Num domingo de manhã, algures entre abril e junho de 2016, um grupo de militares da Guarda Nacional Republicana, destacados para a missão Poseidon, preparava-se para iniciar mais um dia de trabalho. Desta vez, iam ao hospital visitar um migrante que tinha sido resgatado no dia anterior, perto da ilha de Chios, na Grécia, e que precisava de apoio médico.
Lá, encontraram uma menina que não deveria ter mais de três anos de idade. Órfã da mãe, falecida há poucos meses durante a guerra síria, estava com o pai, hospitalizado em estado grave. A possibilidade iminente de ver aquela menina ficar órfã de pai, num país que não era o seu, numa idade tão tenra, perturbou-os. Para tentar distraí-la do ambiente que a rodeava, os militares saíram para comprar comida e brinquedos, numa das poucas lojas abertas em Chios, a um domingo. Com aquilo que recebeu, a menina conseguiu montar um pequeno quarto, ali mesmo, no hospital.
Estes militares chegaram da missão Poseidon 2016 há meio ano, e com eles trouxeram muitas histórias semelhantes. Nenhuma delas envolve o passado ou o futuro dos migrantes, pois, antes de partirem para missão, já levam a matéria bem estudada: dizem que é importante criarem uma barreira psicológica, de forma a que se consigam concentrar naquilo que é realmente importante no teatro de operações.
A história acima foi contada pelo Sargento Hélder Poeiras, que recordou o sorriso e a felicidade da criança de três anos como uma das recompensas mais gratificantes que teve durante os três meses e meio que esteve em missão no Centro de Triagem e Acolhimento da ilha Chios.
Tanto nesta situação, como noutras, Hélder admite que foi complicado estabelecer uma relação de confiança com os migrantes, particularmente com as crianças. “No Centro de Acolhimento, havia um grupo de crianças que brincava com uma bola e por acaso, ao chutarem a bola, a bola veio ter comigo. Quando a recebi, eles ficaram muito assustados, talvez porque eu tinha a boina metida. Meti a boina no bolso, olhei para eles, sorri e chutei de volta”, relembra. “Para aquelas crianças, estar a jogar à bola com um adulto que ainda por cima usava farda era uma coisa que, no país deles, era impensável.”
António Vieira, outro Sargento enviado pela GNR nesta missão, percebeu rapidamente que a farda que tinha vestida poderia ser uma barreira de comunicação com os migrantes. Durante os resgastes que realizou enquanto capitão de embarcação de uma lancha de vigilância e interseção, António recorda que muitas vezes os migrantes lhes perguntavam se eles lhes iriam bater. Para muitos, aquele era o primeiro contacto que tinham com cidadãos europeus e não sabiam o que esperar.
Logo no primeiro resgate que liderou, na zona da ilha de Kos, António encontrou uma situação complicada: uma embarcação que estava prestes a naufragar. O posicionamento da embarcação impedia-o de fazer algumas das manobras necessárias para que a sua lancha ficasse suficientemente perto a ponto de os migrantes serem resgatados em segurança. De Pireus, onde estava localizado o Centro de Coordenação Internacional da FRONTEX (agência que gere a cooperação operacional nas fronteiras externas da União Europeia), recebeu a informação de que teria de ser ele a tomar a decisão sobre o que se seguiria.
É nesse momento que o peso da responsabilidade aumenta. “E os migrantes jogam com todas as moedas que têm para os salvarmos. Põem crianças no ar, tudo…”, conta. Por duas vezes, aquela embarcação que viajava com um número de passageiros consideravelmente acima do normal, embicou dentro de água, colocando a vida dos migrantes em perigo.
Ao assistir a situações como esta, António não conseguia fugir à questão: “o que é que leva um pai a pegar na família, tirá-la do seu país, percorrer imensos quilómetros, sem condições, pô-los à mercê de traficantes ou de quem faz o transporte em embarcações quase, quase já a afundar, para atravessar o mar revolto, colocando a vida de toda a gente em risco?” Para esta pergunta, tanto ele como Hélder Poeiras só encontram uma resposta: desespero.
Se em mar e nos centros de acolhimento se sentia este desespero, em Pireus, local onde todas estas operações eram comandadas, o ambiente era outro. Ana Lopes, a Capitão que liderou a missão Poseidon entre abril e junho, confessa que a tensão que lá se vivia foi um dos aspetos mais delicados que enfrentou. “Os próprios gregos sentiam dificuldade em lidar com esta crise humanitária no dia-a-dia”, conta. “Tivemos que nos adaptar e perceber que a nossa atuação – a nossa postura, conduta, profissionalismo – era fundamental para não criar outro tipo de tensões. A parte mais difícil foi essa, foi fazê-los confiar em nós”.
Ana Lopes não consegue esconder o orgulho quando relembra, mentalmente, os extraordinários números conseguidos pela GNR nesta missão. No total, foram resgatados 642 migrantes, em mais de 10 mil milhas náuticas e quase 20 mil quilómetros terrestres percorridos, e não houve uma única morte. “Fiquei muito orgulhosa dos militares, que estiveram muito bem. O meu sucesso é o sucesso deles, é o sucesso de toda a operação”, conta. Ana Lopes teve sorte, mas, segundo dados da Organização Internacional para as Migrações, entre janeiro e julho do ano passado, morreram mais de quatro mil migrantes, a maior parte deles no Mediterrâneo.
Durante os três meses de missão, Ana Lopes coordenou as operações dos seus militares que estavam nas ilhas de Kos e Chios, em conjunto com os oficiais de ligação dos outros países que participaram na missão Poseidon de 2016. Ana foi a primeira mulher a comandar uma missão internacional da GNR, mas diz que não sentiu a pressão da liderança, até porque, cá, em Portugal, é esse o seu trabalho. No entanto, confessa que o facto de a comunicação social ter colocado os holofotes sobre ela, por ser a primeira mulher, a obrigou a uma maior responsabilidade. “A primeira mulher não pode falhar”, afirma. No final, a Capitão acredita que tudo se resume à personalidade e às características pessoais de cada um, independentemente do sexo.
Não é difícil para Ana dizer o que mais lhe custou durante a missão. “Foi, sem dúvida, estar longe da minha filha”. E, se Ana não tinha contacto com as crianças migrantes, para os dois militares, Hélder Poeiras e António Vieira, vê-las naquelas condições foi, enquanto pais, muito complicado. Quando em abril partiu para Chios, Hélder tinha sido pai, pela segunda vez, há quatro meses. Por isso, é fácil perceber porque é que, para ele, os resgates de bebés e, em particular, o salvamento de um bebé de apenas dois meses, se tornaram situações tão marcantes e memoráveis.
Na memória de António, também ele pai, fica a imagem de duas crianças de mãos dadas numa embarcação de migrantes, no meio do mar, com uma serenidade própria de quem não tem, ainda, consciência do perigo e da situação que vive. Depois de as resgatar e deixar em segurança em terra, António teve de voltar para o mar. Quando saía, olhou para trás e uma das crianças, já ao colo do pai, acenou-lhe muito timidamente. O militar, numa atitude que a criança muito provavelmente não associaria a uma figura de autoridade, devolveu-lhe vigorosamente o aceno, deixando-a com um sorrido estampado no rosto.
(Artigo escrito por Sara Soares)