“Já ouviu a voz de falsete com que saí do hospital?! Noutros tempos, até o fado cantei, mas cantar a Grândola à janela neste estado está fora de hipótese. O povo ia pensar que ensandeci por causa do 25 de Abril!”.
Regressado há pouco mais de um mês do hospital, o coronel Otelo Saraiva de Carvalho, um dos artífices da revolução, não deixa, aos 83 anos, que os problemas de saúde contagiem o seu sentido de humor. Pelo menos, ao telefone. “Oh pá, sempre pensei que ia durar até aos 100 anos, mas já estou a ver que, por este andar, não vai ser possível nem é negociável…”, graceja, fazendo pausas para recuperar o fôlego. Otelo, nascido em Moçambique em agosto de 1936, esteve treze dias hospitalizado devido a uma insuficiência cardíaca. O condicionamento abrupto do quotidiano provocado pela Covid-19 apanhou-o ainda internado, tendo abandonado o internamento um pouco desfasado do carrossel de acontecimentos. “Regressei a casa no dia 16 de março e já não saí mais”, explica.
O “capitão de Abril” mantém, por esta altura, poucos contactos com antigos “companheiros de armas” – “falei há dias com o Almada Contreiras, mas tenho, grande parte do tempo, o telemóvel desligado”. Ainda assim, lá vai recebendo convites para participar em iniciativas online destinadas a assinalar o 25 de Abril de 1974. Porém, reconhece, o seu estado físico, e até anímico, não estão para grandes festejos ou celebrações. “Ah, mas no Dia da Liberdade não deixarei de recordar belos tempos”, assegura. “Vou assistir a um programa da RTP com os meus camaradas e ver, mais uma vez, a série A Hora da Liberdade, na SIC, que é uma belíssima homenagem televisiva à revolução”.
Enquanto isso, Otelo Saraiva de Carvalho tem vasculhado na sua biblioteca as obras cuja leitura ia deixando a meio ou reservando para um tempo que parecia nunca chegar. Mas chegou. Não exatamente da forma imaginada, serena ou mais agradável, mas chegou. “Alguns folheio, leio um outro capítulo, e ponho de lado”, reconhece. “Já me vai faltando paciência. Mas estou a ler com muito prazer o romance Os Memoráveis, da Lídia Jorge, dedicado precisamente a esses tempos saudosos de 1974 e em que a autora me compara a El Campeador”, alusão ao lendário guerreiro castelhano. “Nunca pensei que pudessem fazer de mim o Cid do 25 de Abril”, relata, uma vez mais bem-humorado.
Os seus dias são também atravessados por saudades avassaladoras de abraços rijos, cafés com amigos, afetos vários. Mas consciente de que, para enfrentar a pandemia, convirá, talvez, não saltar etapas. “As reações a esta situação têm de ser cautelosas, não podemos exagerar”, avisa. “O povo tem recebido as medidas governamentais com uma aceitação razoável, mas é natural que, passado o período de maior dramatismo, as pessoas queiram voltar ao convívio social sem reservas. Nós esquecemos rapidamente as coisas más e acredito que iremos sair disto melhores, com uma sociedade mais madura”.
Ele, para já, tem ainda muito tempo de recuperação pela frente, com ou sem pandemia a limitar as liberdades. “Felizmente, tenho muitas memórias boas para recordar. E o 25 de Abril, com o que representou de potencial transformador do nosso povo, é uma delas. Isso já não nos tiram”.