Foi algo nunca visto antes da pandemia: mais de uma dúzia de juízes-conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiram habeas corpus (pedidos de libertação imediata) sem estar à frente dos advogados dos presos numa sala de audiências. Dezanove julgamentos foram realizados de forma remota naquele tribunal superior, entre 11 de março e 23 de abril. Advogados, procuradores e juízes usaram sistemas de videoconferência para comunicar, cada um, a partir da sua sala. Sem as cadeiras do costume, sem proximidade física. Cada uma das partes no quadrado de um ecrã. Houve até um ou outro caso em que o juiz relator não se deslocou ao tribunal: conduziu a sessão e leu a decisão final, deliberando se o arguido deveria ou não sair da cadeia, a partir da sua casa.
Dos 19 arguidos que viram o seu caso julgado à distância, só um conseguiu que os juízes considerassem que deveria ser libertado. E curiosamente, esse homem condenado por crimes de roubo viu a decisão do Supremo ser-lhe aplicada apenas de forma “parcial”. É uma história só possível em tempos excecionais: o tribunal entendeu que o homem deveria sair da prisão, sim, mas como não tinha autorização de residência em Portugal, deveria ser imediatamente extraditado para Cabo Verde, país de onde é natural. Só que como os aviões estavam em terra, o arguido acabou por ter de continuar preso – até o tráfego aéreo retomar a normalidade –, apesar de o juiz Nuno Gonçalves ter concluído que já estava preso ilegalmente desde dezembro. Tudo isto foi dito, contraditado e decidido à distância, através da câmara de um computador.
Num período em que a pandemia levou ao cancelamento de quase 50 mil diligências nos tribunais de 1ª instância – 47 832 cancelamentos, de acordo com dados do Conselho Superior da Magistratura –, os números do Supremo Tribunal de Justiça são ainda mais surpreendentes. Ao todo, os conselheiros tomaram decisões à distância em 111 processos. Os 19 julgamentos de habeas corpus feitos através de ferramentas de comunicação remota foram os únicos com intervenientes externos; mas os juízes fizeram ainda 14 sessões virtuais para discutirem e votarem entre si os projetos de decisão apresentados pelo juiz relator. No caso das secções de penal, por exemplo, entre 11 de março e 30 de abril, o Supremo fez dez sessões, nas quais foram decididos 52 processos. Já no cível, os juízes conseguiram tomar decisões sobre 53 processos em apenas duas sessões por videoconferência.
Choque tecnológico “brutal”
Mais do que os números, o que surpreende é que tudo isto aconteça numa estrutura como a do Supremo Tribunal de Justiça, até há pouco tempo muito avessa à modernização. “Não foi nada fácil. Ao início, muitos queriam continuar a fazer a sua vida habitual, fazer a viagem de comboio e vir aqui despachar processos”, comenta uma fonte do STJ. Este tribunal, que funciona com uma sede única, em Lisboa, era o único do País em que os juízes não estavam obrigados, por exemplo, a usar o Citius, portal “oficial” dos profissionais da Justiça. Ou seja, o seu uso era facultativo. Agora, também isso poderá estar prestes a mudar. Por ordem de António Piçarra, presidente do STJ, que já trabalhava na modernização dos serviços e na substituição de material informático obsoleto, o Conselho Consultivo do Supremo ia decidir se os conselheiros são ou não obrigados a usar esta plataforma informática, como já acontece com os outros atores judiciários.
Fontes da magistratura falam de um choque tecnológico “brutal” e de um surpreendente avanço, só possível com muito trabalho dos técnicos informáticos, que tiveram de explicar detalhadamente a muitos dos 60 conselheiros daquele tribunal como funcionavam as ferramentas de comunicação à distância. Muitos, afinal, estavam habituados a trabalhar só com papel. “Também aqui vingou a regra de que ‘a necessidade aguça o engenho’. Claro que um julgamento ou uma sessão à distância tem uma dinâmica diferente. Claro que há, aqui ou ali, problemas técnicos; a pessoa que não está a ouvir bem; a imagem que está a parar. Mas, globalmente, parece-me que o essencial é assegurado. Os juízes têm capacidade de debater e decidir em liberdade”, diz à VISÃO o presidente do Supremo.
Os juízes podem fazer os julgamentos e reuniões através da Webex, uma ferramenta da Cisco licenciada pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ) e que até disponibiliza verdadeiras salas de videochamada virtuais. Mas, em muitos casos, têm optado pelo Teams, plataforma da Microsoft para videoconferências. O importante é que as plataformas permitam a gravação das sessões e a partilha de documentos.
Já se sabe que, no que diz respeito a tecnologias, estas nem sempre colaboram. São as gravações que não ficam bem feitas, os programas que bloqueiam, ou este ou aquele interveniente que não se consegue ‘ligar’ por ser infoexcluído ou estar com fraca rede de internet. Mas nos julgamentos há outros constrangimentos que também importam: os juízes têm sentido dificuldade em perceber, e até garantir, se um arguido e o seu advogado, por exemplo, saem mesmo da sessão quando essa ordem é dada. Numa sala real, bastava olhar para ver se saíam mesmo. Nas salas virtuais, basta deixar uma câmara ou um microfone ligados para iludir o sistema.
958
Número de julgamentos que os tribunais da Relação mantiveram
48 mil
No espaço de mês e meio, 47 832 diligências foram canceladas nos tribunais de 1ª instância
111
Número de decisões tomadas em videoconferência pelos juízes do Supremo
Outro detalhe que a pandemia permitiu perceber é que não fazia sentido os juízes terem de se deslocar ao tribunal só para assinarem os seus acórdãos. Também isso mudou: uma indicação por email ao escrivão que estiver de serviço é suficiente para que este possa substituir o juiz na assinatura das decisões.
O Supremo deu também o exemplo ao retomar a atividade plena a meio de abril: os julgamentos dos processos não urgentes foram retomados, e a distribuição dos processos voltou a ser diária. Isto privilegiando sempre os contactos virtuais, pois as diligências presenciais, para já, só são permitidas com autorização do presidente. As sessões de discussão e votação de acórdãos devem ser feitas em oito salas virtuais e os acórdãos podem ser assinados no Citius.
No futuro, António Piçarra prevê que algumas sessões virtuais se possam manter. “Parece-me que tende a melhorar a capacidade e o tempo de resposta. São muitas horas em transporte que se recuperam. É muito cansaço físico que se salvaguarda. É até algum dinheiro que se poupa. Agora, será necessário caminhar para encontrar um justo equilíbrio entre o trabalho presencial e o virtual.” E, afinal, os juízes podem ou não julgar a partir de casa? O Sindicato dos Funcionários Judiciais tem protestado, por considerar ilegal que os julgamentos sejam presididos à distância, com os juízes no conforto das suas casas, mas para quem manda no Supremo estas regras não estão bem definidas, porque a lei não foi pensada para julgamentos à distância: “É necessário ponderar com muito cuidado as necessidades de saúde pública, sem desvalorizar o exercício público de uma função soberana. É uma reflexão que tem sido feita e que terá de ser aprofundada.”
Tribunais: distância e acrílicos sem data marcada
Ninguém tem dúvidas de que é urgente pôr os tribunais a funcionar a todo o gás. O que não se sabe é quando será possível fazê-lo em pleno, num País em que muitas salas de julgamento nem têm espaço para todos os arguidos e advogados em condições normais, quanto mais para o necessário distanciamento social em contexto de Covid-19. O plano de reabertura dos tribunais prevê a instalação de separadores em acrílico, salas com lotação reduzida, distância de dois metros – encurtada para um metro nas salas mais pequenas e desde que as partes usem máscara e viseira. “No papel, está certo, mas na prática não existem estas condições”, diz Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), frisando que se encomendaram pouco mais de três centenas de separadores em acrílico, quando existem mais de 700 salas de audiência no País. “A Justiça não é igual a uma repartição de finanças nem ao balcão em que se trata do bilhete de identidade”, alerta o representante dos juízes, recordando que, durante o estado de emergência, muitas regras, como a de os julgamentos serem públicos, foram violadas, e que mesmo processos urgentes não puderam avançar por falta de condições nos tribunais. “Uma pessoa que sofra um acidente no trabalho tem de ser presente a um juiz e a uma junta de três médicos. Como estas salas são muito pequenas, muitas destas sessões não se fizeram. Não é possível alguém passar seis meses sem receber da seguradora.” O número de diligências canceladas prova, para Manuel Soares, que “a ideia de que tudo se faz por videoconferência está errada”: “Nem um quinto se consegue fazer.” Ainda assim, o juiz admite que as condições técnicas não foram o único impedimento. “Não tenho números, mas recebi de muitos colegas o feedback de que muitos julgamentos poderiam ter sido feitos se os advogados não se tivessem oposto.”