André Ventura vinha embalado do debate com Marisa Matias, que lhe tinha corrido especialmente bem. Mas Ana Gomes, que nunca se enervou, contra-atacou, ponto por ponto, acabando por forçar André Ventura a exagerar na teatralidade, o que provocou o riso da adversária, aconselhando-o a participar no Big Brother. O tratamento por “este senhor”, sem nunca dizer o nome de André Ventura – e numa expressão que costuma ser mais utilizada pelos próprios apoiantes do Chega quando querem dar um sinal de desprezo… – a cujo nível, no final, disse recusar descer, terá desconcertado o adversário, que esteve sempre especialmente excitado e histriónico.
Os dois elefantes na sala, José Sócrates e Luís Filipe Vieira, vieram, é claro, à baila. E André Ventura até ironizou que Ana Gomes só levou dez minutos a trazer o presidente do Benfica (falava-se de corrupção) esquecendo-se de que ele próprio tinha levado ainda menos tempo a trazer José Sócrates. Ana Gomes ainda falou em Marine Le Pen, que “quer destruir a Europa”, mas podia tê-lo feito com um melhor timing, quando André Ventura, a propósito do MRPP, tinha defendido a Europa e o euro. A legalidade sobre a existência do Chega foi um dos momentos quentes, tal como as alegadas atividades de Ventura a ajudar empresas a colocar dinheiro em offshores. Ventura marcou pontos, do ponto de vista do eleitorado de direita, com a associação de Ana Gomes a Sócrates, acusação que a candidata rebateu mal, ela que foi uma das primeiras vozes críticas, dentro do PS, contra o antigo primeiro-ministro. Mas Ana Gomes esteve particularmente inspirada, e eficaz, quando invocou a sua autoridade de mãe e avó de sete netos.
As frases mais quentes do debate.
Os acontecimentos do Capitólio
Ana Gomes:
“Basta ver os acontecimentos no Capitólio. O incitamento ao ódio, as mortes… Eu não quero isto para o nosso País, este senhor nada disse sobre o seu ídolo, Donald Trump”
André Ventura:
“Sou contra todos estes ataques às instituições democráticas, seja o que se passou, sejam os assaltos a bancos ou destruição de fábricas”
Contexto: Em causa, o que se passou esta semana, com o ataque e a invasão do Capitólio, nos EUA, por partidários de Donald Trump, incitados pelo próprio ainda presidente americano. Não é a primeira vez que, a despropósito, André Ventura fala dos assaltantes de bancos, ciente de que parte do seu eleitorado o entende: é uma indireta à LUAR, de Camilo Mortágua, pai das irmãs Mortágua (do Bloco de Esquerda) por ações armadas antes do 25 de abril. Uma velha polémica: a maior parte da direita confunde com delito comum ações que visavam financiar a resistência à ditadura, e que são idênticas, em todo o mundo, em contextos similares aos vividos em Portugal na fase final do antigo regime.
O fantasma do MRPP
André Ventura:
“Está a ver esta fotografia? Morte aos traidores, regresso ao escudo? Do MRPP, que a candidata Ana Gomes diz ter sido uma escola de demcracia!”
Ana Gomes:
“Saí do MRPP com 21 anos. Mas tenho esta marca na cara, por causa da vergastada de um PIDE, quando arriscava a vida a lutar pela liberdade”
“Eu fui só um soldado raso. Mas um dos dirigentes do MRPP era Durão Barroso, lider do PSD, quando este senhor aderiu a esse partido”
Contexto: De facto, tanto Ana Gomes como Durão Barroso militaram no MRPP. O regresso ao escudo, que André Ventura execra, podia ser uma boa ideia para o confrontar com as ideias da anti-europeísta Marine Le Pen, mas Ana Gomes só mais tarde falaria na presidente da Frente Nacional francesa. E também só mais tarde falou do MDLP, partido que foi viveiro da rede bombista de extrema-direita, a seguir ao 25 de abril, e onde militou Diogo Pacheco de Amorim, vice-presidente do Chega.
A pena de prisão perpétua
Ana Gomes:
“É uma questão de civilização. Querem que regressemos à Idade Média? Qualquer dia ainda se vai cortar as mãos aos ladrões…”
André Ventura:
“Recuar 500 anos? Mas há pena de prisão perpétua em muitos países da Europa!”
Contexto: O endurecimento das penas é uma das bandeiras do líder do Chega e isso tem-se visto em todos os debates. Até agora, porém, nenhum dos seus adversários o advertiu de que a alteração do Código Penal não compete ao Presidente da República – que é, afinal, o lugar a que o candidato se propõe.
O telhado de vidro da Autoridade Tributária
Ana Gomes:
“Este senhor trabalhou na AT e depois foi aplicar os seus conhecimentos a ajudar uma empresa a colocar o dinheiro em offshores!”
“Este senhor ajudou o patrão de José Sócrates, isso está exlicado no processo dos vistos gold”
André Ventura:
“Não fui eu que andei a abraçar José Sócrates…” [mostra foto de Ana Gomes com Sócrates]
Contexto: André Ventura trabalhou algum (pouco) tempo na AT, garantindo o seu lugar na administração pública, onde poderá voltar se abandonar a política (encontra-se em regime de licença sem vencimento). Entretanto, fez aconselhamento fiscal para empresas.
O fator Pedroso
André Ventura:
“É uma vergonha ter um diretor de campanha que teve a influência que teve a tentar condicionar a Justiça, no processo Casa Pia, como é dito pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça! E não estou a falar de pedofilia. Ele não foi a julgamento, eu tenho a minha opinião, mas não a vou dizer…”
Ana Gomes:
“Este senhor tem truques para arrastar para a lama quem vem debater com ele, para que se fique parecido com ele. Eu sou mãe e avó de sete netos e não admito acusações deste tipo lançadas sobre as pessoas que trabalham comigo!”
Contexto: Paulo Pedroso, arguido no processo Casa Pia, escândalo revelado em 2002, foi acusado de pedofilia, mas viria a ser ilibado e o Estado português foi obrigado a pagar-lhe uma indemnização compensatória. Ferro Rodrigues, então líder do PS, que também foi vítima de boatos relacionados com o caso, terá ficado convencido de que todo o processo serviu de pretexto para decapitar a direção do PS.
Final quente
Ana Gomes:
“Este senhor é um boneco de forças ocultas”
“Segundo o Presidente Marcelo, é um coelhinho em Belém e um gatarrão aqui nos debates. Como foi, hoje, no seu encontro com Marine le Pen?”
André Ventura:
“Agradeço o elogio, quando me chama gato. Fica-lhe bem…”
Contexto: Ana Gomes referia-se ao debate de Ventura com Marcelo, em que, quase no final, o recandidato, irritado, revelou que o adversário tinha um tom e uma atitude em Belém, e outra no debate, dizendo coisas que nunca dizia nas audiências com o Presidente da República.
Em conclusão, pode dizer-se que a forma como Ventura cilindrou, na véspera, a candidata Marisa Matias, não se repetiu neste debate, bastante mais equilibrado. Foi a pior prestação de Ventura e a melhor de Ana Gomes. Sem vencedor, cada um agradou ao seu eleitorado. O que não é suficiente para Ana Gomes, que tem um eleitorado mais fluído e tem vindo a perder gás, nas sondagens, na luta pelo segundo lugar.