Ao chegar à reforma, João Rosa Lã, ?65 anos, diplomata há 30, tinha “25 a 40 caixotes” cheios de papelada recolhida em Lisboa ?(no Ministério dos Negócios Estrangeiros e no gabinete do primeiro-ministro Cavaco Silva, de quem foi assessor), na OSCE (Genebra), em Marrocos (onde esteve duas vezes), Venezuela, Bruxelas, Washington, Guiné-Bissau, Haia, Viena, Madrid e Paris. Passou um ano a limpar e catalogar fotografias, jornais, cartões, listas de almoços e jantares e a ler livros de memórias. Só depois se lançou na escrita do seu livro, Do outro lado das coisas – (In)confidências diplomáticas. Queria, com aquelas “mais de mil páginas”, avaliar “o que tinha sido a minha vida, ver “se valeu a pena”, justificar, à família e amigos, onde tinha ocupado seu tempo, e mostrar ao mundo como a “carreira diplomática exige muitos sacrifícios”.
O resultado são 614 páginas onde conta 17 histórias, vividas a partir de outro ângulo, menos conhecido. Fala, sem pudor, de Jacques Chirac, Boris Yeltsin e Helmut Kohl, relata várias “picardias” entre o Presidente Soares e o primeiro-ministro Cavaco Silva, as descobertas que fez na Cifra e muitas outras, que o fizeram perder amigos. Escolhemos quatro. E transmitimos a promessa de outro livro do embaixador, de contos, baseados em histórias reais: desde acontecimentos sobrenaturais numa visita à floresta, na Grã-Bretanha, a episódios, como o que se segue: “Mobutu tinha sido criado do cônsul em Kinshasa, antes do 25 de abril. Quando Mobutu foi a Presidente, o cônsul não podia ficar. Foi para Casablanca até que foi chamado pelo MFA. Em vez de ser preso ou dispensado, disseram-lhe que os Estados Unidos estavam a pensar invadir Portugal e Espanha também. Pediram-lhe para ir para Cádis, alugar o último andar e se pôr de binóculos a ver se havia excesso de movimentos”, antecipou Rosa Lã à VISÃO.
ANGOLA 1974 – Marcello negoceia independência?
Colocado em Caracas, Rosa Lã privava com Fernando Santos e Castro, que havia sido último governador-geral de Angola e era, então representante dos interesses petrolíferos de Manuel Bullosa. Certo dia, Santos e Castro contou ao diplomata que “nos primeiros dias de 1974”, fora “chamado a Lisboa, secretamente”. Passou uma tarde com Marcello Caetano, num “carro privado, sem qualquer escolta ou segurança”, a fazer “repetidamente, a ‘volta dos tristes’, entre Lisboa, Cascais e Sintra”. Perante o “cenário muito negro da situação do País e da política ultramarina” o presidente do Conselho pedia a Santos e Castro para “tomar todas as providências para que fosse preparada uma declaração unilateral de independência do território”. Santos e Castro ficaria “interinamente à frente do novo País, com um governo presidido por uma personalidade negra, muito provavelmente Jonas Savimbi”. Nesse cenário, “o governo português não aceitaria, pelo menos de imediato, nem reconheceria a Declaração de Independência e retiraria todas as suas forças do terreno”.
Segundo o ex-governador-geral, “Marcello Caetano não teria respeitado a condição de confidencialidade absoluta”. E “daí até o partido comunista tomar conhecimento do plano, terá sido um ápice, razão pela qual este teria decidido desencadear o golpe militar mais cedo do que estaria planeado, pois o objetivo principal de Moscovo seria Angola e não Portugal.”
Tempos depois, Rosa Lã soube, por Manuel Dias de Oliveira, que “semanas antes do 25 de abril, o ministro do Ultramar, Baltazar Rebelo de Sousa, se deslocara, numa visita secreta, a Moçambique” com o objetivo de “avaliar da possibilidade do sucesso de uma urgente declaração unilateral de independência do território”.
Também “[José Manuel] Villas Boas [diplomata e autor do livro Caderno de Memórias” diz que foi encarregado [pelo então MNE, Rui Patrício] de fazer a paz com o PAIGC”. Fica o registo das semelhanças.
CEE, 1985 – A guerra das assinaturas
Os sete anos de negociações para a adesão de Portugal à CEE terminaram às 5 da manhã de dia 28 de março de 1985. Ernâni Lopes (que, apesar de ter sido nomeado ministro das Finanças, continuava a liderar o processo) reuniu a sua equipa. “Acabaram por muito tempo, espero que para sempre, as crises financeiras e o recurso ao FMI!” disse, “comovidíssimo”. Aquela era, no seu entender, “uma das melhores heranças” que podia deixar aos seus sucessores no ministério das Finanças.
Seguir-se-ia a assinatura do Tratado, a 12 de junho. “Era da tradição que as pessoas que assinavam os tratados fossem o primeiro-?-ministro [PM], o ministro dos Negócios Estrangeiros [MNE] e o embaixador junto das Comunidades.” Mas “o vice-primeiro–ministro [VPM], prof. Rui Machete, por uma questão de salvaguarda dos equilíbrios políticos [dentro da coligação], pretendia participar em paralelo com o dr. Mário Soares”. De “inteira justiça” seria, segundo Rosa Lã, que Ernâni Lopes (que negociou todo o processo de adesão), assinasse também o Tratado. Isto “já para não falar do presidente da Comissão da Integração Europeia” António Marta, que tinha tido um “decisivo papel” nas negociações.
Era gente a mais, para os três espaços reservados para as assinaturas. Mesmo com o pedido de exceção, para ter quatro no documento, alguém teria de ficar de fora. Foi com “espanto” que receberam “de Lisboa os nomes indicados para assinarem os tratados”: Mário Soares (PM), Jaime Gama (já que é o MNE quem obriga internacionalmente o País), Ernâni Lopes e… Rui Machete. O embaixador Luís Figueira (que, segundo Rosa Lã, “não podia deixar de assinar, como era dos usos e costumes protocolares internacionais e decorria da própria dignidade das funções do máximo representante do Estado na Organização!”) tinha ficado de fora. No regresso a Bruxelas, dois dias depois da cerimónia de adesão, o embaixador pediu a demissão do cargo.
CHERNOBYL, 1986 ?- Radioatividade ‘À la carte’
26 de abril de 1986. Um dos quatro reatores da central nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, explodiu, lançando sobre a Europa uma enorme nuvem radioativa. Para proteger os seus cidadãos da contaminação alimentar, “cada país recorreu a derrogações excecionais e temporárias” da livre circulação de bens.
Temendo a eternização da “suspensão” do mercado único – “um dos principais fundamentos da construção europeia” – foi decidido resolver a questão até 31 de maio. Os técnicos nacionais e a Comissão não se entendiam. No fim de maio, o assunto subiu ao COREPER II (Comité de Representante Permanentes, onde os embaixadores discutem os assuntos políticos e mais delicados), onde João Rosa Lã tinha assento, em substituição do embaixador.
À falta de regras comunitárias sobre a matéria, aplicavam-se as normas internacionais, “Cada produto para consumo humano não podia apresentar índices de radioatividade (…) superiores a 325” Becquereis (bq). Era este valor que os Estados-Membros queriam alterar, para poder escoar os seus produtos. ?A Grécia queria 2000bq, a Alemanha 1500bq, a França 1000bq e a Espanha 750bq. Portugal, que não tinha sido afetado, defendia a manutenção dos 325bq. A 30 de maio, após 24 horas de negociações e o empenho pessoal de Jacques Delors (então presidente da Comissão), fixou-se um limite de 600bq de radioatividade para os produtos de consumo humano. “Não entraram na definição deste limite quaisquer considerações de defesa da saúde pública, mas exclusivamente razões políticas de equilíbrio de poder”, conclui Rosa Lã.
ÁUSTRIA, 2000 – A ofensa portuguesa
João Rosa Lã foi colocado numa Viena governada, há mais de 30 anos, por uma coligação entre democratas-cristãos (ÖVP) e socialistas (SPÖ). Quatro meses depois, o “FPO, da extrema-direita, com algumas referências nazis, liderado por Jörg Haider” vence as eleições.
A maioria ainda pertencia à coligação, mas em janeiro de 2000 os parceiros separam-se e o ÖVP propõe uma coligação a Haider. A UE (sob a Presidência portuguesa) não tardou a reagir, impondo duras sanções políticas. O que mais feriu os austríacos, conta agora Rosa Lã, “foi o facto de, por uma vez, terem sido postos perante a constatação de que o seu país não era, afinal considerado, nem observado, como o centro da civilização e da cultura da Europa. Como me perguntava, perplexo, um interlocutor austríaco: ‘com que legitimidade poderia um país como Portugal, que, na verdade, já nem Europa se poderia considerar, pois estava muito mais perto de Marrocos, (…) atrever-se a julgar o comportamento da Áustria, berço cultural europeu’?”
Nada, nos tratados, previa este tipo de reação. “O governo emanava de eleições democráticas”, escreve. “Juridicamente, foi uma aberração, politicamente um disparate”, diz. ?”A Europa esteve à beira da rotura”, acredita.