As posições assumidas em defesa da classe profissional que representa, como o apoio a greves dos médicos, têm levado alguns detratores a atribuir-lhe um discurso próprio de um sindicalista e não de um bastonário de uma ordem profissional. Até o acusaram de proximidade em relação ao PCP. Mas há também quem o considere o melhor e mais interventivo bastonário dos médicos das últimas décadas.
À frente da Ordem dos Médicos (OM) desde 2010, José Manuel Silva considera que a sua atuação é em prol da defesa do que diz ser o melhor Serviço Nacional de Saúde (SNS) do mundo.
A conversa ultrapassou os limites da área da saúde. Quando já tinha passado uma hora e meia, impôs-se a pergunta se ele tenciona dedicar-se à política depois de concluir o seu segundo mandato à frente da OM, dentro de ano e meio. “Nunca pensei nisso. Mas acredito que a sociedade civil tem de se mobilizar para mudar o País”, respondeu com muitas críticas ao modelo político que temos e algumas propostas. Aqui fica o registo dessa conversa.
Um estudo da Gulbenkian diz que em Portugal se envelhece sem saúde. Os nossos idosos são mais doentes que os de outros países. Como se explica isso?
É uma situação que tem a ver com as circunstâncias sociais. Essas pessoas nasceram numa época difícil – antes, durante e pouco depois da Segunda Guerra Mundial. Muitas não sabem ler nem escrever, viveram e cresceram em condições muito adversas e passaram fome, o que fragilizou a sua saúde. São de um nível social, cultural e económico baixo, vivem em condições deficientes, têm pouco apoio social e, uma vez envelhecidos, sofrem simultaneamente de várias doenças e contraem infeções bacterianas com facilidade.
Isso explica a prescrição de antibióticos acima da média em Portugal?
É um dos fatores. Como a resposta dos cuidados de saúde primários é insuficiente, numa situação de gripe e por precaução o médico receita um antibiótico, por não ter possibilidade de acompanhar devidamente o doente. Quando se diz que se receitam antibióticos a mais, não se analisam as razões sociais e lança-se um estigma sobre os médicos.
Recentemente, falou da ameaça de se perderem conquistas do SNS. Quais?
As características constitucionais que fazem dele um serviço de acesso universal, geral e tendencialmente gratuito. Começam a aparecer dificuldades de acessibilidade e há problemas de qualidade. A OM já denunciou várias situações: faltas recorrentes de material clínico, blocos operatórios que não trabalham por avaria do ar condicionado, por falta de manutenção dos aparelhos ou da sua substituição quando estão obsoletos. Há várias manifestações da perda de qualidade do SNS.
A perda de qualidade deve-se às dificuldades financeiras?
Não só. É também pela estratégia política de um governo ultraliberal que não é crente do SNS. O SNS já não é tendencialmente gratuito. As taxas moderadoras são autênticos copagamentos para a camada da população imediatamente acima dos que estão isentos delas. Um estudo da DECO denuncia que 12% das pessoas já não vão às urgências por falta de dinheiro. Para elas, o SNS já deixou de respeitar a Constituição, quanto aos princípios da gratuitidade tendencial e da acessibilidade. Outro exemplo: os portugueses já pagam do seu bolso mais de um terço da despesa em saúde, muito mais do que os britânicos, franceses ou alemães.
Ainda assim, a despesa pública em saúde é elevadíssima.
Há muita demagogia quando se diz isso. Os últimos dados da OCDE, já com dois anos, dão conta de uma despesa em saúde pública e privada equivalente a 9,5% do Produto Interno Bruto (PIB) muito próxima da média dessa organização, 9,3 por cento. Com os novos cortes, já deve ser igual ou mesmo inferior. Mas o que se deve comparar não é a percentagem do PIB, mas a despesa per capita. E aí Portugal, com 2 457 dólares [paridades de poder de compra] por habitante, fica muito abaixo da média da OCDE, que é de 3 484. Os países com os quais nos querem comparar, e cujos modelos querem importar, gastam o dobro ou mais [Alemanha: 4811; Estados Unidos: 8745; Holanda: 5099; Reino Unido: 3289].
Mas o SNS tem problemas ?de sustentabilidade.
O SNS não tem um problema de sustentabilidade, porque sendo de alta qualidade é barato para o Estado. Portugal tem… já teve… o melhor sistema se saúde do mundo, na relação entre qualidade, acessibilidade e custo per capita. Em 35 anos, permitiu atingir alguns dos melhores indicadores à escala planetária. Quem discute a sustentabilidade do SNS são as pessoas que o querem destruir. Não é aceitável que seja posto em causa, quando sabemos que isso não resolve o nosso problema. O que temos é um problema de sustentabilidade do País. Neste momento, Portugal não é sustentável.
Quer precisar um pouco essa ideia?
Portugal não é sustentável em termos demográficos, de investigação, económico-financeiros nem em termos políticos. Vamos perder milhões de jovens nos próximos anos pela quebra da natalidade e pela emigração. A perda da geração mais qualificada põe em causa o nosso futuro em termos de conhecimento e qualificação e não teremos jovens para pagar a reforma dos idosos. Uns vão-se embora, para quem fica sobra uma dívida pública per capita muito superior. Por outro lado, o desinvestimento brutal na investigação terá consequências dramáticas no futuro do País, que se poderia afirmar pela qualidade, inovação e patentes.
E também não temos um futuro económico-financeiro. Matematicamente, com estes juros, é impossível pagar a dívida pública. Portugal precisava de ter uma taxa de crescimento impossível de conseguir num contexto internacional adverso. Quanto mais tarde forem tomadas medidas, em pior condição económica, social e financeira estará o País. Têm de ser desenhados caminhos alternativos.
E que caminhos seriam esses?
Se não mudarmos o modelo de governação, nada neste país será sustentável. O vigente levou-nos à bancarrota. A classe política no poder é a mesma que nos pôs nesta situação e nada fez para atacar os fundamentos da bancarrota. A única coisa que está a ser feita é política de merceeiro: subir impostos e baixar salários. Não há uma estratégia de desenvolvimento para o futuro do País. As entidades reguladoras não funcionam. ?É inadmissível que, no recente caso do Grupo Espírito Santo, o Banco de Portugal, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e o Presidente da República tenham vindo enganar os portugueses, quando foi a última emissão de ações pelo grupo. Os pequenos aforradores foram enganados e não houve consequências para ninguém. A impunidade é completa.
Temos é que mudar o País e ter entidades reguladoras que funcionem e sejam independentes. Temos de mudar o modelo político de gestão do País. Algumas propostas que têm sido referidas fazem sentido, como os círculos uninominais com um círculo nacional compensatório para que os pequenos partidos possam – e devam – estar representados na Assembleia. E há que alargar o leque de incompatibilidades dos deputados. Temos de acabar com a “central de negócios” (uma expressão do antigo deputado João Cravinho) no Parlamento, para que o País tenha um futuro em termos políticos. Mas é impossível mudar de fora para dentro porque os partidos do arco da governação não se vão autorreformar. Tem de ser a sociedade, os cidadãos, a mobilizar-se para que este país seja sustentável. Se não o for nada nele o será, incluindo o SNS.
Falou há pouco em emigração. Os médicos também estão a emigrar…
Só no primeiro semestre deste ano emigraram duzentos. Estimamos que até ao final do ano saiam 400. ?A taxa de emigração cresce sobretudo nas especialidades em que há carências, como anestesia e medicina geral e familiar. Entre 60% dos internos da especialidade já existe o objetivo de emigrar. Esses jovens não têm expectativas relativamente ao futuro do País. Neste momento estamos a formar médicos a mais, mas vamos ter falta deles. Há países – como a Suíça, o Reino Unido e a Alemanha – que preferem contratar médicos já formados em vez de formá-los. Um técnico que custou cerca de meio milhão de euros a formar, fica-lhes, assim, a custo zero.
Por si, mantinha o SNS tal como está?
Exatamente. Há coisas que se podem corrigir, mas não me falem em despesismo e desperdício num sistema que é barato para o Estado e que consegue dos melhores indicadores do mundo. Compare-se o SNS com qualquer sistema de saúde do mundo… A propósito, sabe qual é o desperdício do sistema de saúde americano? São 640 000 milhões de dólares por ano! Três vezes o PIB português. Isso por causa da organização baseada em seguros.
Há pouco disse que quem discute a sustentabilidade do SNS são as pessoas que o querem destruir. Inclui o ministro Paulo Macedo nesse grupo?
Deliberadamente, não respondo diretamente a essa pergunta. Mas estou disponível para esse debate, quando o quiserem travar com a OM. Analiso factos e não intenções: O SNS tem cortes para além do preconizado pela troika. Ao mesmo tempo, num país com uma população empobrecida, o grande setor privado floresce e investe de forma impressionante em contraciclo com a situação económica. Há uma política que favorece essa situação. Basta olhar para a ADSE: se as taxas moderadoras para os seus utentes são mais baratas no setor privado do que no setor público, é evidente que há um objetivo de desviar os doentes e o financiamento do SNS para o grande setor privado, ao mesmo tempo que se colocam dificuldades quase inultrapassáveis aos pequenos privados, que tem decaído muito nos últimos anos.
Há um excesso de setor privado no nosso sistema de saúde?
Não coloco a questão dessa maneira. Sempre trabalhei em exclusividade no público, mas não tenho nada contra os privados. Há espaço para um serviço público e para um privado e as pessoas devem ter um razoável direito de opção. A minha crítica é a de que o SNS está a perder qualidade e que isso se enquadra numa estratégia de favorecimento dos grandes prestadores privados. Essa política existe. Não posso aceitar que haja um crescimento do setor privado canibalizando o SNS. Isso vai gerar mais despesa para o Estado.
Como assim? Os dados apontam para uma maior eficiência do privado e para menores custos para o Estado.
As comparações de custo de atos entre o público e o privado são enviesadas. Sabemos que o custo médio no SNS é o da linha de produção. Está inflacionado porque engloba os custos dos atos mais caros. Não se contabiliza o facto de ser o público a fazer a formação (e isso tem consequências para os custos e produtividade do SNS). O privado recebe os profissionais (formados no setor público), diferenciados e já com muita experiência. Por isso, é óbvio que uma cirurgia é mais rápida no privado. No público são mais lentas porque ensinar um interno exige tempo e disponibilidade – o que tem custos. Por outro lado, o SNS é obrigado a ter tudo para responder aos cidadãos. Por essa razão, um politraumatizado é melhor assistido no público, que, ao contrário do privado, tem de ter permanentemente os meios disponíveis e preparados para o assistir. Isso também encarece. Uma comparação feita deliberadamente dessa forma dá a ideia errada de que no setor privado a prestação é mais barata. Não há um país baseado num sistema privado de saúde em que os cuidados sejam mais baratos que em Portugal e que ainda seja, ao mesmo tempo, universal, geral e tendencialmente gratuito. Não é verdade que o privado seja mais barato.