Enquanto o País assistia, pela primeira vez, à detenção de um ex-primeiro-ministro, o advogado do inédito arguido conseguiu dar um salto ao casamento da filha de um grande amigo, no sábado, 22. O episódio serve que nem uma luva para caracterizar João Araújo, 65 anos, o advogado de que todos falam, desde que José Sócrates foi detido por suspeita de corrupção. Com 40 anos de profissão, descontraído e acutilante, não é homem de se amedrontar com casos mediáticos. Ou não tivesse sido um dos mais notados juristas do famoso processo FP-25 de Abril, que decorreu entre 1985 e 1987.
Passadas décadas, João Nabais mantém essa defesa de João Araújo como referência: “As suas alegações finais, depois de quase dois anos de audiência, continuam a ser para mim, em mais de 30 anos de exercício da profissão, a mais brilhante peça oratória de um advogado num julgamento. Guardo a melhor das recordações das suas intervenções vibrantes, em audiência, e do desassombro com que dizia coisas que, na boca de outros, poderiam parecer manifestações de loucura.”
Os dois advogados conheceram-se na Faculdade de Direito de Lisboa e João Nabais recorda “o humor absolutamente genial e aquele ar de quem se está nas tintas para o que os outros possam pensar dele”.
Isso mesmo transpareceu nos comentários que foi fazendo à porta do Tribunal Central de Instrução Criminal, onde José Sócrates foi ouvido. Expressões como “azarucho”, a propósito da escassa informação dada à comunicação social ou justificações como “fui ver as montras”, quando questionado em relação o seu papel no processo, chamaram a atenção sobre a figura forte, de andar vagaroso e cigarro sempre na mão.
Pai juiz e mulher assessora
A perceção de incapacidade para lidar com a pressão mediática é especialmente irónica vinda de um homem casado com uma especialista em assessoria de comunicação, Alda Telles, que trabalhou, entre outras, na candidatura de José Braz da Silva à presidência do Sporting, em 2011.
Fonte próxima da família garantiu à VISÃO que a mulher não lhe consegue “fazer media training”. Talvez porque, por estes dias, só saiba por onde anda João Araújo quando liga a televisão.
Pai de cinco filhos um de Alda Telles e avô duas vezes, João Araújo é conhecido por trabalhar sozinho, porque, defende, “o Direito é uma área solitária”. Fumador “compulsivo”, trabalha até de madrugada e “dorme pouco”.
Filho de um goês, João Araújo nasceu em Angola, onde o pai era juiz. Apesar da paixão pela advocacia, interrompeu a atividade durante dez anos, para trabalhar na Caixa Central de Crédito Agrícola, onde elaborou o primeiro regime de crédito agrícola mútuo, depois do 25 de Abril. Mário Matias, antigo dirigente da Federação Nacional das Caixas de Crédito Agrícola Mútuo, trabalhou com o advogado de Sócrates na instituição financeira, em Lisboa. “Sem o João Araújo nunca teria havido Caixa de Crédito Agrícola”, refere este ex-dirigente.
“Foi o responsável por toda a produção legislativa sobre a instituição, até 1991, tudo obra dele. É das pessoas mais habilitadas e inteligentes que conheço, aprendi muito com o seu caráter e personalidade”, assinala.
A relação vem desde 1980 e, da convivência diária, durante 12 anos, na Caixa Central, ficou a amizade. “No início de cada ano, ele almoça sempre comigo em Leiria.” Sportinguista “ferrenho”, bom garfo, mas alérgico a marisco, João Araújo é preponderante a uma mesa. Por todas as razões.
“É um privilégio estar com ele. Tem um sentido de humor fantástico, como já se viu.
Contagia qualquer pessoa.” Mário Matias foi outro dos que não se espantaram quando viu o amigo a defender José Sócrates. “Há amizade entre eles, talvez há uns dez anos. Não quero pôr-me a adivinhar porque não é costume falarmos de política, mas creio que se conheceram pelo facto de os filhos conviverem na escola.
A partir daí, foram mantendo contacto”, refere. O ex-dirigente da Caixa Agrícola também confirma a faceta de “homem de esquerda” de João Araújo, embora com antecedentes mais radicais. “Tenho ideia de que ele andou próximo do MRPP, a seguir ao 25 de Abril, pois chegou a ter alguma proximidade com o Durão Barroso”, refere.
Veia esquerdista
Artur Marques, advogado de Braga que ficou famoso por ter defendido Fátima Felgueiras, conheceu-o no processo FUP/FP 25, nos anos 80. João Araújo defendia dois arguidos, acusados de alegados crimes de sangue, cometidos no âmbito das atividades da organização.
“Fez das alegações mais brilhantes que ouvi na vida. Quem pensa que ele é um advogado descoberto numa esquina ou num vão de escada, engana-se redondamente”, diz o colega, que nutre pelo advogado de Sócrates “profunda admiração”.
Conhecedor da “costela socialista” do amigo, Artur Marques também não se surpreendeu quando tomou conhecimento de que João Araújo ia defender Sócrates na sequência da denominada Operação Marquês.
“Sabia há muitos meses que ele era advogado da mãe do Sócrates”, refere, acrescentando: “A relação com o Sócrates já vem de há muito tempo. Pelo que sei, o João já era consultado com frequência pelo antigo primeiro-ministro em diversas situações. Para mim, ele sempre foi o advogado do Sócrates.” Com perfil “discreto, pouco dado a visibilidade e a contactos com os jornalistas”, João Araújo é, segundo o colega, “um advogado fora de série”, com vasta experiência na área sindical, no setor bancário e na área comercial. “Conheço a ligação dele à Caixa Central do Crédito Agrícola, onde fez um excelente trabalho, ao que consta. Ele chegou a ser das figuras mais importantes da instituição”, assinala Artur Marques.
No Fórum Referendar a República, realizado a 3 de julho do ano passado, em Vila Real de Santo António, João Araújo deu azo à sua veia mais esquerdista, num debate a propósito do sobre-endividamento das famílias e das empresas. “A economia deixou de suportar e sustentar dignamente os povos.
O grande capital especulativo capturou as economias de todo o mundo”, afirmou.
Refletindo, com sarcasmo, sobre a “crise que nos está a devorar, que nos está a desgraçar e a encher os bolsos dos advogados e psiquiatras”, o advogado de Sócrates considerou um erro falar-se do conceito de “dívida soberana”, nos tempos que correm. “Já se percebeu que os Estados deixaram de ser soberanos quanto à sua própria dívida. Estão também eles capturados.” Partindo do princípio de que “os povos estão num beco sem saída”, João Araújo traçou um breve retrato da situação portuguesa. “Ao longo destes últimos anos, o povo português foi chamado a pagar o ajustamento. Tiraram-lhe já cerca de 30% do seu rendimento, dos seus bens. E esse dinheiro foi não se sabe para onde. Esse dinheiro desapareceu da economia.”
Dinheiro será certamente o tema central deste novo processo que aceitou defender.