Com a revisão constitucional de 1982 os poderes do presidente foram reduzidos. Ainda é caracterizador chamar-lhe um sistema semipresidencial?
O presidente entre 1976 e 1982 era também presidente do Conselho de Revolução. Ao desaparecer o Conselho de Revolução, os poderes do presidente foram reduzidos. No plano das relações com o Parlamento e com o Governo tentou-se um equilíbrio. Entre 1976-82, o Presidente da República para dissolver a Assembleia carecia de parecer favorável do Conselho de Revolução e a partir de 1982 passou a poder dissolver livremente a Assembleia da República, apesar de alguns condicionamentos: não a pode dissolver se tiver sido declarado o Estado de Sítio, nos primeiros seis meses da legislatura e nos últimos seis do seu mandato. Em contrapartida, antes de 1982, o Governo era também politicamente responsável perante o Presidente da República e o Presidente poderia demiti-lo com total liberdade, embora isso só tenha acontecido em 1978, quando foi demitido Mário Soares e o segundo governo constitucional. Agora, o Governo já não é politicamente responsável perante o Presidente da República mas o Presidente pode demiti-lo quando entender, se o regular funcionamento das instituições o exigir. Esta norma é entendida como uma medida muito lata, que permite ao Presidente da República discricionariamente demitir um governo. Mas não é.
Não é o seu entendimento?
Não, não é. Eu, num comentário à Constituição, já tipifiquei os casos em que o regular funcionamento das instituições estaria em causa.
Quais são, no seu entender?
Aqueles em que o Governo não cumpre obrigações constitucionais. Se o Governo não submete o Programa de Governo à AR; não submete o Orçamento em tempo útil; não propõe a renovação dos titulares dos altos cargos do Estado, como o de Chefe do Estado Maior das Forças Armadas; quando o Governo se abstém de fazer aquilo a que está constitucionalmente obrigado, ou quando o Governo entra em rutura institucional com o Presidente, não o informando da situação política do País.
A dissolução decidida por Jorge Sampaio estava entre esses casos?
Os casos que acabei de elencar eram os de demissão do Governo. A dissolução não tem estes condicionamentos. Só existe um condicionamento de facto: se o Presidente dissolve e após as eleições se mantém a maioria que havia antes, o PR fica numa situação política muito difícil. O Presidente antes de dissolver tem de avaliar bem a situação política. Em 1983, Ramalho Eanes dissolveu. Em 1987, foi o Presidente Mário Soares. Em 2004, o Presidente Jorge Sampaio. Em 2011, o Presidente Cavaco Silva. E sempre se verificou que as maiorias mudaram: os presidentes não se enganaram.
Alguns autores notam que o poder de veto do senhor Presidente da República…
Tire o senhor. Diga Presidente da República. É um resquício monárquico. A Constituição não fala em Chefe de Estado e, modéstia á parte, por influência minha. Assim como a expressão o Supremo Magistrado da Nação, são expressões do outro regime. É apenas um dos órgãos de soberania, tem tanta legitimidade como a Assembleia da República. Não é superior aos outros.
O poder de veto e o de pedir a fiscalização da Constitucionalidade é exercido com mais frequência quando a cor política da maioria que suporta o governo é diferente da do Presidente?
Verificou-se ainda agora na Presidência de Cavaco Silva que o presidente pediu várias vezes a verificação da constitucionalidade de normas que foram aprovadas por uma maioria afeta com ele.
A pedido de Mário Soares, Gomes Canotilho e Vital Moreira produziram no início dos anos 90 um parecer sobre os poderes do Presidente em matéria de Política Externa e Defesa. Seria necessário, segundo eles, alguma clarificação, na Constituição, dos poderes do PR nesses domínios. É também esse o seu entendimento?
Acho que a política externa e a política de defesa têm de ser conduzidas pelo Governo. O Presidente tem aí o papel de receber informação, de acompanhar e de dar a sua opinião. E também, através de mensagens à AR (que é um poder que os Presidentes têm exercido pouco). Relativamente à política externa falta é uma referência específica à Europa. Hoje, com a integração europeia, devia haver uma norma específica que dissesse que o Presidente devia ser constantemente informado sobre a política europeia do Estado. Eventualmente, a eleição do comissário português na Comissão devia ser feita com base num acordo entre o Presidente e o Governo.
Nomeação pelo Presidente por proposta do Governo?
Sim, poderia ser assim. No que toca às Forças Armadas, há uma prática constitucional, que foi inaugurada pelo Presidente Jorge Sampaio, e que se pode dizer hoje que está consagrada, que é a de o emprego de forças armadas no estrangeiro depender do consentimento do Presidente da República. E isto, se ficasse inscrito na Constituição, talvez fosse vantajoso. Mesmo que sejam missões de paz, devia haver aí um consentimento formal do Presidente da República.
Além dessas, há outras sugestões que no seu entender sejam importantes para esclarecer os poderes do Presidente da República?
Só há um ponto, que tem a ver com a fiscalização da Constitucionalidade. O artigo 279 da Constituição prevê que quando o Presidente da República pede a fiscalização preventiva de um diploma ao Tribunal Constitucional, se o TC se pronuncia pela inconstitucionalidade, a Assembleia da República pode confirmar o diploma por maioria de 2/3. O Presidente pode (não é obrigado) promulgar. Esta norma nunca foi promulgada. Pode-se dizer que há um desuso, uma caducidade. Tirar isto da Constituição seria bom, porque não se entende que depois do TC ter dito que certa norma é inconstitucional, o Parlamento venha a confirmá-la por maioria de 2/3.
Os presidentes ficam condicionados na sua ação por causa da reeleição?
A minha ideia é que o mandato do PR devia ser apenas um. Não deveria ser possível a reeleição no mandato seguinte. E com a mesma duração, cinco anos (no nosso tempo cinco anos é muito…), para dar uma maior independência ao Presidente. Só passados cinco anos se poderia recandidatar.
Então os presidentes da República nos primeiros mandatos foram pouco independentes?
Eventualmente. Não me lembro de nenhum caso em concreto.
A decisão de Cavaco Silva, em 2010, a meses da sua reeleição, de não vetar o diploma que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, foi um desses casos?
Porventura. Admito que sim.
Alguns autores notam que a influência de Cavaco Silva sobre a legislação, seja por via do veto ou dos pedidos de verificação de inconstitucionalidade, ocorrem sobretudo sobre temas civilizacionais (paridade, divórcio, uniões de facto). É também esse o seu entendimento?
Acho que não. Não estou a ver diferenças, aí, em relação a outros presidentes.
Cavaco Silva considerou desejável rever alguns aspetos da Constituição no que respeita aos poderes do Presidente (por exemplo, nomeação do Governador do Banco de Portugal, juízes do Tribunal Constitucional, membros do Conselho de Defesa Nacional). Concorda?
Não vejo grande necessidade disso. De resto, no caso do Governador do Banco de Portugal, está integrado no sistema bancário europeu. Que o Governo deve informar o Presidente, claro. Admito mas não ia tão longe.
Alguns argumentam que o sistema político português de pesos e medidas pode conduzir à paralisia. Esta crítica tem sentido?
Nunca houve paralisia. O que não gostaria nada era de um sistema como da 5ª república francesa, com um presidente a apagar completamente o primeiro-ministro. A Constituição faz bem em separar as eleições (legislativas e presidenciais) e as candidaturas e também, ao contrário da França, em que chefes de partido têm sido candidatos à presidência da república, em Portugal isso nunca se verificou. Os candidatos à presidência, mesmo que venham dos partidos, não são chefes de partido.
Durante a nossa conversa opôs-se ao tratamento do PR como Chefe de Estado ou como Supremo Magistrado da Nação. Porquê?
Ficaram conotadas com o regime anterior. Têm um sabor monárquico. Num regime democrático, os dois órgãos baseados no sufrágio universal têm a mesma dignidade. Não há supremacia de um em relação a outros. Lembro-me muito bem de se referir o Américo Thomaz como Supremo Magistrado da Nação…
É uma objeção hermenêutica?
Sim, apenas nesse sentido.