Aberto o concurso para cônsul de 1ª classe na cidade da Baía, no Brasil, o candidato José Maria Eça de Queiróz entrou a respetiva documentação, tal como era exigido no nº137 do Diário do Governo, de 22 de junho de 1870. Classificado como “muito bom” nas provas prática e teórica, o jovem Eça esperava a nomeação, a qual, porém, viria a ser decidida a favor de Manuel Saldanha da Gama. Um ano mais tarde, nas Farpas, o escritor recordaria o episódio: “Querido leitor: Nunca penses servir o teu país com a tua inteligência, e para isso em estudar, em trabalhar, em pensar! Não estudes, corrompe! Não sejas digno, sê hábil! E, sobretudo, nunca faças um concurso; ou quando o fizeres, em lugar de pôr no papel que está diante de ti o resultado de um ano de trabalho, de estudo, escreve simplesmente: sou influente no círculo tal e não me façam repetir duas vezes!”.
Mais de um século após o episódio que envolveu um dos maiores escritores portugueses, a “cunha” voltou a dominar a atualidade, após o caso das duas gémeas luso-brasileiras, que receberam no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, tratamento para a atrofia muscular espinhal, o qual passou pela administração do medicamento Zolgensma, cujo custo aproxima-se dos dois milhões de euros. Tudo terá começado no Palácio de Belém e terminado num telefonema feito a partir da secretaria de Estado da Saúde, tutelada, em 2020, por Lacerda Sales, para o hospital, de forma a marcar a consulta para as duas crianças, após reunião com Nuno Rebelo de Sousa, filho do Presidente. É precisamente aqui que reside o problema deste caso: com a marcação da consulta, as gémeas entraram no Serviço Nacional de Saúde e tornaram-se elegíveis para o medicamento.
Autor de “Anatomia da Cunha Portuguesa” e o “Compadrio em Portugal”, João Ribeiro Bidaoui recusou comentar o caso da (alegada) “cunha” de Nuno Rebelo de Sousa, filho do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Porém, sobre o fenómeno, o autor considerou que a “reprodução” desta prática tende a “aumentar as desigualdades sociais”. “Como na maior parte dos casos tudo se trata na oralidade, não há rasto documental”, acrescentou.
E como resolver o problema? “Mais transparência, mais acesso direto dos cidadãos aos serviços públicos”, responde João Ribeiro Bidaoui, eliminando, no fundo, a necessidade do “intermediário”. E, assim como há diferentes tipos de pedidos, referiu, “por exemplo de pessoas em desespero devido a uma determinada situação, sem qualquer vantagem económica”, também há diferentes tipos de ajuda: “Há os que podem ajudar e ajudam, querendo apenas só isso, ajudar”.
“Isto só em Portugal”, ouve-se, de cada vez que surge uma história com repercussão pública sobre uma ‘cunha’. No livro “O Compadrio em Portugal”, João Ribeiro Bidaoui acaba com este mito: é que, em França, encontramos o piston ou passe-droits; há ainda o “jeitinho” ou, como ficamos a saber, o “pistolão”, no Brasil; o backschich, “nas suas diversas formas, tão magrebino como turco, persa ou paquistanês e até sobrevivente do comunismo do Leste europeu; o guanxi, na China; o string-pulling nos EUA ; e, por fim, o brokerage/patronage no Reino Unido.
“Por muito maravilhosos que nos julguemos da nossa portugaidade, seria de uma arrogância inqualificável considerarmos-nos também como sede do império de tais problemas civilizacionais”, escreveu João Ribeiro Bidaoui. Antigo adjunto de António José Seguro – ministro adjunto do primeiro-ministro António Guterres – João Ribeiro Bidaou ilustrou o livro com exemplos de “cunhas”. Desde um para uma filha – “sei que farias o teu máximo para assegurares um emprego para ela junto de ti e da tua estrutura”, lê-se num documento – a uma oferta de empreso interessado: “Trabalho numa pequena empresa de um jovem empresário que procura alguém com o teu perfil para resolver uma questão vital para o prosseguimento da empresa(…) O objetivo da consultoria seria desbloquear a situação com este ministro”.
Analisando os espólios doados à Ephemera, Pacheco Pereira traçou, em 2015, no Público, uma “história social da ‘cunha’”, concluindo que esta cobre “todas as classes sociais”: “ Há algumas “cunhas” que se percebem ter origem em pessoas muito “humildes” e há “cunhas” vindas de pares do destinatário e nalguns casos de seus superiores”.
“Pensava eu que havia algum incómodo e vergonha em pedir ‘cunhas’, mas parece tão natural que não espanta quem pede, nem quem a recebe. Pedir uma ‘cunha’ é colocar-se numa situação de ficar a dever um favor e presumia eu que havia um factor de humilhação em fazê-lo. Mas isso não impede que haja pessoas que metem “cunhas” a seu próprio favor como quem respira. Aliás a generalização da “cunha” a todos os níveis sociais como uma prática não só consentida como aceite com normalidade, é um dos factores mais decisivos para a baixa qualidade dos serviços públicos e da burocracia portuguesa”.
Um dos primeiros processos judiciais que deu visibilidade ao fenómeno foi o chamado processo “Portucale”. Abel Pinheiro, antigo secretário-geral do CDS/PP, foi escutado, no final de 2004, em cima dos últimos meses do governo de Pedro Santana Lopes, a fazer vários pedidos aos telefone, entre os quais um despacho ministerial que permitia ao Grupo Espírito Santo cortar centenas de sobreiros, na Herdade da Vargem Fresca, em Benavente, para avançar com um empreendimento imobiliário.
Acusado pelo Ministério Público de tráfico de influências, o antigo dirigente assumiu, em julgamento, ter metido uma ‘cunha’, nada mais do que isso. Enquanto o Ministério Público insistia no tráfico de influências, José António Barreiros, advogado de Abel Pinheiro, ironizava com o que estava em causa: um flagrante delito de ‘cunha’. Certo é que, no final, todos foram absolvidos.
Meter uma “cunha” era, até há uns anos, tão natural que Eduardo Catroga, antigo ministro de Cavaco Silva e, posteriormente presidente do conselho geral da EDP, não se importou em estar a ser filmado, tendo sido apanhado a “meter uma cunha” a António Costa, que tinha acabado de ser empossado primeiro-ministro, após a formação da “geringonça”. Em abril de 2016, após a cerimónia dos “Prémios EDP Solidária”, Catroga foi direto a Costa, dando-lhe conta de um pedido dos accionistas para uma reunião, e atirou: “Se você precisar de mim para dar aí alguns entendimentos, eu disponho-me a isso”.
Além das suspeitas de crimes (a maior parte das quais acabou arquivada), o processo dos “Vistos Gold” apanhou na rede das escutas telefónicas várias “cunhas” que, por serem apenas isso mesmo, não resultaram em acusações. Manuel Palo, antigo diretor do SEF, era o destinatário de muitas, como a de um antigo deputado do PSD, Fernando Santos Pereira, que tinha uma amigo, cuja cunhada estava com dificuldade para obter um visto. A 3 de novembro de 2011, um inspetor do SEF, Fernando Silva, enviou para o ex-diretor o seguinte email: “Esta é a situação de que te falei há uns tempos, um pedido do Dr. Fernando Santos Pereira, amigo do cunhado da cidadã. Disse-me que já tinha abordado o MAI (este advogado é ex-deputado do PSD da mesma concelhia de quem é muito amigo) e que iria falar com ele de novo”.
O chefe de gabinete do então primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, também surgiu num email a “pedir atenção para resolução” de um caso “com a maior brevidade possível”. Manuel Palos receberia, em dezembro de 2013, uma comunicação eletrónica da chefe de gabinete de Miguel Macedo, então ministro da Administração Interna, com este teor: “Senhor ministro, conforme combinado em Braga, remeto documentos relativos ao meu genro, cujo passaporte ficou retido pelo SEF quando regressava de Angola.” Acrescentando: “Conforme combinado.”
No rol de documentos apreendidos, constava ainda um email do, hoje, comentador Luís Marques Mendes sobre o processo de concessão da nacionalidade portuguesa a uma cidadã moçambicana. “Foi só um alerta”, disse, à época, Marques Mendes. O comentador, aliás, também é referido por Isaltino Morais, presidente da Câmara de Oeiras, no livro “A minha prisão. E se acontecesse consigo?”, no qual relatou várias peripécias do processo judicial que o levou à prisão da Carregueira. Disse Isaltino que, em 1999, Marques Mendes pediu-lhe emprego e como não teve como “não ajudar” nomeou-o presidente da entidade gestora da Universidade Atlântica. No mesmo livro, o autarca de Oeiras conta ainda que a procuradora responsável pela primeira acusação contra si, Leonor Furtado, o visitava “regularmente e com frequência” na autarquia, para lhe pedir uma nomeação para um “cargo de diretora-geral na administração pública”.
Se recuarmos ainda mais no tempo, temos, em 2003, o caso de Diana Martins da Cruz, filha do então ministro dos Negócios Estrangeiros, cujo colega de governo, Pedro Lynce, com a pasta da Educação, assinou um despacho que autorizaria a inscrição da filha do diplomata no curso de Medicina, apesar de esta não reunir todos os requisitos. A jovem, após o caso ter sido tornado público, acabaria por não ocupar a vaga.