Rui Tavares ainda se perde pelos corredores labirínticos do Palácio de São Bento, que o levam até ao seu novo gabinete de trabalho, mas o fato de deputado, que hoje veste pela primeira vez, parece assentar-lhe à medida – muito mais confortável do que os banhos de multidão da campanha eleitoral.
Entre as curvas e contracurvas do Parlamento, nenhum historiador se deve (ou pode) sentir desconfortável, muito menos tratando-se de Rui Tavares, com anos suficientes de carreira política para não estranhar cada olhar ou encontro inesperado (mesmo já contando com a barreira das máscaras). “Rui, é muito bom vê-lo por aqui!”, disse-lhe, logo à chegada, Miguel Matos, deputado do PS e secretário-geral da Juventude Socialista – (muitos) outros lhe seguiriam o exemplo ao longo do dia.
Rui Tavares chega à Assembleia da República, após muitas tentativas, como se esta fosse a primeira vez do Livre – cada vez mais distante do (conturbado) mandato de Joacine Katar Moreira, eleita pelo partido em 2019. A insistência deu frutos, mas a estreia é moderada com pragmatismo.
“Estar na Assembleia da República, para mim, tem, obviamente, uma enorme importância, mas não o vejo como uma vitória pessoal. Todos sabemos que a minha carreira e vocação estão na História e na escrita, mas também faz parte dar um contributo cívico e, sobretudo, devolver tudo aquilo que o nosso País nos deu. Eu, como muitos outros, não teria concretizado nada do que sonhei se não tivesse sido o Portugal do 25 de Abril – a escola pública, o Serviço Nacional de Saúde, a entrada na União Europeia, as bolsas de estudo na licenciatura, no mestrado e no doutoramento… Sou, também eu, um produto do regime democrático, e todos nós devemos, em algum momento da nossa vida, retribuir aquilo que o País nos deu”, afirma.
Guiando-se aos “apalpões”, acompanhado (e guiando) a VISÃO, Rui Tavares lá passou pelos habituais procedimentos de inscrição; trocou palavras com (novos) colegas e funcionários da Assembleia da República, e, a caminho do seu gabinete, ainda teve tempo a ir “dar uma vista de olhos” à Biblioteca Passos Manuel, no coração do Palácio de São Bento, com aquele à-vontade de quem se sente em casa quanto está mais perto dos livros.
Em jeito de passeio, Rui Tavares desfiou expectativas para os próximos quatro anos, admitindo sentir que “esta legislatura é ainda de maior responsabilidade” para quem ocupa lugar no hemiciclo. “Hoje, os 230 deputados tomam posse de um mandato que é o dos 50 anos do 25 de Abril, que começa com mais dias de liberdade do que aqueles que tivemos de ditadura, e que, só por isso, não deve ser como os outros, mas virado para o futuro. O Livre tem um projeto para o futuro de Portugal. O nosso objetivo é, precisamente, encontrarmos um novo modelo de desenvolvimento para o País, com base numa política de conhecimento e descarbonização, que permita salários mais altos e serviços públicos de qualidade”, afirma.
Mais habituado aos gabinetes e livros, Tavares admite que, desta vez, a política que se segue tem de ser feita de pessoas e para pessoas. As paredes de pedra fria do Parlamento não chegam. “A força que teremos cá dentro, será proporcional à que teremos lá fora, e ao alcance das nossas ideias junto da sociedade civil. Por isso, neste mandato (marcado pela maioria absoluta do PS), será tão importante o trabalho feito cá dentro [da Assembleia da República], como aquele que será feito lá fora. O Livre é um partido já conhecido pela convergência, mas agora queremos que seja também conhecido pela abrangência, ou seja, que seja capaz de envolver cada vez mais e mais pessoas, para que estas possam também contribuir para o nosso projeto”, diz.
Qual será a prioridade do seu mandato?
“Queremos um mandato virado para o futuro e ajudar a contribuir para um novo modelo de desenvolvimento para o País, com base no conhecimento e na descarbonização”
De mangas arregaçadas: primeiras duas resoluções apresentadas
O gabinete de Rui Tavares, situado no piso intermédio do edifício, está ainda despido de folhas e computadores, mas Rui Tavares não perde tempo e, à chegada, arruma o blazer cinzento escuro para o primeiro cabide que encontra e trata de arregaçar as mangas da camisa branca, com o entusiasmo e a energia de quem promete “uma legislatura diferente”.
“Hoje, já vamos apresentar as primeiras duas resoluções”, revela. E, num passe de mágica, atira duas folhas A4 para cima daquela que será a sua mesa de trabalho nos próximos quatro anos. As primeiras propostas do deputado único do Livre pedem que a Assembleia da República declare Vladimir Putin responsável por crimes de guerra, e que Portugal participe na investigação junto do Tribunal Penal Internacional (TPI); o outro projeto de resolução pretende dar prioridade ao projeto designado por três C’s: de casa, conforto e clima.
As dificuldades inerentes à função de um deputado-único, sem a representatividade de um grupo parlamentar, não assustam Rui Tavares, que, à partida – e mostrando-se fiel ao discurso de campanha das últimas legislativas – acena com uma palavra de ordem: “convergência”.
“Não estamos focados apenas no nosso partido. O Livre situa-se no centro da esquerda e, certamente, vai poder e conseguir trabalhar com todos os outros partidos que também sejam progressistas, humanistas, democratas e tenham princípios ecológicos”, garante.
Isso inclui todos? “Claro que não”, esclarece. A “cerca sanitária” do deputado único do Livre está bem definida, e não admite hesitações (nem confusões): “Vamos sempre lutar contra todos os partidos que queiram destruir a democracia e o Estado de Direito em Portugal. E nem sequer somos nós que definimos isso, mas aqueles partidos que se declaram contra a Constituição e contra a república”, acrescenta, numa referência direta ao Chega.
A manhã terminou ao sabor do café – e no círculo de Rui Tavares não entra toda a gente.