Dois anos e meio depois da tragédia de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos, que tiraram a vida a 66 pessoas, vai ser debatida no Parlamento uma petição para que os deputados investiguem o “aproveitamento fraudulento, abusivo e corrupto dos donativos e dinheiros públicos” que se destinavam a apoiar as vítimas materiais dos incêndios. Em entrevista à VISÃO, Victor Reis, ex-presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), que foi afastado pelo Governo do processo de reconstrução, mostra-se favorável à averiguação na Assembleia da República e não poupa nenhum dos alegados responsáveis – da autarquia pedroguense, chefiada por Valdemar Alves, ao primeiro-ministro, António Costa, passando pela ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, e pelo presidente do PSD, Rui Rio.
O arquiteto, militante social-democrata e apoiante de Luís Montenegro nas diretas, considera que o Ministério Público (MP) realizou um bom trabalho de investigação, mas destaca que o relatório da auditoria ao Revita conduzido pelo Tribunal de Contas (TdC) veio expor a falta de coordenação e transparência que pautou a gestão da onda solidária, tal como a VISÃO denunciou em primeira mão em julho do ano passado.
Há um ano, afirmou, em entrevista à VISÃO, que o fundo Revita era “uma espécie de saco azul” e o seu regulamento “um enorme alçapão legal”. Conhecida a acusação do MP, com 28 acusados, e o relatório da auditoria do TdC, reforçou essa convicção?
Absolutamente. A acusação do MP é demolidora quanto ao que se passou em Pedrógão Grande e as conclusões da auditoria do TdC são totalmente avassaladoras quanto à conduta de todos os responsáveis, a nível nacional, regional e local. Não tenho qualquer dúvida de que, juntando aquilo que o MP não pôde dizer na acusação e aquilo que o TdC veio dizer nas conclusões da auditoria, temos um retrato que mostra a mais completa negligência, irresponsabilidade e, lamento dizê-lo, cultura de corrupção.
Segundo a acusação, o presidente da Câmara de Pedrógão Grande e o vereador Bruno Gomes terão incentivado várias pessoas a alterar as moradas fiscais para beneficiarem indevidamente dos apoios (para colherem dividendos políticos). Perante a alegada prática de 60 crimes, o PS não deveria ter retirado o apoio a Valdemar Alves?
É absolutamente escandaloso que não só esse senhor continue em funções como todos os restantes intervenientes neste processo, a todos os níveis, continuem nos respetivos cargos. Pior ainda: a maior responsável pela coordenação do processo, que era a presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro [CCDRC], acabou promovida a ministra.
É crível que, mais acima, Revita e CCDRC não tenham sequer suspeitado destes esquemas?
Só não viu quem não quis. O que é escandaloso é que mesmo depois das denúncias e das notícias que saíram na VISÃO, na TVI, no Expresso, em múltiplos órgãos de comunicação social, esses senhores continuaram a negar as evidências, quando bastava terem ido ao terreno para perceberem. E estou hoje plenamente convencido de que a promoção da senhora presidente da CCDRC a ministra não é senão a recompensa pela conduta que teve de esconder aquilo que o País inteiro viu.
Ou seja, não acredita que os representantes da CCDRC na Comissão Técnica do Revita e o próprio Conselho de Gestão do fundo tenham sido enganados pelos autarcas, como alegaram no inquérito judicial.
Quiseram ser enganados.
O relatório do TdC é corrosivo para o Revita e para a CCDRC, vincando que foram validados ou aprovados apoios e pagamentos “mesmo em casos duvidosos, essencialmente por terem confiado ou terem sido convencidos pelos representantes das autarquias”. Sublinha também que faltou “evidência de verificações físicas e confirmações da informação quer por parte dos municípios, quer da Comissão Técnica” do Revita. Perante isto, o Governo não devia ter atuado?
Primeiro facto: a acusação do MP, na página 31, diz, de forma clara e explícita, que no primeiro formulário Revita de candidatura [a apoios] não existia quadrícula destinada a assinalar a menção de habitação permanente, isto é, quem conduziu a preparação deste processo era incompetente naquilo que estava a fazer. Segundo dado: é quase caricato quando, analisado o caso da Ilda Pegacho, na Figueira, que é o caso 28 das “Casas da Vergonha” [lista com 46 situações alegadamente irregulares que seguiu para a Presidência da República, para a Procuradoria-Geral da República e para o TdC], a acusação relate que uns dizem que foi estabelecido o critério para as casas de emigrantes e outros digam que não se lembram. Não há sequer um documento sobre uma decisão tomada nessa matéria. Ora, o MP acaba por arquivar este caso, que foi uma casa de uma pessoa que estava emigrada, reconstruída pela Cruz Vermelha, assumindo que não tinha forma de pegar no assunto quando, ao mesmo tempo, em Vila Facaia uma pessoa emigrada na Europa, exatamente na mesma situação, viu a sua candidatura recusada e teve de pagar a reconstrução da casa do seu bolso. Depois, quando analisamos o que o TdC diz sobre a conduta da CCDRC, há frases fatais: “(…) faltou uma coordenação de todo o processo, que não pode deixar de ser assumida pelo Estado”; “Na realidade o que faltou foi uma verdadeira coordenação da ajuda que deveria também estar submetida a critérios uniformes, função que só o Estado pode assegurar; “A análise efectuada pela CCDRC foi essencialmente documental, confiando nas declarações dos municípios e, em geral, sem análise crítica dos documentos”…
“Estou plenamente convencido de que a promoção da presidente da CCDRC a ministra não é senão a recompensa pela conduta que teve de esconder aquilo que o País inteiro viu”
Perante isto e também face à desvalorização do assunto por parte de Ana Abrunhosa, que chegou a afirmar que não acreditava que se tratasse de um problema generalizado ou de casos financiados pelo Revita, como é que se explica a sua chamadapara ministra da Coesão Territorial? Não deveria um pedido de desculpas às vítimas, aos doadores e ao País?
O senhor primeiro-ministro é muito bom a premiar aqueles que lhe são servis e que lhe prestam vassalagem, que é o caso. A doutora Ana Abrunhosa foi muito, mas muito, prestável a encobrir toda a pouca-vergonha que aconteceu em Pedrógão, que é, em primeiro lugar, da responsabilidade do senhor primeiro-ministro por ter criado as condições para que, do ponto de vista legal, não tenha havido os mecanismos para que houvesse coordenação e fiscalização.
Está a referir-se ao afastamento do IHRU de todo o processo.
Refiro-me ao afastamento do IHRU; ao facto de a Comissão Técnica do Revita praticamente não ter saído do gabinete; ao facto de, depois de a comunicação social ter começado a falar deste assunto, eles terem continuado a assobiar para o lado e a dizer que não se passava nada; ao facto de o presidente da Câmara ter mentido com quantos dentes tinha na boca e, a dada altura, até ter dito que tudo isto não passava de inveja; ao facto de o senhor primeiro-ministro ter tido a lata de declarar que não era um problema do Estado, era um problema das instituições porque o que era irregular era a situação das instituições e, afinal, descobrimos que as instituições foram enganadas e que todos os processos que financiaram tiveram a validação da CCDRC e do Revita. E a outras duas situações gravíssimas, que foi dois ministros terem ido ao Parlamento mentir descaradamente – o ministro [Pedro] Siza Vieira foi dizer que eram só cinco, seis ou sete casos, quando já se sabia que eram umas boas dezenas e o ministro Pedro Marques foi dizer que os casos tinham passado porque as juntas de freguesia tinham emitido atestados de residência, quando toda a gente sabe que isso não existia nem o regulamento do Revita o previa. Mentiram descaradamente, e continuaram todos a mentir a tentar encobrir esta realidade! O presidente da Câmara mentiu, a presidente da CCDRC mentiu, os ministros mentiram, o primeiro-ministro mentiu, toda a gente com responsabilidades a nível nacional, regional e local foi conivente com esta pouca-vergonha!
Acredita que Ana Abrunhosa alguma vez pedirá desculpa?
Claro que não, isto é gente demasiado arrogante para o fazer.
O relatório do TdC frisa também que “os técnicos envolvidos na interação com as vítimas nem sempre tinham ou transmitiram a informação de que só as habitações permanentes seriam apoiadas, o que levou o MP a arquivar parte dos casos”. No fundo, o que diz é que nem a Justiça teve condições para apurar tudo o que precisava de ser apurado. O que escapou?
O MP fez um trabalho muito positivo, em condições muito difíceis porque o Governo criou uma cratera legislativa ao ter afastado as regras do Prohabita deste processo – foi a primeira vez que num processo de reconstrução ficámos sem lei e, portanto, o MP teve dificuldades. No entanto, ao MP escaparam, acima de tudo, três tipos de situações. Primeira, a capacidade de ponderar, perante pessoas que tinham casa em Pedrógão e noutros locais do País, qual era o grau de permanência num local ou noutro para aferir qual era a habitação principal. Essa foi uma das dificuldades que o MP reconhece e até o escreve em várias acusações, chegando ao ponto de dizer em alguns casos que os processos poderão ser reabertos. A segunda, e aí acho que é um erro do MP, é que há várias situações em que onde antes havia uma casa que não ardeu hoje, utilizando os anexos que arderam, temos duas casas distintas e autónomas, ou seja, aproveitaram a reconstrução de anexos para fazerem uma segunda casa dentro do mesmo lote. O MP devia ter aberto os olhos! O terceiro aspeto que escapou, que é uma questão mais técnica, tem a ver com aquela conversa da treta, aquela peta de que os telhados começaram a meter água quando chegou o inverno. Sabendo nós que as telhas, mesmo as artesanais, são cozidas e feitas em fornos a centenas de graus, não é a onda de calor de um incêndio que as deforma, quebra ou pode estragar. Esta é quase a fábula dos telhados de manteiga de Pedrógão Grande, que serviu para legitimar uma série de obras em casas que não arderam. Os telhados estavam completamente podres e houve uma série de oportunistas que ganharam telhados novos.
“Depois do que sucedeu, os portugueses têm todo o direito de duvidar do destino que dão aos seus donativos. O que aconteceu em Pedrógão Grande coloca em causa a generosidade nacional”
Além da parte da reconstrução, o TdC enfatiza que “o valor dos donativos em espécie não está claramente determinado” e que os municípios não cumpriram a obrigação de os integrar no Revita e que existem bens “em vários estados de conservação” em Pedrógão Grande. Como é que a solidariedade dos portugueses pode recuperar de um choque destes?
Essa é a terceira tragédia de Pedrógão Grande. A primeira foi o incêndio, o enorme número de vítimas e a elevadíssima destruição, a segunda foi a fraude e a burla e a terceira é que, depois do que sucedeu, os portugueses têm todo o direito de duvidar do destino que dão aos seus donativos. O que aconteceu em Pedrógão Grande coloca em causa a generosidade nacional. E o TdC foi muito claro quando deu seis meses ao Revita para tornar públicos todos os apoios e relatou inclusivamente aquilo que o presidente do Revita, de forma inaceitável e escandalosa, veio dizer que era “muito duvidoso que a divulgação pública nominal dos apoios, num contexto marcado pela intranquilidade social e uma escalada mediática sensacionalista, não provocasse consideráveis efeitos adversos”, que é como quem diz “vamos lá tratar de esconder isto para não sermos penalizados”.
A não publicitação de todos os donativos angariados e apoios concedidos foi deliberada?
Foi intencional. Houve uma clara intenção de não divulgar os apoios e o TdC disse que houve um grau de transparência insatisfatório, que a lista de beneficiários e de apoios concedidos não foi divulgada, que houve informalidade e falta de clareza e que não foi disponibilizada informação pública sobre as principais decisões do Conselho de Gestão do Revita. Claramente houve intenção de não serem transparentes.
Como é que classifica o papel do Parlamento ao longo destes dois anos em relação a Pedrógão Grande?
Pegando na palavra do dr. Ferro Rodrigues ontem, uma vergonha, com exceção honrosa de alguns deputados e do grupo parlamentar do CDS.
Quando, este ano, foi consagrado o 17 de Junho como Dia Nacional em Memória das Vítimas dos Incêndios Florestais, Teresa Morais, ex-deputada social-democrata, apresentou uma declaração de voto em que defendia que “o Parlamento errou quando prescindiu de constituir uma comissão de inquérito que apurasse todas as responsabilidades políticas e todas as falhas das entidades públicas envolvidas”. Porque é que o PSD a deixou quase sempre a falar sozinha?
Eu não consigo aceitar nem compreender o silêncio do dr. Rui Rio e da liderança do PSD ao longo deste ano e meio, desde que se tornaram públicas as situações escandalosas em Pedrógão Grande. Este silêncio é cúmplice com o PS e com o Governo, é inaceitável.
Porque é que predominou esse silêncio?
É pura cumplicidade, como tem acontecido em muitas coisas. O silêncio do PSD nesta matéria é escandaloso.
“Espero que os deputados tenham a coragem de fazer o inquérito e estou disponível para voltar ao Parlamento, tenho muito mais coisas para dizer”
Não teme que interpretem estas críticas a Rui Rio como resultado do seu apoio a Luís Montenegro na disputa interna?
Estou-me nas tintas. Quando comecei a luta contra as fraudes na reconstrução de Pedrógão Grande nem sonhava que Luís Montenegro se candidatasse à liderança do PSD. Acho que tem de ser dito aquilo que tem de ser dito sobre os silêncios do PSD relativamente a muitas matérias. Pedrógão é só mais um caso.
Tem esperança que a comissão parlamentar de inquérito seja proposta e aprovada, a reboque da discussão da petição?
Espero que tenham a coragem de fazer o inquérito e estou disponível para voltar ao Parlamento, tenho muito mais coisas para dizer, até face àquilo que está escrito na auditoria do TdC e na acusação do MP. Quero, aliás, dizer que se o MP quiser eu voltarei onde entenderem ser útil para poderem melhorar a investigação que fizeram, porque fizeram um bom trabalho, mas ainda há coisas por esclarecer.
O inquérito na Assembleia da República ainda seria útil para concluir alguma coisa que o MP não tenha apurado?
Há questões de ordem política que ainda não estão explicadas. O Governo deve uma explicação ao País sobre a decisão de criar um buraco legal ao arredar a aplicação do Prohabita e ao retirar o IHRU deste processo, entregando-o à CCDRC. Esta é uma questão de opção política, não é jurídica, e aconteceu exclusivamente em 2017 – não se verificou em 2016 com os incêndios do Funchal nem em 2018 com o incêndio de Monchique.