O divórcio entre o PS e o movimento independente de Rui Moreira na Câmara do Porto, cuja gestão para este mandato foi objeto de um acordo pós-eleitoral, levou a que, no espaço de poucos dias, os vereadores da lista socialista, Manuel Pizarro (Habitação e Ação Social) e Correia Fernandes (Urbanismo), entregassem os seus pelouros na autarquia e abandonassem o executivo. A versão de alguns protagonistas do polémico desenlace é já conhecida, mas no caso do arquiteto, e apesar do ruído de fundo, não se lhe tinha, até agora, ouvido palavra sobre a aterragem turbulenta deste projeto autárquico. Independente eleito na candidatura do PS, Manuel Correia Fernandes abre o livro em entrevista à VISÃO, sem poupar a forma de liderança de Rui Moreira e admitindo que, na origem de diversos problemas desta maioria, estará uma postura com “falta de cultura democrática” pela qual responsabiliza o presidente.
Embora faça um “balanço pessoal positivo” desta experiência autárquica, “com uma parte técnica e programática muito interessante”, Correia Fernandes confessa sair com “alguma insatisfação”. Na verdade, justifica, “se os mandatos já são curtos para planear e realizar os projetos de que a cidade precisa, este foi ainda mais curto pelas razões que são públicas”.
O arquiteto não poupa nas palavras e acusa a presidência e o gabinete de comunicação do município, liderado por Nuno Santos, de silenciar e boicotar a visibilidade e o trabalho do seu pelouro: “O que fizemos no Urbanismo foi completamente ignorado e votado ao ostracismo de forma intencional e deliberada. Vivi tempos muito duros”, lamenta, em conversa telefónica com a VISÃO, na tarde de sexta-feira, 12.
Para o antigo docente da Faculdade de Arquitetura do Porto, “houve uma espécie de convergência estratégica entre a presidência e o gabinete de comunicação que, na verdade, nunca esteve ao serviço da Câmara do Porto, mas sim ao serviço do próprio presidente”. Correia Fernandes garante mesmo ter confrontado Rui Moreira, mas não encontrou eco para as suas queixas: “Não houve propriamente uma resposta. Ou se quiser, a justificação foi meramente burocrática. Foi-me dito que eram coisas que diziam respeito à área de comunicação e ao trabalho do seu responsável. Até admito que o presidente não estivesse de acordo com tudo o que se fazia, mas o facto é que houve um autêntico menosprezo pelo trabalho do pelouro do Urbanismo e lamento-o profundamente. Não tanto por mim, mas por quem vestiu a camisola”. Segundo reconhece, “há muita gente com competência e capacidade na estrutura camarária, mas cujo trabalho não é dignificado. É mesmo ignorado”, confessa.
Os “perigosos sinais”
Tendo abandonado o pelouro de forma prematura, Correia Fernandes sai, porém, com uma certeza: “Há, da parte de quem lidera este projeto, falta de cultura democrática. Senti muito isso”, admite, aprofundando: “Houve falta de debate político no executivo, pouca ou nenhuma vontade de escrutinar e discutir as opções e os rumos. A liderança demonstrou pouca disponibilidade para partilhar as decisões e, talvez por isso, o rumo seguido foi, por vezes, titubeante”, observou, receando pelos “perigosos sinais” que foram dados. “A postura e a cultura de arrogância nascem assim”, crê, precisando: “Nunca houve decisões ou opções discutidas em grupo. Não digo que isto foi feito por maldade, mas nunca senti que existisse vontade de discutir as diferenças, que, em algumas matérias, eram consideráveis”. O ex-vereador dá como exemplos os casos da revisão do Plano Diretor Municipal (PDM), do Mercado do Bolhão, da Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) e dos projetos imobiliários para o quarteirão de D. João I para ilustrar algumas das áreas e assuntos em que houve divergências, maiores ou menores consoante as situações: “O apelo ao debate público sobre o PDM por parte da presidência foi zero. Fez-se uma dúzia e meia de sessões sobre esse tema de importância decisiva para a cidade e o presidente não foi a nenhuma. Admito que não tenha tido espaço na agenda, mas há muitas formas de pôr de lado ou votar ao ostracismo o que não interessa”. Correia Fernandes fala ainda de “opções e guinadas que nunca percebi em relação a várias matérias”. No fundo, lamenta, “fui deixado sozinho no terreno em diversas situações. Paulatinamente, o pelouro do Urbanismo foi sendo secundarizado”. Quanto ao “caso Selminho”, nome da sociedade imobiliária ligada a Rui Moreira e familiares, envolvida num controverso acordo judicial com o município a propósito de um terreno e tendo como pano de fundo a revisão do PDM, Correia Fernandes considera-se “esclarecido”. Isto é, “pelos documentos que tenho, estou esclarecido e tranquilo. Este é um processo longo, complexo, que reporta ao tempo de Nuno Cardoso na autarquia e, por isso, não podemos olhá-lo à luz dos mais recentes episódios”. Mas, adverte, “isso não quer dizer que os detalhes do processo, a forma como se resolve o problema e como pode ser trabalhado, estejam esclarecidos ou fechados. Aí, considero que há, do ponto de vista do interesse municipal, muito para discutir, não é um tema encerrado”.
Numa altura em que começam a surgir alusões e críticas ao estilo “quero, posso e mando” de Rui Moreira, o arquiteto também não foge à questão: “Admito que seja verdadeira a ideia de que a liderança é unipessoal, arrogante ou discriminatória, mas também admito que essa imagem possa ter passado para o exterior pelo facto de, por vezes, não se saber muito bem o que dizer e o que fazer”. Para o antigo vereador, “o problema começa quando não se sabe exercer o poder em grupo. Quando não se possui cultura democrática, de partilha de diferenças, as coisas não funcionam”, refere.
E a propalada independência, é para aqui chamada? “O problema do independente que detém o poder é deixar confundir o seu projeto pessoal com o projeto político. Quando não há um núcleo, uma comissão política, onde as coisas são discutidas e escrutinadas, quando o próprio líder é o projeto, corre-se o risco de o independente se transformar num caudilho. Às vezes, quer-se ser tão independente que não se fala com ninguém. E esse é o grande perigo”, alerta Correia Fernandes, admitindo que “a falta de cultura de diálogo e de trabalho em grupo possa dar azo a que, no Porto, o projeto pessoal se comece a confundir, ou até a ultrapassar, o projeto de cidade”.
Pizarro: “Lealdade extrema”
O desenlace verificado na última semana estava, pois, escrito.
E vinha de longe. “O PS respirou de alívio”, crê Correia Fernandes, mesmo não sendo militante nem tendo participado em reuniões. “O sentimento que me chega é de alguma libertação. E faz sentido. O desconforto nas bases e nas estruturas do PS era grande, há muito tempo. Havia uma panela de pressão. As pessoas têm o direito a querer lutar pelas suas bandeiras, tomar parte nas decisões, saber se podem gritar PS ou não. No início, havia apatia, mas depois o receio passou a medo. Havia a ideia de uma certa paralisia em relação às decisões que se iriam tomar para futuro”, descreve o “número dois” de Pizarro à Câmara do Porto em 2013.
Acusado de pensar mais em lugares do que na cidade, o PS rejeitou as críticas com origem no gabinete e no movimento de Rui Moreira. O próprio presidente acusou os dirigentes nacionais do partido de só se interessarem pela “mercearia”, mas Correia Fernandes reage: “Percebo que haja coisas que tenham de ser tratadas com uma certa reserva”, afirma, referindo-se à constituição de listas e à preparação das candidaturas, mas, adverte, “as pessoas não são boys. Têm de ser tratadas com a dignidade que merecem, pois é nelas que se pensa quando queremos executar programas ou projetos. Isto tem de ser tratado de uma forma séria”. A pergunta impunha-se: não terão então os socialistas, em particular Manuel Pizarro, dado demasiado o flanco?
“O PS deu o flanco que considerou que devia dar. É claro que depois de terminado, é muito fácil fazer a crónica do jogo e dizer que o PS, se calhar, exagerou. Mas uma coisa garanto: Manuel Pizarro foi de uma lealdade extrema com o presidente. A toda a prova! É praticamente impossível encontrar no executivo quem tenha sido tão leal a Rui Moreira. Pizarro foi-o até ao limite. E provavelmente até ultrapassou esse limite”, admite.
Quanto à postura da direção nacional dos socialistas, nada a dizer: “O PS reagiu como deve ser. Deixou que este projeto de poder local corresse com normalidade, sem interferir, mas não podia assistir a isto. Quando as coisas chegaram a este ponto, tinha mesmo de agir como agiu”, defende o arquiteto, que, apesar de tudo, só não sai deste mandato desiludido com a política por já estar…vacinado. “Nunca saio desiludido porque nunca me iludo com a política, nunca fui ingénuo a esse ponto. A política é feita de coisas boas e más, embora, neste caso, se tenham passado demasiadas coisas más”, reconhece, insistindo: “Houve falta de cultura de trabalho em equipa, em grupo, coisas que os arquitetos sabem fazer, mas, pelos vistos, não é um hábito para algumas pessoas. Como se sabe, o executivo nunca foi um grupo homogéneo, havia vários grupos, de diferentes origens, e não houve da parte de quem lidera o executivo a vontade de fazer com que isto fosse uma equipa e funcionasse”.
E agora, pergunta-se, acaba aqui a intervenção cívica, um percurso político? Correia Fernandes nunca se há de habituar a deixar projetos a meio. “Alguns deles”, explica, “não os podia nem devia concluir, pois têm o seu tempo de maturação”. Nesse sentido, “fica um sabor amargo. E corre-se o risco de perder todo o trabalho que foi feito”, pensa. Contudo, “se o próximo desafio do PS for manter este trabalho, estou disponível para colaborar. E não é necessário fazê-lo enquanto vereador, até porque limita muito a disponibilidade para lutar por uma determinada causa. Posso fazê-lo noutros âmbitos, pela cidade em que acredito. Nunca fugi à participação cívica e assim continuará a ser”.