A banda que acompanha a caravana socialista já ensaiava os acordes de “Toda a Noite,” um popular tema de um filho do distrito (Toy, que é dos Cajados, Marateca), quando o “maestro” do PS apareceu, na Praça do Bocage, em Setúbal: “Nutrido, olhos castanhos, carão moreno, eis Costa, em quem luz algum talento”. Não são dele mesmo estas palavras mas, na terra de Bocage – que nasceu na freguesia sadina do Alto da Guerra – foi esta a mensagem que ele quis passar a um eleitorado que, já esquecido dos anos do socialismo na gaveta da era de Mário Soares, em que votava PCP, se manteve à esquerda, mas que, ultimamente, se tem recolhido ao regaço do PS: 38,6% e nove dos 18 deputados, em 2019. Esta cidade, renovada por uma administração autárquica CDU (de Maria das Dores Meira, que atingiu o limite de mandatos e foi substituída pelo novo eleito da CDU, André Martins, agora sem maioria absoluta) que apostou fortemente no turismo, continua a albergar o povo de esquerda. Palco ideal, portanto, para agitar os perigos do ressurgimento do “fascismo”, personificado no Chega. No penúltimo dia de campanha, António Costa ataca em força o PSD, que “comete um grave erro” ao não traçar “linhas vermelhas” em relação ao partido de André Ventura. Os estrategos da campanha socialista agarraram bem o “deslize” do vice-presidente social-democrata, David Justino, que, na véspera, na CNN Portugal, tinha “apagado” explicitamente (palavras suas) essas linhas, sustentando que quem pode colocar ou retirar o Chega da equação é “o eleitorado”. Costa foi dizer a Setúbal que, com uma vitória do PSD, o Chega pode entrar numa solução governativa, caso Rui Rio disso dependa para ter maioria. No final da breve sessão de perguntas dos jornalistas, António Costa já não encontrou tempo para responder à pergunta da VISÃO, alegando que a nossa revista só sai para a semana. E que seria: “E se depender do PS impedir que isso aconteça, o que vai o PS fazer?…”
Os estrategos da campanha do PS agarraram bem o deslize de David Justino: o perigo do Chega é “a razão para votar PS e não PSD”
Setúbal tem em comum com Aveiro os bivalves, as enguias, a tradição conserveira – e dois putativos sucessores de António Costa que, em caso de derrota eleitoral, podem ser chamados mais cedo à casa das máquinas do Largo do Rato. Ora, se, na “Veneza portuguesa”, Antóno Costa teve a companhia empenhada do cicerone Pedro Nuno Santos – dado como o mais forte candidato a liderar o PS do futuro (próximo ou distante?…) -, já na baía do Sado, Ana Catarina Mendes puxou pelos galões de anfitriã, provando que em qualquer solução futura também ela terá uma palavra a dizer. Essa campanha autónoma, interna e subterrânea, que se sente no PS desde o último congresso, em agosto, terá de ficar, porém, em banho-maria, pelo menos até dia 30 e nas últimas arruadas da semana. A etapa de Setúbal, distrito cuja importância se reflete nesta escolha – foi a última cidade antes do dia de encerramento da campanha – foi, portanto, uma aposta de apoio popular, banho de multidão e mensagens fortes. Era, hoje, uma oportunidade decisiva para dramatizar, quando a miragem da maioria absoluta em nada impede o oásis de, ao menos, uma vitória simples do PS. Nas palavras finais aos jornalistas, e usando o argumento do perigo da extrema-direita, Costa foi elucidativo: O PS tem de ficar em primeiro lugar”. Ao menos, isso, portanto.
A jovem Sara, de 11 anos, que saltou ao caminho do líder, teve direito à mais longa paragem da arruada, quando Costa ouviu os “agradecimentos” da menina pelo que o Governo fez “durante a pandemia, o ensino à distância, os computadores e a vacina”. Não terá sido combinado, mas foi, no mínimo, uma abordagem muito conveniente: a estridente banda que acompanha a arruada e que também serve para abafar eventuais vozes descontentes de algum popular que, tresmalhado, venha “emboscar” António Costa, até parou de tocar, para que as televisões captassem o momento: o primeiro-ministro, comovido, a pedir o contacto de telemóvel da pequena Sara!
Aveiro e Setúbal têm várias coisas em comum: bivalves, enguias, tradição conserveira e candidatos à sucessão no PS: Pedro Nuno Santos e Ana Catarina Mendes, respetivamente. Mas foi a cabeça de lista sadina quem se revelou a campeã do “lançamento da rosa”…
Em dia de festa, pelo cuidado centro histórico de Setúbal – aparentemente, a autarquia CDU não precisou de esperar pelo PRR para transformar uma zona degradada e outrora miserável num local atrativo, cosmopolita, cheio de comércio local e de esplanadas convidativas a transbordar de clientes… – o que vimos foi um António Costa solto, descontraído, interativo, loquaz e bem disposto. Se, por vezes, é criticado pela timidez e a aversão ao banho de multidão, então evoluiu muito – ou acordou hoje virado para ali. A máquina socialista funcionou e a rua correspondeu. O primeiro-ministro (como toda a gente o trata, mesmo quando tira a gravata e se apresenta como secretário-geral) foi acarinhado pelos setubalenses com quem se cruzou, mesmo os que, nitidamente, não faziam parte do programa. As janelas abriram-se, as pessoas acenaram e as explosões de engenhos com papelinhos coloridos ouviram-se nos primeiros e segundos andares dos vetustos edifícios locais. Costa estava a jogar em casa e mostrou-se desinibido q. b.. Mas foi Ana Catarina Mendes – muito solta, simpática, ativa e à vontade no seu papel do beijinho do porta-a-porta – a campeã do “lançamento da rosa” quando, ao fim de várias tentativas de elementos da comitiva, incluindo Costa, conseguiu projetar até à janela de um primeiro andar uma das flores com que os socialistas brindam as senhoras que se apresentam a ver “a banda passar”.
A aposta em Setúbal tinha um fito – encorajar as hostes, quando as sondagens se apresentam “hesitantes” – e, nestas terras “vermelhas”, também serviu com vimos, para esconjurar o demónio da “extrema-direita”. A comitiva, para além da cabeça de lista (Ana Catarina Mendes), contou, entre outros notáveis, com o diretor de campanha, Duarte Cordeiro, a presidente da Câmara de Almada, Inês de Medeiros, o anfitrião e ex-candidato à Câmara de Setúbal, Fernando José, e o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho. O argumento final do fantasma do Chega que, por interposto Rui Rio, pode assombrar o poder, é o derradeiro esforço para fazer pender, de vez, o balanço dos votos para o lado dos socialistas. Mas o equilíbrio, nas sondangens, e os vários arranjos possíveis para a governabilidade, ameaçam fazer da noite eleitoral de domingo uma longa jornada política e mediática. Recorra-se, pois, mais uma vez ao Toy: “Toda a noite, toda a noite”…