A eutanásia volta ao Parlamento na próxima quinta-feira, 20, estando já afastada a possibilidade de o assunto ser levado a referendo. PS, Bloco de Esquerda, Verdes e PAN, que apresentaram projetos de lei para a legalização da morte antecipada, já disseram “não” à consulta popular; junta-se-lhes o PCP, que se opõe à eutanásia e que também rejeita o referendo, e a deputada não inscrita Joacine Katar Moreira, que, sendo a favor, também quer o assunto decidido na Assembleia da República (a Iniciativa Liberal também apresentou um projeto próprio, mas não se pronunciou sobre o referendo).
No quadro das contas parlamentares, o referendo cai, mas a aprovação da eutanásia tem, à partida, todas as condições para avançar. Um desfecho diferente do de 2018, quando o tema marcou pela última vez a agenda política e o projeto do PS acabou chumbado por uma diferença de cinco votos.
À margem desse cálculo, poucos resistem a juntar-se a um dos lados da barricada: “sim” à antecipação da morte; “não” ao fim de uma vida humana. É um daqueles temas limite (como tinha sido o aborto) e o debate é aceso, apaixonado, ainda que nem sempre se foque naquilo que, de facto, está em causa. Os mitos multiplicam-se, a desinformação vai fazendo caminho.
Portugal pode tornar-se um destino de turismo para suicidas? Os menores de idade também vão poder recorrer à eutanásia? Basta querer morrer para poder fazê-lo? E a avaliação clínica de um médico é o que é preciso para poder pedir o fim da própria vida? Fomos ler os cinco projetos que vão a votos daqui a uma semana para perceber o que dizem em relação a nove pontos centrais desta discussão.
A EUTANÁSIA É PARA QUEM QUISER
Os cinco projetos apresentados por vários partidos mostram alguns pontos comuns. Um deles é este: não basta que alguém manifesta vontade de morrer para que esse processo se inicie.
O Iniciativa Liberal, por exemplo, restringe essa possibilidade a um doente que, “padecendo de lesão definitiva ou doença incurável e fatal, esteja em sofrimento duradouro e insuportável”, enquanto o PAN limita o pedido de “morte medicamente assistida” aos “casos de doença ou lesão incurável, causadora de sofrimento físico ou psicológico intenso, persistente e não debelado ou atenuado para níveis suportáveis e aceites pelo doente ou nos casos de situação clínica de incapacidade ou dependência absoluta ou definitiva”.
Com formulações mais ou menos complexas (e completas) de quem serão os potenciais requerentes deste ato, todos os partidos apertam a malha para limitar o universo a casos de doentes com doenças incuráveis e fatais e que se encontrem em situação de sofrimento.
Outro ponto importante: os projetos fazem menção expressa ao facto de esses doentes não poderem sofrer de quaisquer doenças do foro mental nem poderem encontrar-se num estado de debilidade psicológica durante todo o processo de avaliação do pedido de morte antecipada.
Além disso, os doentes são convocados a reiterar vontade de prosseguir com o seu processo várias vezes (e, em alguns casos, por escrito), num intervalo que varia entre as duas manifestações (como consagra o PAN – ainda que reserve espaço para que o médico se assegure dessa vontade “um número razoável” de vezes) e as sete vezes que reitera a vontade (como no projeto da Iniciativa Liberal, que também estipula períodos de reflexão).
ATÉ AS CRIANÇAS PODEM PEDIR PARA MORRER
Impossível, à luz de qualquer um dos projetos apresentados. A eutanásia só será uma opção para quem tenha 18 ou mais anos de idade. Portanto, só doentes maiores de idade estão habilitados a formular o pedido.
PORTUGAL NA ROTA DO TURISMO SUICIDA
Esta semana, o Jornal de Notícias escrevia que sete cidadãos portugueses já tinham viajado para outros países onde a eutanásia é legal para ali poderem morrer. É esse o total de portugueses que, desde 2009, a associação Dignitas, na Suíça, já ajudou a viajar até àquele país para pôr termo à vida. E Portugal? Com a aprovação da eutanásia, podíamos tornar-nos um destino na rota dos doentes que pretendem antecipar a morte?
Os projetos impõem duas condições aos requerentes: que sejam cidadãos nacionais ou, em alternativa, que tenham residência legal no país. Só a Iniciativa Liberal admite um terceiro grupo, o dos apátridas. Uma outra possibilidade, possivelmente mais flexível, seria abrir o leque de requerentes a cidadãos estrangeiros que se deslocassem a Portugal ao abrigo de um visto de saúde e que, dessa forma, pudessem dar início ao processo clínico. Mas essa via não está consagrada em nenhuma das propostas apresentadas.
BASTA O ‘OK’ DE UM SÓ MÉDICO
Não é verdade em nenhuma das propostas. No mínimo, é exigido o parecer clínico de dois médicos – um, que acompanha o doente (“responsável”, “orientador” ou com outra designação, é o profissional que o próprio doente escolhe livremente para acompanhá-lo durante o processo e que não tem de ser nem o seu médico de família nem um médico da especialidade da patologia em causa) e o outro, da especialidade da doença. Podem ser mais, mas as soluções variam de proposta para proposta.
O PAN, por exemplo, consagra no seu texto que, além de consultar um especialista da área, o primeiro médico a intervir no processo deve”, salvo oposição do doente, discutir o pedido [de eutanásia] com o médico ou equipa de médicos que assegure os cuidados regulares do doente”. Nos vários casos, é mencionada a possibilidade de ser também consultado um médico psiquiatra. Esse recurso é sempre facultativo e, na formulação do PS, depende de uma situação em que o médico orientador ou o médico especialista “tenham dúvidas sobre a capacidade da pessoa para solicitar a antecipação da morte revelando uma vontade séria, livre e esclarecida”, por um lado, ou da suspeita de que o doente é “pessoa portadora de perturbação psíquica que afete a sua capacidade de tomar decisões revelando uma vontade séria, livre e esclarecida”, por outro.
Certo é que um parecer negativo de qualquer destes clínicos tem consequências diretas no processo de antecipação da morte: pode significar o fim desse processo ou, em alternativa, a sua suspensão, com possibilidade de ser pedida nova avaliação do caso. O PAN optou pelo seguinte modelo: se um dos médicos intervenientes der um parecer desfavorável ao pedido de eutanásia, “o doente tem direito a pedir uma reavaliação do mesmo, devendo esta ser realizada por outro médico”, da mesma especialidade daquele que invalidou a antecipação da morte. Essa avaliação só pode ser requerida uma vez em cada processo – o que significa que o processo em causa é arquivado mas o doente pode voltar a iniciar um novo processo mais tarde (30 dias depois, no caso do PAN).
Além destes clínicos, que contactam diretamente com o doente que requer a eutanásia, em todas as propostas se prevê a intervenção de uma “comissão de verificação” de todo o processo, formada por médicos, enfermeiros e juristas e que funciona de forma independente do corpo clínico. A comissão toma posição sobre os pedidos de eutanásia que lhe são remetidos pelos médicos que acompanham cada caso (só o PAN entende que não é vinculativa e até pode ser tomada depois de concluído o processo).
A discussão tem data marcada: 20 de fevereiro. E já tem tempo limite: 157 minutos (entre os 28 minutos atribuídos a cada partido com propostas sobre o tema e o minuto para os deputados únicos e para os não inscritos). Há dois anos, faltaram cinco votos ao projeto do PS, na votação inicial, para a eutanásia poder tornar-se realidade em Portugal. As eleições de outubro do ano passado mexeram na configuração de lugares e, agora, à partida, os “sim” estão em maioria. As votações acontecem logo a seguir ao debate.