financeiros para a transplantação, Eduardo Barroso manteve a sua percentagem mensal fixa de 21% sobre a parte que cabe aos cirurgiões que efectuam os transplantes hepáticos e renais no Curry Cabral. O que, apenas em Novembro último, segundo o próprio, lhe rendeu €30 mil líquidos – mesmo que, durante as intervenções, estivesse em casa. “Para aceitar ser presidente da Autoridade de Transplantação, pus como condição poder continuar a exercer a actividade clínica no hospital e a usufruir dos benefícios que ela me dava”, conta. “De outra maneira, tinha de declinar o convite. Abandonei, praticamente, a actividade privada – achei que era suficiente o que ganhava nos transplantes. Hoje, só faço o mínimo dos mínimos, no Hospital da Cruz Vermelha.” DINHEIRO A RODOS Abra-se um parêntesis histórico. Os incentivos financeiros à transplantação, que se somam ao salário e a todas as outras remunerações, como as horas extraordinárias, foram introduzidos, em meados dos anos 80, por Maldonado Gonelha, então ministro da Saúde do Governo do Bloco Central chefiado por Mário Soares. À época, destinavam-se aos transplantes de rim, os únicos que, na altura, se faziam. Depois, os sucessivos titulares da pasta aprovaram novos incentivos, conforme as especialidades iam apresentando os seus programas, e actualizaram as quantias. A tabela agora em vigor é a que consta de um despacho do ex-ministro Correia de Campos, de 17 de Janeiro de 2006, que se limita a converter em euros valores já estipulados em 2001, no segundo Governo de António Guterres. Por cada transplante de fígado, de pulmões e de medula (aqui com “dador não relacionado”), o Ministério paga €54 867,77; por cada transplante de coração, €24 939,89; por cada transplante pancreático, €14 963,94; por cada transplante de rim, €12 469,95; por cada colheita, €4 987,98 (mais €548,68 por órgão recolhido); por cada transplante da córnea, €1 596,15; por cada exame de histocompatibilidade (por órgão transplantado), €1 097,36; e por cada colheita de um tecido para transplante, €498,80. Enquanto ministra da Saúde, Maria de Belém, 58 anos, nunca questionou a justeza dos incentivos. “São uma forma de financiar o acréscimo de despesa trazido pelas unidades de transplantação, que obrigam a um dispositivo muito caro.” Os montantes, explica a ex-governante socialista, “são dados aos hospitais”. E quanto à sua utilização? Aqui, a actual presidente da Comissão Parlamentar de Saúde demarca-se: “Cada instituição tem as suas regras internas.” ‘É EXAGERADO’ No Hospital Curry Cabral, o conselho de administração tem sido generoso. Entrega, por mês, 48% dos incentivos à unidade de transplantes, para distribuição pela equipa, de cerca de 70 pessoas, que inclui médicos de várias especialidades, enfermeiros e administrativos. E 2007 foi um ano de ouro. Foram ali feitos 136 transplantes de fígado, recorde nacional, e 46 renais. Segundo Eduardo Barroso, Novembro revelou-se o mês de maior actividade, com 19 transplantes hepáticos realizados. Donde ter recebido €30 mil líquidos, como acima se refere. No ano passado, contas feitas, a equipa de transplantação do Curry Cabral teve direito, em incentivos, a €3 857 104,52. Este valor foi confirmado à VISÃO por Manuel Delgado, 55 anos, presidente do conselho de administração do hospital. A percentagem de Barroso, 21% do valor fixo que cabe, por transplante, à equipa cirúrgica, atingiu a quantia de €277 326. A distribuição das verbas baseia-se em percentagens fixas e “móveis” – soma de pontos por “assistências” no bloco operatório, dinheiro-extra disputado pelos cirurgiões juniores. O prémio fixo de Eduardo Barroso é o maior; supera, pois, o de Américo Martins, director do serviço. Mas ambos não usufruem das percentagens “móveis”, que uma pool de seis cirurgiões seniores pode acumular com os prémios fixos de que também beneficiam. REVOLTAS EM SÉRIE Em Janeiro de 2003, Eduardo Barroso foi nomeado director do Serviço de Cirurgia Geral e Transplantação do Curry Cabral, e diz que se limitou a herdar o sistema implantado pelo seu antecessor, Rodrigues Pena, que se reformou. No entanto, admite que, em 2007, apenas interveio “uma dezena de vezes” no bloco operatório, chamado pela equipa para “resolver problemas mais complexos” em transplantes hepáticos. E não vê como, por causa disso, se possa levantar questões éticas e morais. “Fico contente quando não me chamam – é sinal de que estão a conseguir fazer o transplante sozinhos. É essa a grande missão de um líder cirúrgico: tornar os formandos tão bons ou melhores do que o chefe.” Quanto aos incentivos, Eduardo Barroso acaba por dar razão aos contestatários. “Já disse à administração do hospital que, a manter-se este volume de transplantes, temos que diminuir os tectos dos prémios. São, de facto, exagerados.” Por sua iniciativa, já mandou reduzir em três pontos a percentagem de que usufrui. Confrontado com estas afirmações, Manuel Delgado mostrou-se surpreendido: “Está-me a dar uma novidade.” Eduardo Barroso diz estar na Autoridade de Transplantação com “espírito de missão”. Sublinha que, ali, o seu ordenado é inferior ao que auferia no hospital. O despacho conjunto de José Sócrates e Correia de Campos autorizou-o, também, a optar pelo salário do “lugar de origem”, o de chefe de serviço de cirurgia geral – €2 897,61 ilíquidos, que não incluem o suplemento de 10% de director hospitalar. Mas tem direito a carro e motorista. No Curry Cabral é que o ambiente não serena. É frequente cirurgiões que estão de banco serem chamados, de repente, para um transplante. No fim, recebem dos dois lados: as horas extraordinárias do banco, que não fizeram, e do bolo dos transplantes. Na urgência, sobrecarregados com mais trabalho, ficam colegas indignados. Sobre este assunto, o presidente do conselho de administração do hospital foi telegráfico: “Esse é um problema interno que não quero abordar publicamente.” Na unidade de transplantação, outro foco de revolta está na enfermagem. Dos 18 profissionais, só alguns poucos, como a enfermeira-chefe e a da consulta, são contemplados com incentivos. “Apenas é beneficiado quem faz trabalho fora do horário normal”, alega o director do serviço, Américo Martins. “Essas enfermeiras não trabalham mais do que os colegas – nem pouco mais ou menos”, riposta uma profissional, que pediu o anonimato. “Tudo o que rodeia os incentivos é profundamente imoral e injusto.” Surpreendente, mesmo, é o que se passa nos Hospitais da Universidade de Coimbra. Os cirurgiões Alfredo Mota, 60 anos, e Manuel Antunes, 59 anos, garantem que eles próprios e as equipas que lideram, campeãs nacionais, respectivamente, nos transplantes renais e do coração, nunca receberam “um cêntimo” de incentivos. “Só nos pagam as horas que damos ao hospital”, diz o primeiro. Aliás, Alfredo Mota está farto de esperar. “O assunto tem de ser resolvido, com rapidez e centralmente, pelo Ministério da Saúde, e não deixado aos critérios dos conselhos de administração dos hospitais”, exige o cirurgião urologista. Para quem a solução é clara, atendendo às diferentes quantias atribuídas às várias especialidades: “Por uma questão de higiene pública, todos deviam receber [os incentivos] por igual, consoante os transplantes que fazem, sem que haja filhos e enteados.” Já Manuel Antunes tem as contas feitas na ponta do lápis – a sua equipa é credora de 2,6 milhões de euros de incentivos, pelos mais de cem transplantes do coração que realizou desde 2003. “Um dia destes”, avisa, “tenho de pôr os pés à parede.”
O ‘euromilhões’ dos transplantes
O cirurgião Eduardo Barroso beneficia de uma percentagem fixa sobre os transplantes no Hospital Curry Cabral - mesmo que, durante as intervenções, esteja em casa. Nas contas finais de 2007, teve direito a 277 mil euros de prémios