É da sabedoria popular: em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão. Troque-se a casa pela sede do CDS, em Lisboa, e fica quase sintetizado o estado do partido que nas legislativas não foi além dos 4,22% dos votos (221 774 em termos absolutos) e que ficou reduzido a cinco deputados. Abatida, Assunção Cristas anunciou que deixaria a liderança no congresso marcado para o próximo fim de semana, 25 e 26) e, até lá, com cinco candidatos confirmados, muitos temem que os centristas entrem numa miniguerra civil – ou, no mínimo, que se enredem em discussões identitárias estéreis.
João Almeida, deputado, porta-voz da direção cessante e antigo secretário de Estado da Administração Interna, deverá ser o alvo principal dos adversários que vão tentar colá-lo à estratégia e aos resultados obtidos por Cristas. Filipe Lobo d’Ávila, que também foi secretário de Estado da Administração Interna e antigo porta-voz dos democratas-cristãos, afigura-se como principal opositor. Em declarações à VISÃO, sublinha que “é preciso recuperar a credibilidade do CDS e, para isso, é necessário aceitar a pluralidade dentro do partido e as diferentes famílias que sempre coabitaram”.
Na perspetiva do antigo deputado, que encabeça o Juntos pelo Futuro, grupo de críticos de Cristas, um dos pecados dos últimos quatro anos foi a primazia dada a uma linha doutrinária mais soft, como explicou à VISÃO, há um mês, quando confirmou que entraria na disputa interna. Isto porque, realça agora, “a grande vantagem do CDS” face a partidos como o Chega ou a Iniciativa Liberal poderá ser a corrente democrata-cristã e a sua “preocupação na ação política com os mais desfavorecidos, com os mais pobres e com a classe média, que é cada vez menos média”.
Quando questionado sobre o que falhou na era Cristas, Lobo d’Ávila diz que é preciso “olhar para a frente” e sugere um rumo: uma visão conservadora na segurança, na justiça e nos valores da família, liberal na economia e democrata-cristã nos assuntos sociais. A solução, assegura, não passa por copiar partidos emergentes: “Ser o Chega 2.0, como alguns querem, não pode ser o caminho.”
Francisco Rodrigues dos Santos acredita que os centristas vivem “um momento de emergência” e pretende enveredar por “um novo rumo à direita”. Um caminho com três “r” (Renovar, Reestruturar e Reposicionar) que implica “gente nova, sem ruturas geracionais”, “descentralizar” o funcionamento interno e ainda uma “mensagem clara” de um “partido do povo, da direita popular”.
“Testar as sobras [de ideias] de ontem como soluções de amanhã vai conduzir-nos ao fracasso”, vaticina, reforçando com um remoque a Cristas e à sua cúpula: “Os desvios do passado [face à matriz fundacional] culminaram nos quatro por cento…” Para o presidente da JP, conhecido como Chicão, o partido “tem de assumir que é de direita” e “não pode pedir licença à esquerda quando for chamado a travar a batalha cultural” dos tempos que correm.
Admitindo ser “tão conservador quanto é o CDS”, dá uma nova alfinetada ao núcleo duro de Cristas pela alegada descafeinação ideológica: “Não vamos utilizar a linguagem e adotar as soluções que os nossos adversários utilizam, nem o CDS tem de se contorcer para agradar a franjas eleitorais que nunca votarão em nós.” Como prioridades políticas, caso seja escolhido pelos congressistas, identifica a transformação digital, a economia (combate à precariedade e alívio fiscal), a melhoria do Serviço Nacional de Saúde, o reforço da autoridade dos professores, o combate à corrupção, a reforma do sistema eleitoral, a coesão territorial, a reforma do Estado e um novo contrato com os portugueses que assegure a sustentabilidade da Segurança Social.
Mais à direita, Abel Matos Santos, da Tendência Esperança em Movimento (TEM), advoga uma rutura absoluta com os últimos anos do portismo e com todo o legado do cristismo. Para o líder da corrente mais radical do partido, é inconcebível que o CDS tenha tentado ser “um PSD mais pequenino, um catch-all party”. “As pessoas não querem. Para isso há outros partidos”, critica.
Pede assim que não haja ambiguidades até ao conclave. “O PCP toda a gente sabe o que é. Ninguém vai ao engano. O CDS também tem de ser clarinho, tem de afirmar os seus valores. Deve ter um discurso firme, descomplexado, à direita. Deve despir-se de preconceitos e assumir aquilo que tem de assumir. Os que quiserem manter este discurso morno e politicamente correto devem afastar-se”, observa, criticando a “incapacidade” da direita em combater culturalmente a esquerda na chamada agenda fraturante (aborto, eutanásia, casamento homossexual ou adoção de crianças por casais gay) ou mesmo em dossiers como o das carreiras dos professores.
Ainda assim, garante que se ri quando equiparam a TEM ao Tea Party (a ala mais radical do Partido Republicano dos EUA). “A esquerda tem afirmado, de forma clara, aberta e convicta, os seus valores e a direita calou-se. De vez em quando pede licença para dizer umas coisas muito tímidas…”, lamenta, apontando, uma vez mais, o dedo a Cristas: “O partido passou a viver numa bolha mediática, foi Correio da Manhã, foi arroz com atum na televisão…” Ao contrário dos que defendem uma reunião magna pragmática, virada para fora e sem “sangue”, Matos Santos aposta as fichas numa batalha doutrinária acesa: “O CDS precisa de combate ideológico como de pão para a boca. Este é o congresso do tudo ou nada: ou se regenera ou acaba.” Os adversários, esses, também já estão sinalizados, e só duas candidaturas, a sua e a de Francisco Rodrigues dos Santos, o presidente da JP, representam “a rutura e o futuro”.
Almeida recolhe mais apoios entre os notáveis. Lobo d’Ávila liderou a oposição durante quatro anos. Chicão e Matos Santos são os rostos das alas mais conservadoras
Autárquicas,
“o primeiro degrau”
O outsider – como o próprio admite – desta contenda é Carlos Meira. Antigo presidente da concelhia de Viana do Castelo e candidato àquela câmara municipal, em 2013, lamenta que o CDS se tenha “tornado um grupo de amigos de Assunção Cristas e das elites de Lisboa”, e diz que avança para “afrontar essas elites e o centralismo”. As caneladas a Cristas surgem em catadupa, desde logo, explica, “por ter governado o partido como se fosse a revista Caras”. Para futuro, Meira advoga que os centristas se virem para a agricultura e para o mundo rural, que se debrucem nos assuntos do mar, em específico os relacionados com a Zona Económica Exclusiva, e que se dediquem à reorganização interna. Ainda que garanta que quer “ir até ao fim”, o empresário revela que já almoçou com Lobo d’Ávila e com Rodrigues dos Santos e confessa que, verificando-se “a limpeza de que o partido precisa”, está disposto a juntar-se a um desses projetos. Não ao de João Almeida, porque “fez parte deste descalabro”.
O visado pela maioria dos oponentes, como costuma fazer quem vai na frente, centra-se apenas nas suas “prioridades que constam da moção que apresentará aos congressistas. João Almeida tenciona “recentrar o discurso do partido, recuperando as causas de sempre e conciliando-as com as novas”. Quer ouvir e falar para áreas e setores que o CDS sempre privilegiou – da agricultura à segurança de pessoas e bens, passando pelas prestações sociais, para que “efetivamente as receba quem precisa delas”. Uma forma de estancar a fuga de apoiantes para o Chega? “Não, isso sempre foi uma bandeira do partido”, recorda o deputado que pretende igualmente passar uma mensagem inequívoca sobre transição energética e alterações climáticas – “sem chavões e com opções concretas” – e políticas públicas com os olhos postos na transição digital (promovendo a inovação tecnológica, embora protegendo o emprego). Para o congresso, guarda uma medida que visa “a possibilidade de escrutínio das políticas europeias a nível nacional” e, de caminho, antecipa que “o primeiro degrau” para a recuperação do partido são as autárquicas de 2021. Para isso, nota, é necessário passar por um processo de “reabilitação interna das estruturas”.