O governador do Banco de Portugal entre 2010 e 2020 acusou o primeiro-ministro de tentativa de “intromissão política” no afastamento de Isabel dos Santos da administração do Banco BIC, em 2016. Primeiro-ministro rejeita todas as acusações de pressão no caso da filha do ex-presidente de Angola e promete recorrer aos tribunais para limpar o seu bom nome. O que se passou afinal?
Por ocasião do lançamento do seu livro de memórias (“O Governador”), que teve um capítulo pré-publicado no Observador na semana passada, o antecessor de Mário Centeno deixou registado que acreditava que António Costa tentou interferir na decisão do Banco de Portugal em afastar Isabel dos Santos do BIC. No livro, escrito pelo jornalista do Observador Luís Rosa, a partir de um conjunto de entrevistas, Carlos Costa diz que o Primeiro-ministro lhe telefonou em abril de 2016 para sugerir que “não se pode tratar mal a filha de um Presidente de um país amigo de Portugal” – palavras que o ex-governador do Banco de Portugal entendeu como uma forma de pressão política.
Recorde-se que a empresária angolana era nessa altura a maior acionista deste banco, detendo uma participação de 20%, e que lhe foi pedido que se afastasse da instituição para que esta não fosse contaminada com os problemas do BIC Angola. A filha mais velha de José Eduardo dos Santos terá começado por rejeitar a recomendação, o que levou Carlos Costa a pedir ajuda ao primeiro-ministro.
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António Costa desmente a leitura de Carlos Costa e já afirmou que irá processar o ex-governador por ofensa à sua honra, tendo contratado o advogado Manuel Magalhães e Silva para avançar para o tribunal.
O caso não ficou por aqui: esta terça-feira, durante a apresentação do livro de memórias na Gulbenkian, em Lisboa, Carlos Costa argumentou que o próprio chefe do Governo confirmou a sua tese a partir do momento em que lhe enviou uma mensagem escrita na sequência da publicação do livro “em que reconhece que me contactou para me transmitir a inoportunidade do afastamento da engenheira Isabel dos Santos. Ou seja, é o próprio primeiro-ministro a confirmar a tentativa de intromissão do poder político junto do Banco de Portugal”, referiu.
Carlos Costa relacionou ainda as afirmações que faz no livro com a necessidade de “prestação de contas que é comum nos países do norte da Europa, e que já teve notáveis precedentes”. Já António Costa garante não ter mais a acrescentar, repetindo apenas a ideia de que as acusações são “falsas”.
Quem está do lado de quem?
Desde que as acusações vieram a público que António Costa tem sido defendido por vários socialistas, mas não só. O centrista António Lobo Xavier notou, num comentário na CNN, que a “conversa, tal como é relatada no livro, não bate certo com uma série de atos que o primeiro-ministro António Costa praticou no sentido totalmente oposto”. E o social democrata Pacheco Pereira falou em “padrão de ajuste de contas” de Carlos Costa, também na CNN.
Mário Centeno também saiu em crítica a Carlos Costa, por meias palavras. “Só há uma dimensão em que mantemos o velho hábito: o hábito de reescrever a história com os dados censurados e, na verdade, vos digo que parece que gostamos muito disso”, disse o atual Governador do Banco de Portugal.
Já os atuais banqueiros dos principais bancos nacionais, reunidos numa conferência do setor, vieram pelo mesmo caminho: “‘Espuma dos dias’, ‘pouco útil’, ‘questão política’: banqueiros desvalorizam livro de memórias do ex-governador do Banco de Portugal”, resume o Eco.
Outro apoio recebeu António Costa de Fernando Teles, o sócio de Isabel dos Santos, que veio desfazer as acusações do ex-governador e ameaçar com outro processo judicial. “A narrativa de Carlos Costa, no seu livro, de que não fui nomeado em 2016 é falsa e, ou se retrata, ou reserva-se no direito de repor a verdade e o seu bom nome por todos os meios que entenda adequado”, lê-se na carta que foi enviada às redações pelo Banco BIC, sublinhando que continuou na administração até 2020 mesmo após os episódios e que não foi “afastado”. Queixas que se repetem por outras vozes ainda, como a do ex-líder do Bloco de Esquerda Francisco Louça, que afirmou, numa publicação no Facebook, ser “mentira” a referência que é feita sobre a sua participação num grupo de trabalho criado pelo ministério das Finanças no livro.
Hoje, quarta-feira, foi a vez do Presidente da República manifestar o seu apoio a António Costa, assegurando que ninguém pensou em deixar de aplicar “lei desfavorável” a Isabel dos Santos.
“Vingou a lei que foi aplicada de uma forma clara e que lhe foi [a Isabel dos Santos] desfavorável e é evidente que isso depois teve custos no relacionamento com as autoridades e a própria chefia de Estado angolana”, sentenciou o chefe de Estado, que acredita que esta “foi uma história que correu bem no sentido em que o interesse nacional impunha que corresse assim”.
Do lado de Carlos Costa tem estado a oposição, que tem aproveitado o caso para pedir explicações ao Primeiro-Ministro. Quer Luís Montenegro, quer Cavaco Silva, quer Marques Mendes (que marcaram presença no lançamento do livro tal como Ramalho Eanes e Pedro Passos Coelho) não querem deixar morrer as acusações do ex-governador do Banco de Portugal e o último já pediu mesmo ao Ministério Público que abra uma investigação.
“Espero bem que o Ministério Público possa ler os capítulos do livro que têm a ver com o Banif, e se ler não pode deixar de abrir uma investigação criminal. É um caso típico de abuso de poder e favorecimento de uma sociedade. Por muito menos, já vi o Ministério Público abrir inquéritos e constituir arguidos”, insistiu Marques Mendes.
24 horas depois, o gabinete do primeiro-ministro divulgou, esta tarde, um comunicado a recordar uma comunicação do Banco de Portugal de dezembro de 2015 onde se justifica a venda do Banif no quadro de uma medida de resolução face à posição das instâncias europeias. “Face às dúvidas ontem [terça-feira] publicamente suscitadas quanto ao processo de venda do Banif, recorda-se o que então foi publicamente comunicado e esclarecido pelo Banco de Portugal”, pode ler-se na nota enviada às redações, que cita esta entidade: “face às circunstâncias e restrições impostas, a venda da atividade do Banif é a solução que salvaguarda a estabilidade do sistema financeiro nacional e que protege as poupanças das famílias e das empresas, bem como o financiamento à economia”.
Artigo atualizado às 10:15 de dia 17 com as declarações de Francisco Louça.