O País está há três dias a descobrir o que o novo presidente do Tribunal Constitucional (TC) escreveu em verões passados. De prosas metafóricas publicadas no site da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, como aquela em que defendeu os tomates nacionais para criticar Cavaco ou comparou a homossexualidade ao veganismo, que já o obrigaram a vir a terreiro apontar que não passavam de tontices que passou para a escrita na altura, até a recentes acórdãos, com algum cunho alegadamente misógino, em que critica a “deriva” que representa a conquista de alguns direitos das mulheres; quem é afinal João Caupers, o professor catedrático que se tornou juiz do Palácio Ratton, em 2014, quando foi cooptado pelo coletivo do TC, e chegou agora à sua presidência?
A quase dois meses de completar 70 anos, Caupers foi quem no coletivo do Ratton, em 2018, contribuiu para que a lei da gestação de substituição – conhecida por “barrigas de aluguer” – conhecesse um revés. Na altura, já com dois pedidos de casais para gravidezes naqueles moldes em análise pelo Conselho Nacional da Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), aquele especialista em Direito Administrativo juntou-se à ala mais conservadora do TC, contra o grupo de juízes indicados pelo PS e BE, chumbando uma lei criada quase dois anos antes.
O coletivo alegou então que era inconstitucional a “regra do anonimato de dadores e da própria gestante de substituição” – ou seja, quem nascia teria direito a saber quem era o pai e quem cedia o seu útero deveria ter direitos, que não tinham sido acautelados pela Esquerda parlamentar.
O seu voto passaria despercebido se a declaração que decidiu associar ao acórdão não transparecesse em poucas linhas a interpretação que então fazia das alterações legislativas, que a gerigonça começara a implementar em 2015 – entre elas, o fim da noção da mulher tutelada no acesso às técnicas da procriação medicamente assistida (PMA). Ou seja, até então, só com a autorização de um marido é que uma mulher estéril, por exemplo sem útero, poderia engravidar de forma assistida.
“Censura” a famílias perigosas sem pai
“Deixo claro que o meu voto censura […] a gestação de substituição, em si mesma, enquanto conceito e enquanto técnica de procriação medicamente assistida: tenho-a por violadora da dignidade da pessoa humana – além de perigosa, na perspetiva da reprodução humana; opinião que sustento, além do mais, numa valoração de interesses, que coloca em primeiro lugar os da criança, em segundo os da gestante e em último os dos beneficiários”, escreveu, classificando tal legislação como exemplo de um “paradigma inaceitável”.
Para Caupers, a lei, sobre a qual um grupo de deputados à direita havia pedido a fiscalização, “degrada uma questão fundamental para a sobrevivência da espécie humana – a reprodução” e transforma tal desígnio “num assunto exclusivo das mulheres”.
E no que parece ser uma crítica à agenda liberal da primeira legislatura do PS, que permitiu às mulheres solteiras recorreram à PMA, o juiz é taxativo sobre o que pensa: “Não que tal me surpreenda, uma vez que a deriva já fora iniciada, lamentavelmente, pela lei da procriação medicamente assistida, com a sua menção à ‘tutela da liberdade e autonomia da mulher que quer ser mãe'”.
“Diga o direito o que disser, omita o que omitir, a conceção de uma criança sem pai é tão absurda como a de uma criança sem mãe”. Mais, “todos os filhos têm mãe e pai”. Meses depois, tendo o Parlamento mantido a lei nos mesmos moldes, o TC voltou a chumbá-la. Há menos de meio ano, os deputados alteraram a legislação, adaptando-a às exigências.
Guinada na argumentação
Ora, em julho de 2019, o jurista, que ficará no TC só até 2023 – já que o mandato único é de nove anos -, teve uma outra interpretação sobre o direito a todos terem um pai e uma mãe, quando foi relator de um caso que lhe chegou às mãos de uma mulher que, aos 50 anos, exigia ser reconhecida pelo pai.
João Caupers alegou que a mulher, que nasceu de uma relação entre “uma criada de servir” e o filho da patroa, tinha perdido o direito a pedir tal gesto ao fim dos dez anos seguintes à maioridade. No final, esta decisão teve um simbólico voto de vencido: o de Manuel Costa Andrade, o presidente do TC sucedido por Caupers.
Para o novo presidente, que era então vice de Costa Andrade, se ações como esta, “de investigação da paternidade”, fossem possíveis ser “instauradas a todo o tempo”, iriam ter “uma forte repercussão na vida pessoal, familiar, social e patrimonial do [pai] investigado”.
O acórdão deixa ainda no ar que poderia estar em causa uma alegada caça daquela mulher aos bens do seu pai, que seriam atingíveis com o reconhecimento legal. “Na infância e juventude, que são fases de crescimento e preparação para a autonomia de vida, o direito a ter um pai assume um conteúdo valorativo extremamente amplo e intenso, que inclui todos os bens pessoais indispensáveis ao desenvolvimento estruturado e equilibrado da pessoa em formação, designadamente os bens da segurança, saúde e educação”.
Outra coisa é que, uma mulher, então com 50 anos em 2018, venha junto da Justiça reivindicar tal direito, que tinha sido reconhecido pela Relação de Guimarães – que considerou inconstitucional o tal travão de uma década para alguém ver a sua parentalidade sinalizada. “O direito ao conhecimento e reconhecimento jurídico da paternidade passa a assumir na fase adulta uma dimensão essencialmente patrimonial”.
Dito e feito, a mulher viu chumbada tal pretensão. A par de questões filosóficas, que se prendiam com a moralidade do problema, Manuel Costa Andrade ainda chamou à atenção para que “basta ter presentes as já assinaladas mudanças provocadas pelo decurso do tempo”. Isto é, que nas últimas décadas inverteu-se o paradigma dos filhos de pais incógnitos existentes durante o Estado Novo, já que o Ministério Público passou a ter o dever de avançar com inquéritos que permitam identificar os progenitores de um recém-nascido.
Dos melhores tomates dos portugueses, e outros 46 textos
Coube ao Diário de Notícias trazer a lume, na última terça-feira, um artigo de opinião, de maio de 2010, da pena de Caupers, que versou a homossexualidade. O jurista recusava-se no texto a ser “tolerado por eles” [os gays], de quem dizia não serem “nenhuma vanguarda iluminada, nenhuma elite”. “Não passam de uma inexpressiva minoria, cuja voz é enorme e despropositadamente ampliada pelos media”. No fundo, defendeu, são como os “vegetarianos ou os adeptos do Dalai Lama”, sendo que, salientava, “existem mais vegetarianos do que homossexuais em Portugal – e, porventura, até mais adeptos do Dalai Lama”.
Na verdade, aquele artigo é apenas um do conjunto de 47, que Caupers escreveu à cadência de um por cada mês , entre 1 de Fevereiro de 2010 e 3 de Fevereiro de 2014, na coluna “Pontos de vista” do site da Faculdade de Direito da Nova.
Foi ali que, sobre a classe política – “que tem cada vez menos classe” -, argumentou: “A maioria dos nossos agentes políticos é francamente medíocre: nas tontices e dislates que profere, na falta de verticalidade e de sentido de responsabilidade, no que não diz e muitas vezes insinua, no que faz e, sobretudo, no que não faz”. No fundo, “vai ser muito difícil livrarmo-nos deles”, diria.
Em reação ao discurso do 10 de Junho de 2013, do então chefe de Estado, em que Cavaco Silva aludiu à produção recorde do concentrado de tomate por Portugal, Caupers questionaria se “poderemos nós depositar as nossas esperanças” em tal produto. “Porque não? Afinal, não temos grandes alternativas. Trata-se de um produto à base de tomate e todos sabemos como o aumento de tomates pode ser relevante para os desígnios nacionais. A falta de tomates acarreta consequências imprevisíveis e tem efeitos funestos. Quanto mais tomates, quanto melhores tomates, melhor”, escreveu, a um ano de rumar ao TC. Sendo que já aí admitiria que duvidava “que outra pessoa tivesse a desfaçatez” de publicar tais artigos como os seus numa pagina da internet de uma faculdade.
Na última terça-feira, em reação à peça jornalística do Diário de Notícias, o presidente do Constitucional alegou que os artigos foram uma forma de despertar as mentes dos alunos da instituição, descartando defender algumas ideias “tolas” que estão em tais escritos.
Porém, foi em fevereiro de 2014, numa nota interna da primeira mulher a dirigir a Faculdade de Direito , Teresa Pizarro Beleza, em que dava conta da saída de Caupers para o palacete da Rua do Século, que o jurista esclareceria o seguinte sobre o leque de textos, mostrando ter pouco arrependimento de ter expostos alguns pensamentos: “Escrevi o que escrevi e assumo a inerente responsabilidade. Alguns textos não seriam escritos da mesma forma hoje, pois são muito datados, reagindo a questões que ocupavam a opinião pública. Mas, na maioria dos casos, voltaria a escrever o que escrevi”.
“Novo Rumo” com Seguro
Em 2014, João Caupers foi uma escolha dos pares para substituir Maria João Antunes no Constitucional, cujo mandato foi sendo arrastado durante um ano já após o seu terminus, porque não havia quem quisesse substituir a penalista de Coimbra, tendo em conta a exclusividade com que tem que ser exercido o cargo no Ratton mas também porque, em plena execução do memorando da Troika, estavam a ser exigidas ao coletivo várias decisões sobre medidas impopulares que o Governo de Passos Coelho tomou na altura.
Do especialista em Direito Administrativo, publicamente pouco mais se sabia do que os textos anti austeridade que ia escrevendo para o blogue “Voz Cívica” e no site da Faculdade de Direito de Lisboa. Até então, apontavam-no como sendo um homem de esquerda, daí ter participado na conferência “Liberdade, Segurança e Justiça”, organizada pelo PS e inserida no “Novo Rumo” – o projeto político que o secretário-geral António José Seguro levou a cabo no Largo do Rato, para quebrar com o passado da liderança de José Sócrates. Naquele evento defendeu a fusão de todas as autoridades numa só polícia nacional.
Na altura, antes de entrar no TC, havia considerado que as mexidas nas pensões eram um “abuso, roubo, confisco”. Em causa estava a convergência das pensões da Caixa Geral de Aposentações, que implicava um corte de 10% acima dos 600 euros ilíquidos, e que o coletivo, chamado a pronunciar-se pelo Presidente da República, Cavaco Silva, havia chumbado.
Dois meses após chegar ao Ratton, em março de 2014, Caupers foi um dos que impôs à ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, uma pesada derrota relativamente ao seu primeiro Orçamento do Estado, após a saída de Vítor Gaspar do Governo. Os cortes nos subsídios de desemprego, de doença e no de sobrevivência acabaram chumbados.
Uma ministra no extenso currículo
É muito (mas muito) extenso os 40 anos de currículo (de percurso profissional e académico) de João Caupers, nascido em Lisboa, onde concluiu o Ensino Secundário, no Liceu Camões, com uma média de 16 valores, em 1968. Dali a seis anos estaria a concluir a licenciatura em Direito na faculdade, onde ficou logo como assistente e mais tarde acabaria por se tornar professor catedrático.
Findo o curso, além de dar aulas, entrou como funcionário para o Ministério das Corporações, em janeiro do ano da Revolução, onde ficou até 1976, quando foi chamado para cumprir o serviço militar obrigatório. Ficou pouco tempo na Escola Prática de Cavalaria já que o primeiro Provedor da Justiça, o coronel Manuel da Costa Braz, um dos militares de Abril, faria que com acabasse a recruta como seu assessor. Um dos fundadores do PS, Magalhães Godinho, que sucederia a Costa Braz, manteve-o por perto. Depois Costa Braz levá-lo-ia para o Alto Comissário contra a Corrupção como adjunto.
A atual ministra da Modernização Administrativa, Alexandra Leitão, foi uma de muitos alunos que tiveram como arguente das suas teses o presidente do TC, que tem ainda na bagagem colaborações na elaboração de legislação diversa. Entre essa, conta-se o decreto de 20 de setembro de 1979, que estabeleceu a proibição da discriminação das mulheres no trabalho.