Uma crise como a de 2008 passou, hoje, a ser impensável? Porquê?
Não e de todo impensável. Pelo contrário, é incrível ouvirmos hoje alertas sobre problemas muito próximos aqueles com que nos deparámos em 2008, sejam as noticias no Reino Unido sobre uma nova bolha imobiliária em curso, ou as noticias de um sistema financeiro cheio de “activos tóxicos” na China. Por outro lado, a situação real do sector financeiro internacional continua a ser uma incógnita. As perdas nos activos tóxicos não foram totalmente assumidas e foram sendo diferidas no tempo. A banca continua a dar sinais de fragilidade, seja nos países mais desenvolvidos, como na recente nacionalização do banco holandês SNS Reaal, seja nos países em crise, como Espanha. É difícil avaliar se estamos à beira de uma nova crise financeira, mas o que é claro é quão pouco mudou na economia internacional desde a crise de 2008. Os mecanismos que deram origem à crise financeira quase que não se alteraram. As promessas feitas de regulação financeira em 2008 não passaram disso. Pelo contrário, hoje temos bancos ainda maiores do que em 2007 (os bancos “too big to fail”), o sector financeiro não bancário (como os
hedge funds) continua sem regulação, os mercados de certos produtos na origem da crise ficaram intocados (produtos de credito titularizados estão mesmo a voltar a ser comercializados).
Como avalia as medidas tomadas pela Europa e pelos EUA para salvaguardar a ocorrência de novas crises financeiras? E que medidas deviam ter sido tomadas e não foram?
Hoje a banca tem novas regulações internacionais – os acordos de Basileia III – sobre requisitos de capital e liquidez, e países como os EUA impuseram algumas novas regras (por exemplo, a regra Volcker que proíbe algumas formas de investimentos financeiros). No entanto, o seu impacto no comportamento dos bancos é marginal. Estas novas regulações adaptaram-se as realidades já existentes na grande banca internacional. Quando muito temos hoje regras que permitirão uma divisão um pouco mais equitativa entre perdas privadas e públicas em caso de falência bancaria. Com medidas tão tímidas é difícil destacar uma. Penso que uma das mais positivas é algo que foi anunciado, mas ainda não aplicado: a Taxa Tobin. Uma taxa sobre transacções financeiras que limita a especulação e permite uma nova fonte de financiamento público. A lista de medidas que deviam ser tomadas é quase interminável. Dou conta de quatro que de uma forma ou de outra estiveram na discussão publica: a separação entre banca comercial e banca de investimento, algo revogado na UE em 1992 e mais tarde nos EUA; a urgência de agências de notação de crédito públicas, fora do alcance dos interesses privados; a proibição de transacção de muitos produtos de perfil especulativo; limites à capacidade de alavancagem do sector financeiro (mecanismo de endividamento para posterior investimento que permite “alavancar” os ganhos no capital próprio investido).
De qualquer forma, penso que a actual crise devia convocar uma discussão profunda sobre o papel do sistema financeiro. Se os bancos não podem ir à falência e são continuamente apoiados pelo financiamento dos bancos centrais no acesso à liquidez, garantindo-lhes lucros, faz sentido que sejam um negócio privado?
Na sua investigação encontrou dados que permitam avaliar se a “financeirização” da economia portuguesa se manteve, inalterada, depois de 2008?
A principal marca do processo de financeirização da economia portuguesa é o endividamento, sobretudo dos agentes privados (famílias e empresas). Portugal é o segundo pais do mundo mais endividado em termos líquidos com o exterior, só ultrapassado pelas Seychelles. No recente trabalho desenvolvido para o Observatório das Crises e Alternativas, distinguimos dois períodos depois de 2008. Entre 2008 e 2010 quando a crise do euro teve o seu inicio a dinâmica de endividamento continuou a bom ritmo. Portugal e outros países da periferia europeia eram entendidos como bom refúgio para os fluxos financeiros de países como a Alemanha, face às perdas nos EUA. Em 2010, deu-se uma inversão destes fluxos. O resultado foi que o sector financeiro português se viu forçado a “desalavancar” e parar o fluxo de crédito à economia portuguesa. Assim, embora os níveis de endividamento se mantenham muito altos, houve uma pequena descida depois de 2010. No entanto, penso que boa parte deste processo de redução da dívida no sector privado se deve sobretudo à catadupa de falências entretanto registada.
Como avalia a preponderância do sector financeiro hoje, em Portugal?
O sector financeiro, sobretudo os bancos, é sem duvida o sector mais poderoso da economia portuguesa, que tutela a politica económica e coordena toda a economia. Este é um sector que beneficia de vários mil milhões de euros públicos para se capitalizar e que beneficia da liquidez ilimitada do BCE. No entanto, as suas politicas de crédito e imposição de custos sobre os seus clientes não são alvo de qualquer influência publica. O seu poder de afectar capital na economia portuguesa não tem limites. E, no entanto, foi essa afectação deficiente uma das causas desta crise.
De que forma é que o sector financeiro “atrofia” o resto da economia?
O sector financeiro foi o grande beneficiado da integração nacional no Euro. Graças à moeda única o sector financeiro nacional teve a oportunidade de se endividar no exterior de forma quase ilimitada a preços muito baixos. Contudo, aliado à tradicional falta de competitividade da nossa indústria, agora reforçada por taxas de câmbio fixas, a banca optou por colocar todo este capital disponível em sectores onde o seu lucro estava garantido, nomeadamente a construção e imobiliário. A banca financiava o construtor e, em seguida, financiava o comprador, ficando com o imóvel como garantia.
Houve assim um enorme desinvestimento na indústria transformadora. Esta era o recipiente de 40% do crédito bancário destinado a empresas em meados dos anos noventa. Nos anos 2000 o peso relativo caiu para metade, em torno dos 20%. A banca deixou de desempenhar o seu papel tradicional de afectação eficiente de capital para capturar determinados mercados e sectores (como as famílias obrigadas a aceder ao crédito imobiliário para ter habitação), tendo assim um comportamento predatório na economia portuguesa.